Difícil conter a emoção diante da letra firme sobre o papel feito de trapos. Vale mais o silêncio e, minutos depois, a vontade de mostrar ao mundo a assinatura ou “caligrafia escultórica” de Antonio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, mineiro de Ouro Preto e patrono das artes no Brasil. Na semana do início das comemorações (veja o quadro) dos 280 anos de nascimento do escultor, entalhador, arquiteto e louvado (perito), com programação até novembro de 2018, brasileiros e estrangeiros poderão participar em Ouro Preto, na Região Central, a cerca de 146km de Itabira, de uma série de eventos culturais, entre eles uma exposição, Sobre riscos e pautas, juntando documentos firmados pelo mestre do barroco e a música do seu tempo.
O jubileu, que coincide com os 50 anos do Museu Aleijadinho de Ouro Preto, será também ótima oportunidade para especialistas se unirem e estudarem, a fundo, a vida e a obra de Aleijadinho, pois, nos últimos anos, muitas descobertas ganharam corpo sem a necessária oficialização pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). “A história de Aleijadinho continua uma obra aberta. Nem tudo foi revelado, há muito por ser desvendado”, afirma o escultor, pesquisador de arte colonial e diretor de Patrimônio da Prefeitura de Congonhas, na Região Central, Luciomar Sebastião Jesus. Ano correto de nascimento (1737 ou 1738?), doença que o acometeu (foi lepra mesmo?), retrato oficial (verdadeiro?) e atribuição de obras sacras são enigmas que intrigam especialistas e confundem a cabeça do cidadão comum.
Apaixonado pela obra de Aleijadinho, e a vida inteira convivendo com obras-primas do mestre, a exemplo dos 12 profetas do Santuário de Bom Jesus de Matosinhos e as 64 figuras esculpidas em cedro, nas capelas dos Passos da Paixão de Cristo, em Congonhas, Luciomar resume na palavra “genial” o legado do artista. “Muita gente põe em dúvida a existência dele e o volume do seu trabalho. Bem, se não acreditam em tudo, pelo menos devem saber, conforme os seis recibos do acervo de Mariana, que houve um gênio chamado Antonio Francisco Lisboa, que fez esse patrimônio e herdou a oficina de seu pai, o português Manuel Francisco Lisboa. Esse ateliê era itinerante, tinha funcionários e serviços em vários lugares. Em muitas imagens e retábulos, Aleijadinho dava uma lapidada, garantindo a sua identidade.”
Em 2014, durante as homenagens pelo bicentenário de morte de Aleijadinho – a data 18 de novembro de 1814 consta do atestado de óbito – a direção do Iphan anunciou a formação de uma comissão para fazer estudos detalhados sobre ele. “Nada evoluiu”, critica o secretário de Estado da Cultura, Ângelo Oswaldo de Araújo Santos, lembrando que 1738 se mantém como o ano aceito pelo Iphan, pois, na certidão de óbito há a informação de que o homem sepultado teria 76 anos. Integrante do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais e autor do livro Aleijadinho revelado – Estudo histórico sobre Antonio Francisco Lisboa, o promotor de Justiça Marcos Paulo de Souza Miranda indica 1737 como o ano de nascimento. Em homenagem ao mestre, 18 de novembro foi instituído como Dia do Barroco Mineiro.
REGISTRO
Em Ouro Preto, Souza Miranda localizou o registro de batismo de Antonio Francisco Lisboa, filho da negra forra Isabel. “Os estudiosos certamente procuravam o registro apenas pelo nome do pai. A questão é que, naquela época, pelo direito canônico, era proibido que constassem do registro os nomes dos pais quando o casal não fosse formalmente casado. Daí só haver o nome da mãe no documento. Além disso, o costume era levar a criança à pia batismal logo após o nascimento.” A única data que se conhecia era a da morte, 18 de novembro, conforme consta do atestado de óbito. É curioso notar, no túmulo, que uma placa traz o sinal de interrogação ao lado do ano de 1738, que seria o do nascimento.
Souza Miranda acha fundamental o trabalho de um comitê, com equipe técnica e pesquisadores de universidades e uso de equipamentos modernos para solucionar incógnitas que cercam a vida do artista. “Não sabemos, por exemplo, se o quadro oficial, hoje no Museu de Congonhas, retrata a face do artista”, observa. Na avaliação dele, “há obras atribuídas de forma equivocada, deliberadamente ou não, a Aleijadinho, assim como outras que demandam investigação apurada. E mais: “A maioria das peças que ele fez, na verdade, 95%, foi para igrejas. E só trabalhou em Minas. Então, nada justifica que haja peças sacras atribuídas a Aleijadinho, no Palácio Bandeirantes, em São Paulo (SP)”.
Pelo visto, a história de Aleijadinho vai continuar como obra aberta. Segundo nota do Iphan, “a criação do grupo de trabalho se deu em função da necessidade de sanar possíveis dúvidas sobre a autenticidade de obras atribuídas ao mestre Aleijadinho. A comissão se reúne apenas sob demanda da presidência do Iphan. No momento não há nenhuma solicitação nesse sentido”.
