“Meia-Noite em Paris” (2011), um dos filmes de maior sucesso de bilheteria de Woody Allen e que lhe rendeu o Oscar de roteiro original, em 2012, foi realizado mais de três décadas depois de o cineasta, escritor, dramaturgo e ator norte-americano ter escrito o conto “Os Anos Vinte Eram uma Festa”.
A narrativa, de acordo com a autora e pesquisadora belo-horizontina Myriam Pessoa Nogueira, traz todos os personagens artistas presentes no filme e ainda inclui o compositor russo Igor Stravinsky e o pintor francês Henri Matisse.
No livro “O Cinema e o Teatro de Woody Allen”, que Myriam traz agora e é baseado em sua tese de doutorado, ela também chama atenção para o modo como “Meia-Noite em Paris” conecta-se às rotinas de comédia stand-up promovidas por Allen anos atrás. Esse é um exemplo, entre outros, que a pesquisadora sublinha para discutir como o diretor tece uma intrincada teia de referências entre filmes, peças teatrais e outros textos dele.
Na entrevista a seguir, a autora comenta essas relações ainda pouco conhecidas pelo público que aprecia o cinema de Allen.
Existe uma continuidade entre o Woddy Allen dramaturgo e o cineasta ou você percebe algumas diferenças na maneira que ele lida com as duas linguagens?
O trabalho de Allen como dramaturgo é mais esparso. Ele queria ser só dramaturgo, quando era adolescente. O que trato no meu livro e na minha tese é exatamente a influência da linguagem do cinema no teatro dele e da linguagem teatral no cinema dele. Porém, ele diz, em entrevistas a Eric Lax, em sua última biografia (esgotada no Brasil), “Conversas com Woody Allen”, da Cosac Naify, que o teatro e o cinema são muito diferentes. Ele reescreve roteiros até na última hora – na verdade, teatro também. E alega que os diálogos são mais importantes no teatro que no cinema.
Se no cinema ele consagrou-se pelas comédias com humor peculiar, pode-se dizer que no teatro o elemento cômico também surge de maneira marcante?
Sim, em algumas comédias do absurdo, como “Deus”, “Morte”, o esquete “A Morte Bate à Porta” e outros esquetes. Já no teatro, que não é publicado e traduzido no Brasil, como “Second Hand Memory”, por exemplo, é um drama épico, ou em algumas peças de um ato publicadas no livro “Adultérios”, da L&PM, como “Central Park West”, “Riverside Drive” e “Old Saybrook”, o humor aparece menos. “Sonhos de um Sedutor” tem um humor delicioso.
A produção cinematográfica dele é maior que a teatral, correto? Mesmo sendo menor o volume desses trabalhos, que importância eles têm na carreira de Allen?
Correto. Como diz Affonso Romano de Sant’anna, ele se “autotextualiza”, se “autorreferencia”, ou seja, se adapta. Usa peças como “Second Hand Memory” para escrever roteiros de filmes como “Café Society” ou “Sonho de Cassandra”. Usou “Morte” para escrever “Neblina e Sombras”. “A Lâmpada Flutuante” inspirou “Broadway Danny Rose”. Adaptou “Sonhos de um Sedutor” para o cinema, a pedido do diretor Herbert Ross, que dirigiu o filme estrelado por Allen. E no caso de “Tiros na Broadway”, a pedido da irmã e produtora, ele adaptou o filme para um musical da Broadway.
No livro, você aponta como ele nutre-se de seus contos e peças, estabelecendo com eles uma rede de intertextualidade em seus filmes. Você acha que para Allen tudo, então, converge para o cinema, sendo essa a expressão capaz de abarcar todas as outras?
É um fenômeno que acontecia aqui no Brasil, por exemplo, com Dias Gomes. Ele adaptava suas peças e novelas radiofônicas para a TV. No entanto, não achava que a peça “Pagador de Promessas”, por exemplo, fosse inferior ao filme ou à minissérie da TV. Como dizia Jorge Amado, os filmes e programas de TV são netos dos filhos, que são os livros. Allen é premiado como contista, não creio que ele ache um meio melhor que outro, apenas hoje é mais conhecido como cineasta, e produz um filme por ano – esse é considerado um ano sem Woody, porque ele só vai estrear no Brasil em 28 de dezembro –, inclusive tem feito incursões agora em programas para internet, como o que fez para a Amazon (não visto no Brasil, “Crisis in Six Scenes”).
Allen, a seu ver, é um mestre da paródia, inclusive dos seus próprios textos, além dos filmes de outros diretores?
Com certeza. Tem uma entrevista que ele deu pra “Times”, no site da L&PM, em que ele diz: “Sou um ladrão. Roubo dos melhores”. E a paródia é considerada uma homenagem, como diz Godard e também a estudiosa Linda Hutcheon. O humor de Allen é de satirizar justamente a quem ama, isso é típico do humor judaico. Então ele quer parodiar Fellini, Bergman, Shakespeare, todos aqueles a quem admira.
No livro, você aponta alguns dos autores preferidos de Allen, e nenhum deles é oriundo da comédia. É possível dizer que, dentre os gêneros teatrais, a tragédia é a que mais atraiu e alimentou as criações de Allen?
Na verdade eu falo que ele é fã dos irmãos Marx. São a grande influência cinematográfica dele na comédia. Mas eles não dirigiam filmes nem escreviam (Perelman escrevia os roteiros). Agora, todo grande comediante um dia quis ser autor dramático Isso aconteceu com Molière, com Chaplin e com Allen. E quando Allen tenta imitar Bergman se dá mal, porque ele é ele, não é Bergman. Allen só acerta com um drama quando faz “Match Point”. Porém, como dizia Hitchcock, um bom roteiro tem de ter uma pitada de humor. Esse dilema do diretor de comédias bem-sucedido que queria escrever drama está em “Memórias” (1980), que é inspirado no filme “Sullivan’s Travels”, de Preston Sturges. (O Tempo)