A pré-história de Minas ganha novas luzes da ciência, recebe o olhar cuidadoso de um pesquisador europeu e valoriza ainda mais o legado do dinamarquês Peter W. Lund (1801-1880), chamado de Dr. Lund, que viveu 46 anos em Lagoa Santa, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, e se tornou o pai da paleontologia brasileira. Ao visitar nessa sexta-feira o Parque Estadual do Sumidouro, onde estão a Gruta da Lapinha, o Museu Peter Lund e outros equipamentos, o geneticista Eske Willerslev, diretor do Centro de Excelência em Geogenética do Museu de História Natural da Universidade de Copenhague, na Dinamarca, afirmou que está em Lagoa Santa a “chave” para se entender os primeiros povoamentos da América do Sul, as correntes migratórias e outras questões ligadas à origem, mediante o sequenciamento de genomas.
Acompanhado de integrantes do seu grupo de pesquisa, entre eles o filho de uma mineira, e do professor Luiz Souza, da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais (EBA/UFMG), Willerslev falou, com veemência, sobre a necessidade de maior entrosamento entre a Dinamarca e o Brasil para restabelecimento de uma conexão científica. Tão logo conclua estudos com material disponível nos dois países, o geneticista pretende montar uma grande exposição. “O objetivo é mostrar os fósseis tanto aqui como no meu país. E faço questão de que a coletiva de imprensa para divulgar o evento seja em Lagoa Santa. Dr. Lund foi o Darwin das Américas, é realmente o pai da paleontologia”, afirmou numa referência ao naturalista inglês Charles Darwin (1809-1882), autor da teoria evolucionista. Além de se dedicar ao estudo dos fósseis, Lund foi responsável também por trabalhos em geologia, arqueologia e espeleologia.
Na entrada de uma gruta no parque administrado pelo Instituto Estadual de Florestas (IEF), com a chuva dando uma trégua, Willerslev não escondia a admiração, mesmo já estando lá cinco meses antes. O desgosto só ocorreu mesmo no Museu Peter Lund, inaugurado em 2012. Ao ver os 80 fragmentos de fósseis humanos e de animais cedidos a Minas pela Dinamarca, num sistema de comodato, ele não escondeu a decepção com o pequeno acervo. “É uma vergonha estar aqui isso. Parecem ossos de galinha. Houve mais valorização do turismo do que da ciência”, criticou. No museu, estão fósseis de megafauna, como preguiça gigante, tigre-dentes-de-sabre e outros.
Ainda irritado com o que viu no museu, Willerslev afirmou que entre os milhares de fósseis enviados por Lund à Dinamarca, há caixas que nunca foram abertas. “Poucos se encontram em exposição num museu”, contou, ao lado, o doutorando em antropologia molecular, Peter de Barros Damgaard, de 26 anos, nascido em Copenhague, filho de uma mineira de Pouso Alegre, no Sul de Minas, e de um dinamarquês. Para garantir o intercâmbio e troca de informações, ele vai ficar um tempo imerso em pesquisas na UFMG. Toda a visita foi acompanhada por uma equipe do país escandinavo, que grava um documentário e, na véspera, o grupo esteve no Centro Arqueológico Anette Laming Emperaire (Caale), em Lagoa Santa.
O gerente do Parque Estadual do Sumidouro/IEF. Rogério Tavares, informou que houve um processo de articulação entre a Dinamarca e o governo de Minas, (em 2009), para trazer os fósseis. “Esse comodato abriu as portas para que novos ossos viessem para cá, o que ainda não ocorreu, devido a uma série de problemas. Mas o consulado do país está sempre fazendo acompanhamento aqui”, disse Tavares.
