Nos cerca de 110 quilômetros (Km) de curso d’água mais atingidos pela lama da mineradora Samarco, o rejeito ainda é visto por todos os lados, dois anos depois. A região vai do ponto em que o rio Gualaxo do Norte encontra o distrito de Bento Rodrigues até a hidrelétrica Risoleta Neves, conhecida como Candonga. A luta para livrar a água do composto à base de minério de ferro fica ainda mais difícil no período chuvoso, quando a erosão do material localizado às margens dos rios aumenta e o rejeito é arrastado para a água.
Quando a reportagem esteve na região, foi possível constatar, em diversos pontos do Gualaxo do Norte, por exemplo, a erosão do rejeito nas margens. Esse foi o primeiro rio a receber o material vindo da Barragem do Fundão, há dois anos. Hoje, a lama escura e brilhante ainda deixa a água bastante turva, de cor caramelo.
Às margens dos rios, 247 propriedades rurais foram atingidas diretamente pela lama. Foram soterrados os pastos e as chamadas “baixadas”, terrenos à beira do curso d’água, onde deveria existir mata ciliar, mas são usados para atividade agropecuária por causa da fertilidade do solo.
Agora os agricultores da região já voltaram a plantar em cima do rejeito. Rafael Arcanjo Rola, de Gesteira, ficou mais de um ano alimentando suas 24 vacas de leite com silagem fornecida pela Samarco, para compensar a destruição da pastagem. A esposa dele, Adelina Aparecida Coelho Rola, de 52 anos, conta que meses depois da tragédia, ao pisar no rejeito ainda se observava uma consistência de lama, com muita água. Duas vacas atolaram, mas foram salvas.
No segundo semestre deste ano, Rafael decidiu plantar novamente o pasto no local. “Joguei uma terra e plantei por cima”, conta. Mas não tem certeza se o solo está livre de contaminação. Adelina relata efeitos negativos do rejeito nos cultivos, opinião compartilhada por vizinhos. “O pasto não está ainda tão bom. Está amarelado. Alguns falam que plantam a braquiária [capim], aí a raiz dela não desce. O rejeito é muito duro”. Agricultores de outras regiões relatam que árvores frutíferas que sobreviveram à avalanche de lama morreram depois.
A água do rio ainda não é usada pela família de Rafael e Adelina. Nem mesmo pelo gado, que agora convive com cercas para não chegar à margem e compartilha a água consumida pelas pessoas. “O meu irmão me dá água dele [de nascente] para casa. Eu lavo roupa, lavo casa de noite, e durante o dia eu deixo para os bois. Só lavo o que eu preciso. Porque não tem outra água”, explica Adelina. A Samarco abriu um poço para a família, mas Adelina afirma que a bomba só puxa água “suja”, imprópria para uso. Outros moradores deixam o gado beber a água do rio normalmente e assumem o risco de futuras contaminações.
A Fundação Renova utiliza a propriedade da família como um piloto para implantação de projetos de melhoria para os agricultores. Uma fossa ecológica trata o esgoto da casa para que a água caia, limpa, no rio. Antes, todos os dejetos eram jogados diretamente no curso d’água. Também foram montados piquetes em uma área mais alta para a pastagem, mas Adelina afirma que ainda não está “bonito” porque não tem água para irrigar.
Plantio não é recomendado
A Samarco afirma que o rejeito continha minério de ferro e areia, apenas. No entanto, foram encontrados metais pesados ao longo desses dois anos em materiais analisados por diferentes instituições, como arsênio, níquel, cádmio e cromo.
A Fundação Renova, criada para executar as ações acordadas entre a Samarco, a União e órgãos do Espírito Santo e de Minas Gerais, financiada pela mineradora, afirma que os materiais têm origem não no rejeito, mas no histórico de degradação da Bacia do Rio Doce.
“A grande questão é que a lama se misturou ao sedimento do fundo do rio. Temos histórico de degradação do rio ao longo dos anos, com presença de garimpo ilegal, utilização de metais pesado, agrotóxicos de forma indiscriminada”, afirma Juliana Bedoya, líder de Manejo de Rejeito da Renova.
Ela também cita que a qualidade da água já está restabelecida. “Claro que em períodos de chuva a gente tem o aumento da turbidez”, pondera. No entanto, Juliana diz que não há informações sobre o impacto de longo prazo do consumo de água e de alimentos plantados no rejeito.
