O sanfoneiro Abel Barbosa da Silva, de 77 anos, que toca com um braço só, pode não ser o melhor músico, mas é imbatível na animação. Nascido no sertão de Alagoas e morador de Maringá, no norte do Paraná, desde 1961, tornou-se figura carimbada em feiras livres ao longo das décadas tocando por alguns trocados.
A surrada companheira Sacandalli de 80 baixos tem passado mais tempo em silêncio nos últimos anos. O sorriso sem dentes e as gargalhadas do contador de histórias surgem assim que alguém pede para ele buscar o acordeão, que fica guardado num quarto da casa na Rua Peru, no Jardim Alvorada.
“Estou destreinado”, indica, ainda se ajeitando. “Uma vez, me chamaram de ‘Rei da Sanfona’. Agradeço, mas não mereço”, diz, às gargalhadas, antes de soltar as primeiras notas do clássico “Asa Branca”, de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, para se aquecer.
Segundo ele, a canção composta pelo “Rei do Baião” – quando Abel ainda era uma criança na zona rural de Água Branca (AL) – sempre foi a mais pedida nos bares e bailes maringaenses. Histórias não faltam para o sanfoneiro, que, certa vez, chegou em casa sem a companheira.
“Ganhei R$ 10 de um cara para ele tocar duas músicas com a minha sanfona e um pandeiro. Ele estava bêbado e sumiu. Andei essa cidade inteira e só fui encontrar no dia seguinte. Peguei a sanfona de volta. O pandeiro nunca mais vi”, conta.
Abel afirma que nunca fez uma aula de música na vida. “Aprendi a tocar de ouvido. Colocava um disco na radiola e ia tentando até conseguir”, explica. E aprendeu duas vezes.
A primeira, aos sete anos, depois de ganhar a primeira sanfona em um sorteio. A segunda foi depois do acidente que sofreu nos anos 1960 – que lhe custou o braço direito.
Depois de trabalhar por anos em engenhos de cana carregando as cangaias dos 13 burros do patrão, levar sacos de 40 quilos de café na cabeça, carpir lotes e vender doces, Abel conseguiu um emprego na Companhia Paranaense de Energia Elétrica (Copel).
O trabalhador animado, que subia como poucos nos postes de peroba, pecou pelo excesso. Sem querer, acabou tocando na rede de alta tensão. Com o choque, foi atirado longe.
Foram meses de recuperação. A primeira viagem de avião da vida, para um hospital em São Paulo, ele mal se recorda. Em vez de se queixar ou desistir, seguiu sorrindo – e tocando.
Na falta de um braço, usa as pernas para apoiar o instrumento e bate os pés no chão a fim de ajeitar a sanfona e deixá-la mais próxima ao peito. Os gritos e as chacoalhadas do corpo são a assinatura do artista, que ele diz se sentir tocando.
“A música me faz esquecer as amarguras e os problemas. Gosto de tocar e contar histórias, mas meu toque fica limitado por só ter um braço”, diz.
A idade ele precisa checar no documento. Os irmãos ele nem sabe quantos já teve. De onde veio muitas crianças morriam cedo. Dos que sobreviveram, segundo ele, dois tiveram problemas mentais e um era cego.
A mudança para Maringá não mudou as dificuldades da família e outras impostas pelo analfabetismo. “Falaram pro meu pai que aqui ganhava dinheiro a rodo. Conversa de mentiroso que ele acreditou”, recorda.
Tocando sanfona e tirando outros trocados em subempregos, Abel criou seis filhos com Tereza da Silva, de 66 anos. Hoje, costumam tomar conta de alguns dos nove netos. “Não fiquei rico, mas fiz a alegria de muita gente com minha sanfona”, afirma.
G1