ADMIRAÇÃO
Já em visita ao Museu Arqueológico da Região de Lagoa Santa, conhecido como Museu da Lapinha e a poucos metros do outro centro cultural, o geneticista abriu o sorriso. E não se conteve: “Espetacular! Essa é uma riqueza, muito melhor do que o outro”. Na construção que lembra um castelinho, e está em funcionamento há 45 anos, se encontram cerca de 40 mil peças, entre fósseis, cerâmicas, animais taxidermizados e outros, comprados ou coletados pelo húngaro Mihály Bányai. A diretora e filha do fundador, Erika Bányai, se mostra feliz com os elogios e acredita que tem grande expectativa para conhecer os resultados das pesquisas de Willerslev, como a datação exata da ocupação da região de Lagoa Santa. “Existe muita pergunta sem resposta”.
Durante todo o dia, o geneticista foi acompanhado pelo professor Luiz Souza, do Laboratório de Ciências da Conservação (Lacicor) e do Centro de Conservação e Restauração de Bens Cultura da EBA/UFMG. Souza ressaltou o caráter “importantíssimo” da visita de Willerslev. “Junto ao objetivo de se buscarem mais amostras para análises, pretendemos também retomar antigas negociações entre a UFMG e o Museu de História Natural da Dinamarca, a fim de promover maior integração e valorizar os trabalhos de Lund na região de Lagoa Santa”. Ele adiantou que, segunda-feira, o grupo estará no Museu Nacional, do Rio de Janeiro (RJ), para coletar amostras do crânio de Luzia, o mais antigo fóssil humano encontrado na América.
Ao final da visita, na parte da manhã, e olhando para Peter, o geneticista resumiu seu projeto, de forma simpática: “Ele tem sangue brasileiro e dinamarquês. Então, esse intercâmbio tem que unir forças de ambas as partes”.
MARCOS DA HISTÓRIA
» 1801
Nasce na Dinamarca Peter W. Lund, que viveu 46 anos na região de Lagoa Santa e é considerado o pai da paleontologia, arqueologia e espeleologia brasileiras
» 1832
Lund (1801-1880) faz as primeiras descobertas de fósseis em cavernas e abrigos de Lagoa Santa
» 1845
Paleontólogo envia ao rei da Dinamarca a coleção de fósseis encontrados na região de Lagoa Santa
» Década de 1950
Pesquisadores da Academia Mineira de Ciências e do Museu Nacional do Rio de Janeiro retomam as escavações na região
» 1974
Missão franco-brasileira, chefiada por Annette Laming Emperaire (1917-1977), faz escavações, até 1976, em Lagoa Santa
» 1975
Annette Laming encontra na Lapa Vermelha IV o crânio de Luzia, o fóssil humano mais antigo com datação do Brasil
» 1998
Antropólogo Walter Neves, da Universidade de São Paulo, estuda e data (11,4 mil anos) o crânio de Luzia
» 2010
Em maio, governos de Minas e da Dinamarca fecham acordo para cessão, em comodato, de fósseis para exposição em Lagoa Santa
» 2012
Em 21 de setembro, é inaugurado o Museu Peter Lund, inspirado na trajetória do naturalista dinamarquês pela região de Lagoa Santa
três perguntas para…
Peter de Barros Damgaard, doutorando em antropologia molecular
Como nasceu o projeto de pesquisa?
Estive aqui em Lagoa Santa há cinco anos, fiquei muito impressionado com tudo, e então falei sobre o assunto com o dr. Eske Willerslev (diretor do Centro de Excelência em Geogenética do Museu de História Natural da Universidade de Copenhague, na Dinamarca). Ele veio uma primeira vez e retorna agora.
O que será feito?
Estudos para identificar o início do povoamento na América do Sul. Lagoa Santa é uma região muito rica. Há muito para ser pesquisado. Gostaria de dizer que a reconstituição facial de Luzia (está no Museu Nacional, no Rio de Janeiro) é fantasiosa, artística. Há muita confusão nos traços.
Como será seu trabalho neste projeto?
Em breve, vou ficar trabalhando em Belo Horizonte, na Universidade Federal de Minas Gerais, para fazer a conexão com a Dinamarca. Há muito a ser feito. No meu país há fósseis enviados há mais de um século por Dr. Lund que ainda estão em caixas.
*Estado de Minas