O líder de Operações Agroflorestais da Fundação, Thomás Lopes Ferreira, diz que sem essa análise, a instituição não recomenda o uso do solo ou da água pelos agricultores. “A Fundação tem o princípio da precaução. Enquanto não tiver um estudo que comprove que não tem risco à saúde, nós não fomentamos atividade agropecuária em cima do rejeito. Apesar de saber que tem proprietários fazendo isso”. Ele diz, no entanto, que não tem competência legal para impedir o cultivo.
“Para isso está previsto um estudo de análise de risco à saúde humana, também segmentado por trecho. Começamos um piloto em Minas e outro no Espírito Santo e vamos estender. Isso não é um processo rápido, inclui análise de água subterrânea. Temos um prazo de dois anos para os 650 Km”, informa Juliana Bedoya. A conclusão do manejo de todo o rejeito é prevista para 2023. Esse plano foi orçado em R$ 400 milhões.
Contenção do rejeito dos rios
Para impedir que o rejeito continue indo para os afluentes do Rio Doce, a Renova precisa realizar obras de reparação que evitem a erosão dos sedimentos às margens. Foi decidido, em conjunto com um painel de especialistas, que seria mais prejudicial retirar toda a lama do que adotar soluções individuais em cada trecho.
Nos trechos que permanecerão com o rejeito, são usadas técnicas como biomantas, drenagem, enrocamento e a plantação de um mix de sementes de rápido crescimento para conter o material na margem. O objetivo final é cercar as áreas e fazer o reflorestamento da mata ciliar, uma necessidade desde antes da tragédia, já que o Rio Doce tem somente 0,5% de sua cobertura florestal originária, de acordo com o Instituto Terra, organização ambiental que atua na região.
A Operação Áugias, do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), fiscaliza as ações de contenção do rejeito para identificar em quais pontos já poderiam ser plantadas as mudas de Mata Atlântica às margens dos afluentes do Rio Doce. São mapeados 113 pontos, dos quais 109 já foram visitados pela operação. O último relatório, divulgado em outubro, conclui que desse total, 16% dos afluentes tiveram ações satisfatórias e estão aptos para o reflorestamento. Outros 31% precisam de correções de menor proporção, o que não impede o plantio.
Mais da metade dos locais, no entanto, não tem condições de avançar para a próxima etapa: 35% precisam se ações corretivas de maior porte e 18%, ou 20 afluentes, têm uma situação ainda mais grave – devido a intervençoes inadequadas ou à ausência de ações no local.
No entanto, o superintendente do Ibama em Minas Gerais, Marcelo Belisário Campos, afirma que houve avanços na preparação dos locais. “Na última operação a gente tinha a maioria das áreas precisando de ações de grande porte. Nesta operação, a situação se reverteu”. A Fundação Renova se comprometeu a completar as obras necessárias até o final deste ano e que já começou o plantio nos afluentes já preparados.
A Samarco também recupera, como parte do acordo assinado com órgãos estaduais e a União, outras 5 mil nascentes da Bacia do Rio Doce, para compensar o dano provocado. O Instituto Terra calcula que a bacia tem 300 mil nascentes degradadas, problema anterior ao rompimento da Barragem de Fundão. Serão cercadas e reflorestadas 500 nascentes por ano; a primeira leva terá o plantio realizado até dezembro.
Candonga
Na Hidrelétrica de Candonga, outro ponto onde está acumulada uma grande quantidade de rejeito, a retirada da lama ainda não foi finalizada. Foram removidos 860 mil metros cúbicos (m3) de lama e recolocados às margens do reservatório, até que sejam construídos dois diques para conter o rejeito. As obras começam em novembro. Ainda faltam ser retirados 400 mil m3para que seja avaliada a volta da operação da usina. Candonga tem capacidade para gerar 140 megawatts por hora (MWh).
Obras na Samarco
A Samarco também precisou fazer reparos e melhorias em sua área para evitar que o rejeito restante da Barragem de Fundão não deslizasse novamente. Foram realizados consertos nos diques da Barragem de Fundão e no pé do Reservatório de Germano – o mais antigo, já cheio, que em 2015 tinha risco de rompimento porque parte de sua estrutura foi afetada.
O reservatório de água de Santarém, que segurou uma parte da lama, foi ampliado. O novo Santarém possui capacidade para 7 milhões de m3. Mais abaixo, dois diques também foram construídos para filtrar o rejeito que ainda escapasse, o S3 e o S4, este último ao lado do distrito destruído de Bento Rodrigues, na entrada para o rio Gualaxo do Norte. Todas as obras já estão finalizadas.
“O Conama [Conselho Nacional do Meio Ambiente] define como limite máximo de turbidez para entrega de uma água em um curso d’água de 100 NTUs [Unidades Nefelométricas de Turbidez]. Hoje, na saída do S4, temos medições abaixo de 10. Isso significa que não temos rejeito sendo carreado, ou seja, o sistema de contenção está funcionando”, afirma o coordenador de Construção da Samarco, Eduardo Moreira.