PENACHO BARROCO
Os documentos assinados por Aleijadinho, datados do fim do século 18 e início do 19, têm uma característica peculiar, a que os especialistas chamam a atenção. No final do sobrenome “Lisboa”, há o chamado penacho barroco, arremate que dá um rebuscamento à letra “a”. Na sala do Museu da Música, vinculado à Fundação Cultural da Arquidiocese de Mariana, o musicólogo Vitor Sérgio Gomes examina uma fatura, original, de 1801, referente ao pagamento de parte do conjunto dos profetas. “Ter nas mãos um recibo assinado por Aleijadinho é outro tipo de relação com a memória, é lidar com um personagem do qual ouvimos falar. Muito importante”, diz Vitor que, na sexta-feira, participou da abertura da mostra Sobre Riscos e Pautas, unindo o trabalho de Aleijadinho com o mestre de capela, organista e compositor João de Deus de Castro Lobo (1797-1832). A exposição vai até o dia 20, no prédio da Fiemg, na Praça Tiradentes, no Centro Histórico de Ouro Preto.
Os documentos expostos fazem parte de um acervo de 154 mil itens, dos séculos 18, 19 e 20, que estão no Palácio Getsêmani, da Arquidiocese de Mariana, informa José Eduardo de Castro Liboreiro, responsável pela parte de projetos da Fundação Cultural da Arquidiocese de Mariana. Nesse pequeno tesouro, estão processos, contratos, certidões, escrituras e outros de alto interesse para pesquisadores.
OBRA ABERTA
Polêmicas, descobertas, perguntas sem respostas e enigmas na vida e obra de Aleijadinho
Ano de nascimento
A data oficial é 1738, mas, no livro Aleijadinho revelado – Estudo histórico sobre Antonio Francisco Lisboa, o promotor de Justiça e integrante do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais Marcos Paulo de Souza Miranda defende que é 1737. Em Ouro Preto, ele localizou o registro de batismo de Antonio Francisco Lisboa, filho da negra forra Isabel. E esclareceu que “os estudiosos certamente procuravam o registro apenas pelo nome do pai. A questão é que, naquela época, pelo direito canônico, era proibido que constassem do registro os nomes dos pais quando o casal não fosse formalmente casado. Daí só haver o nome da mãe no documento”.
Retrato oficial
Consagrado pelas imagens que brotaram de suas mãos, o gênio do barroco tem na própria fisionomia um mistério. O chamado retrato oficial está no Museu de Congonhas. Trata-se de óleo sobre pergaminho feito no século 19, por Euclásio Penna Ventura. Foi vendido em 1916 a um comerciante de Congonhas, identificado como Senhor Baerlein, proprietário da Relojoaria da Bolsa do Rio de Janeiro. A alegação de que se tratava do rosto do mestre do barroco se baseou na imagem representada ao fundo da pintura, em segundo plano, que parecia idêntica a uma obra de autoria do artista.
Rosto misterioso
Um fato curioso foi identificado pelo artista plástico, restaurador e pesquisador José Efigênio Pinto Coelho, residente em Ouro Preto. A repeito do quadro Jesus cai carregando a cruz, dos Passos da Paixão de Cristo, em exposição no Museu da Inconfidência, em Ouro Preto, ele sustenta que o pintor Manuel da Costa Ataíde (1762-1830) teria homenageado Aleijadinho retratando um soldado romano com seu rosto. Ele se baseou numa descrição do livro, de 1858, Traços biográficos relativos ao finado Antônio Francisco Lisboa, distinto escultor mineiro mais conhecido pelo apelido de Aleijadinho, de autoria de Rodrigo José Ferreira Bretas.
Altar da padroeira
Professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e especialista em arte sacra, Ivo Porto de Menezes, concluiu que o altar de Nossa Senhora da Piedade, na Serra da Piedade, em Caeté, na Grande BH, é de autoria de Aleijadinho. Segundo ele, o artista mudou a “organização” na peça esculpida em cedro por volta de 1770. “Antes, os riscos dos retábulos não contemplavam a parte inferior. Era da mesa do altar para cima. O artista modificou isso e prolongou as colunas laterais até o último degrau da escada que leva ao altar, denominada supedâneo”, explica um dos pioneiros do Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico (Iepha-MG).
Três imagens
Depois de estudos iniciados em 2011, o restaurador e professor Antônio Fernando Santos atribuiu três peças, em Ouro Preto, ao artista: a imagem de Nossa Senhora da Guia, do acervo da Paróquia de Santa Efigênia, e duas também em madeira da Capela de Nossa Senhora das Mercês e Misericórdia, mais conhecida como Mercês de Cima: São Pedro Nolasco e São Raimundo Nonato. Segundo Antônio Fernando, as esculturas da primeira fase de Aleijadinho, que vai de 1760 a 1774, representam a época em que a obra dele ainda exibia forte influência europeia. Ao contrário das demais imagens conhecidas na atualidade, os três objetos são na categoria “de vestir” e de “roca”, o que significa cabeça e corpo sobre estrutura de madeira que recebe roupas de tecido. (informações do Jornal Estado de Minas)