O coque bem apertado junto à cabeça é resquício de uma época que Maria*, 40, luta para deixar para trás. O ex-companheiro, com quem conviveu por 11 anos, não deixava que ela usasse os cabelos soltos, nem que passasse batom ou fizesse as unhas. Maria não podia encontrar amigos, sair sozinha ou, perto dele, sequer olhar para os lados. Brigas, empurrões e agressões faziam parte da rotina e, aos poucos, ela foi sendo diminuída por aquele homem que um dia amou. “Eu era um bibelô em um canto da casa, que, na hora que quisesse, ele usava”, conta. “Ele rasgava minhas roupas, quebrava meu telefone. Até que, na última vez, quando a mãe dele interveio para me ajudar, ele falou que eu só sairia de casa em um caixão. Que enquanto não tivesse um óbito naquela casa, ele não ia sossegar”, relata ela.
Histórias como a de Maria são o retrato de uma realidade assustadoramente comum. Conforme projeção das Nações Unidas, uma a cada três mulheres enfrentarão algum tipo de violência ao longo de suas vidas. Somente em Minas Gerais, um total de 71.772 mulheres foram vítimas de violência doméstica e familiar no primeiro semestre deste ano – uma média de quase 400 casos por dia.
Para a professora Marlise Matos, coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisa sobre a Mulher (Nepem) da UFMG, os números refletem apenas a ponta de um gigantesco iceberg, já que a maioria dos casos não chega a ser denunciado. “A violência contra a mulher é um ato de poder. É uma violência estrutural, não são casos isolados, e sua origem está na maneira como construímos nossas relações de gênero”, afirma.
Em uma sociedade patriarcal, como a brasileira, fortemente marcada pela cultura de dominação e controle dos homens sobre os corpos e as vidas das mulheres, explica Marlise, o resultado é que esse tipo de violência se banaliza e naturaliza. Uma vez estabelecido o ciclo, a tendência é a violência se perpetuar – e se agravar.
Desde que a lei do feminicídio foi promulgada, em março de 2015, ao menos 931 mulheres foram mortas em Minas vítimas de violência doméstica e familiar, segundo levantamento do governo do Estado. “A violência é cíclica e não precisa ser física. Aliás, o ciclo não começa no feminicídio, mas em padrões masculinos glamourizados e naturalizados. É a roupa que tem que trocar, a comida que está uma porcaria”, exemplifica a pesquisadora. “São pequenas atitudes que vão se acumulando e que são chave para minar a autoestima da mulher, dificultando que se rompa o ciclo. Esse rompimento só acontece quando a mulher se sente fortalecida, mas, em uma relação de subalternidade, ela está destituída de seu lugar de autonomia”.
De fato, quando Maria decidiu que precisava sair de casa, o caminho não foi fácil. “Ele me perseguia, ia para a porta do meu trabalho. Os patrões ficaram com medo do que ele poderia fazer comigo lá dentro e me mandaram embora, o que só piorou a situação”, conta ela, com o olhar longe, de quem já viveu muita coisa. “Eu achava que a culpa era minha; ele me fazia sentir que eu que estava errada. Mas agora sei que o errado é ele”.
Abrigada provisoriamente na Casa Sempre Viva, hoje tudo o que Maria mais quer é conseguir um emprego e uma casa para terminar de criar seus filhos. “Quero que eles cresçam em um ambiente diferente do meu, livres e saudáveis. Vou ensinar à minha filha como reconhecer os sinais da violência, mas, principalmente, vou ensinar ao meu filho o que ele não pode fazer com uma mulher”, diz. “Vai ser difícil, mas o pior da vida já passou. O não da sociedade já tive. Agora vou buscar o meu sim”.
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Governo federal reduz orçamento da mulher em 70%
Enquanto a violência contra a mulher se perpetua de forma alarmante por todo o país – houve um aumento de 83% no número de relatos recebidos pelo Ligue 180 (Central de Atendimento à Mulher) em 2016 se comparado ao ano anterior –, o governo federal decidiu reduzir os investimentos nas políticas para a mulher.
Na proposta orçamentária enviada pelo Poder Executivo à Câmara dos Deputados para 2018, o programa Políticas para as Mulheres: Promoção da Igualdade e Enfrentamento à Violência teve uma queda de 69,6% na previsão de valores em comparação ao ano anterior. Enquanto em 2017 serão gastos um total de R$ 81,6 milhões, para o ano que vem a previsão da União é despender apenas R$ 24,8 milhões. (Informações reproduzidas do jornal O Tempo)