Apesar de a água sair límpida do dique S4, do outro da contenção, o Gualaxo do Norte corre, com sua cor caramelo, fruto do rejeito espalhado no passado.
Pesca
Na foz do Rio Doce, encontro do curso d’água com o mar, fica Regência, distrito do município de Linhares (ES). Com cerca de 900 habitantes, a economia é baseada essencialmente na pesca e, mais recentemente, no ecoturismo. Dois anos após o rompimento da barragem, os pescadores seguem proibidos de pescar na região estuarina e os peixes estão contaminados com metais pesados.
No quintal da Associação dos Pescadores de Regência (Asper), tanques para criação de tilápia estão em fase final de instalação. O projeto antigo, que estava parado por falta de recursos, foi retomado como uma alternativa de renda aos profissionais que estão impedidos de pescar desde que o rejeito da mineradora Samarco chegou à região, 16 dias depois do rompimento da barragem.
À beira da foz, local de grande diversidade de espécies, o grupo precisará substituir a variedade de pescados por uma criação única, sem relação com o local. O presidente da Asper, Leônidas Carlos, afirma que a situação no município é desesperadora, inclusive com aumento dos casos de alcoolismo entre os pescadores. “Não temos Rio Doce mais. O rio secou. Hoje você chega numa praia dessa que está no meio do rio, onde tem uma ‘profundidadezinha’ tem 20 palmos de lama. Onde tem aquela lama tem o peixe que fica na lama. A tainha, o caçari, a corvina, o camarão, o siri. Esses peixes estão contaminados. E quem vai comer esse peixe?”, questiona. Ele estima que levará 20 anos para a atividade se reestabelecer.
O auxílio emergencial pago pela Renova mensalmente, no valor de um salário mínimo mais 20% por dependente, não cobre o prejuízo. Leônidas diz que a renda dele era de R$ 5 mil antes da tragédia. “Se eu não tivesse minha aposentadoria por idade eu estava passando fome”.
A pesca no restante do Rio Doce não está proibida, mas o presidente da associação diz que é arriscado. “Se o ponto onde chega a água do rio tem peixe contaminado, o rio todo pode estar assim. Eu não vou pescar e vender peixe contaminado. Se alguém adoecer eu que sou processado”, afirma. Bruno Pimenta, líder do Programa de Biodiversidade da Renova, recomendou cautela com o pescado da área permitida. Mesmo assim, durante o trajeto de Mariana para Regência, a reportagem observou pequenas atividades de pesca, inclusive na foz. Os grupos argumentaram que era para consumo próprio.
Monitoramento
O Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) monitora o pescado da região. No ano passado, relatório da instituição mostrou que houve aumento de substâncias como ferro, alumínio, chumbo, cromo, cádmio e manganês. Além de nitrato em níveis muito acima do permitido pelo Conama. Foi recomendada pelo ICMBio e também pelo Ibama a continuidade da proibição da pesca na região da foz do Rio Doce, iniciada em fevereiro de 2016, até que fossem realizados novos estudos.
Segundo o ICMBio, o último relatório do instituto, ainda não publicado, mostrou que a concentração de cádmio e cromo ainda está alta, embora a concentração de outros metais pesados tenha baixado. Quanto mais perto da foz, os níveis são mais altos.
A Fundação Renova afirma que esses elementos não vieram do rejeito. Provavelmente, segundo a instituição, eles já estavam na bacia e foram misturados e transportados junto com a lama. Quanto à água, a Renova sustenta que a situação é melhor.
“Ela já tem praticamente as mesmas características que tinha desde antes do rompimento. O que nos preocupa mais são os níveis de bactérias e coliformes fecais que são lançados do esgoto para o rio”, argumenta a líder dos Programas de Uso da Água da fundação, Carla Fonseca.
De acordo com ela, a Agência Nacional de Águas (ANA) deve divulgar, em novembro, um novo relatório sobre a situação na região. Além disso, a própria Fundação vai fazer a análise dos peixes. Para o Rio Doce, as coletas começaram em setembro e as primeiras análises devem ser divulgadas em novembro.
No mar, o monitoramento vai começar em janeiro e os resultados devem ser conhecidos seis meses depois. “Mas mesmo que esses resultados sejam positivos, a última palavra sobre o consumo e risco à saúde humana, deve ser dos órgãos de fiscalização sanitária”, aponta Pimenta. (Da Agência Brasil)