Camila, Linn, Pepita, Assucena e Raquel são cantoras transgênero brasileiras de estilos diferentes, para as quais a música é um meio de inclusão em um país recordista em homicídios de pessoas que, como elas, nasceram de um sexo, mas se identificaram com outro. Segundo a rede Transgender Europe, o Brasil foi onde mais se matou transgêneros num ranking de 33 países. Entre 1º de outubro de 2015 e 30 de setembro de 2016, foram mortos 295, a maioria (123) no Brasil.
Embora o crime de discriminação sexual não seja tipificado no país, o serviço Disque 100, da Secretaria de Direitos Humanos, registrou 23 denúncias de homicídios de trans entre junho e outubro de 2016. Entre março e agosto de 2017, o número mais que quadruplicou, chegando a 109.
Este salto se deve, segundo a secretaria, ao aumento das denúncias, o que indicaria que os trans estão erguendo sua voz, como as retratadas a seguir.
“Sobrevivente”
Camila Monforte nasceu no Complexo do Alemão, conjunto de favelas da zona norte do Rio. Expulsa de casa adolescente, passou dois anos na Central do Brasil (terminal ferroviário no centro do Rio), onde se prostituiu para sobreviver.
Agora mora em São Paulo com o filho adotivo de 21 anos e se apresenta em shows de funk como a MC Trans.
“Sempre soube quem eu era desde criança, como transexual e como artista. O funk abriu portas pra mim e com isso sustento meu filho e minha mãe”, conta Camila, nos bastidores do primeiro baile LGBT da Rocinha, a maior favela do país, na zona sul do Rio.
“Através da música, aprendi a cicatrizar meus traumas, refiz laços com minha família, reconstruí minha vida”, afirma.
Sucesso nas redes sociais com músicas que abordam com sensualidade o universo LGBT, Camila tem mais de 600 mil seguidores no Facebook e seus vídeos no Youtube beiram 5 milhões de visualizações.
Ela fez várias cirurgias para se aproximar do gênero com o qual se identifica, mas descarta a de mudança de sexo, disponível no Sistema Único de Saúde (SUS) desde 2008. “Eu adoro” ser como sou, afirma.
“Cheguei aos 30 anos, que é muito difícil para uma trans brasileira porque a maioria morre aos 25, 26 anos de tiro, de doença ou de transfobia. Hoje me considero vitoriosa não só pela música, mas por ser uma sobrevivente em um país tão preconceituoso e transfóbico”.
Segundo o IBGE, a expectativa de vida de transgêneros no Brasil era em 2013 de 35 anos, menos da metade da média nacional, de 74,9 anos.
“Terrorista de gênero”
Nascida há 27 anos no interior de São Paulo, Linn da Quebrada se apresenta com seu nome social, diferente do de registro. Poder usar nome social em documentos é uma das reivindicações dos trans brasileiros.
Ela também tem um histórico de ruptura na transição. “Aos 17 anos, vinha de uma educação religiosa muito rígida e, ao assumir meus desejos, fui desassociada”, explica à AFP Linn, que foi Testemunha de Jeová.
“Deixei de atender às expectativas de ser homem ou ser mulher, então resolvi atender às expectativas de ser eu mesma”, relata à AFP após um show no Museu de Arte do Rio (MAR), no centro da cidade.
Ela se denomina “terrorista de gênero” pela violência discursiva com que reage às agressões.
“Meu corpo é extremamente violentado para que siga determinadas normas, e preciso muitas vezes responder com igual violência. Ser terrorista de gênero tem a ver com assumir riscos com seu próprio corpo, estar disposta a matar uma parte de si”.
A canção A Lenda, que conta sua história, diz:
“Fraca de fisionomia, muito mais que abusada/ Essa bicha é molotov, o bonde das rejeitada/ Eu fui expulsa da igreja (ela foi desassociada)/Porque ‘uma maçã podre deixa as outras contaminada'”.
Sua música, que mistura rap e funk, representa pessoas “relegadas ao espaço da rua, da marginalidade”.
“Os espaços ocupados pelos trans são espaços a serem invadidos. Não nos querem nas escolas, no mercado de trabalho. Agora estamos ocupando esses espaços”, explica.
‘Bixa’
Raquel Virgínia, 28 anos, nascida em São Paulo, e Assucena Assucena, 29, baiana de Vitória da Conquista, formam, com Rafael Acerbi, a banda As Bahias e a Cozinha Mineira, que lança o álbum “Bixa”, um jogo de palavras com o termo bicha e a letra x, alusiva à neutralidade de gênero.
Conheceram-se há sete anos quando estudavam História na USP. Elas cantam e compõem as músicas, inspiradas no ícone Gal Costa.
“A gente traz um novo olhar para a música popular brasileira – sob a nova perspectiva de duas mulheres trans”, explica Assucena à AFP.
Para Assucena, a transição “é um processo doloroso porque envolve conceitos fundamentais para qualquer vivência em comunidade: família, religiosidade, o conceito de ser homem ou mulher”.
A dificuldade maior “é encarar a sociedade, que é extremamente transfóbica”, reforça Raquel, mulher negra e trans.
“Conforme minha transição ficava mais evidente, mais as pessoas achavam que eu era prostituta e que devia frequentar lugares destinados mulheres negras com o meu fenótipo”, relata.
“Diva ou militante”
Priscila Nogueira foi registrada como Ângelo há 28 anos em Marechal Hermes, zona norte carioca. Conhecida como Mulher Pepita no mundo do funk, canta músicas de forte conotação sexual e se apresenta como militante trans.
“Diva nunca, militante sim”, define-se Priscila, que se apresenta em uma boate no centro da cidade.
“Acho que a gente está conseguindo rachar essa barreira do preconceito”, garante.
O sucesso – Priscila tem mais de cem mil seguidores no Facebook – não a blindou de ataques.
“Quando saiu meu primeiro vídeo, achavam que eu era uma mutante, me ofendiam”, afirma Pepita, que tomou hormônios sem acompanhamento médico para transformar o corpo, o que desaconselha devido às alterações no humor que sofreu.
Mas ela não desanima: “nem que seja a última coisa que eu faça, ainda vou ver minha bandeira respeitada”. (VITORIA VELEZ / Barbara NÓBREGA)