Com dados atualizados até junho de 2016, o estudo mostra que o número de detentos aumentou em mais de 100 mil em menos de dois anos, indo de 622 mil em 2014, data da última pesquisa, para 726 mil. Isso é quase o dobro das 368 mil vagas existentes – a lotação dos presídios é 197%.
Para resolver a superlotação, de modo que o número de vagas seja correspondente ao número de presos, seria necessário construir praticamente uma penitenciária por dia durante um ano – considerando a capacidade máxima de mil vagas recomendada pelas diretrizes básicas de arquitetura penal, do Ministério da Justiça. Isso considerando que ninguém mais fosse preso nesse período.
Em outras palavras, o Brasil teria que praticamente dobrar o sistema carcerário que existe hoje em apenas um ano.
Em uma estimativa aproximada, construir tantas detenções custaria cerca de R$ 12,9 bilhões, sem contar os custos de manutenção e pessoal. Isso levando em conta que cada presídio consumiria R$ 36 milhões – valor gasto pelo Estado de São Paulo para erguer uma unidade de 847 vagas inaugurada no ano passado – e sem considerar detalhes como diferenças regionais de valor.
O gasto equivaleria a quase metade dos R$ 28 bilhões previstos no orçamento para o Bolsa Família em 2018.
“Ainda que exista alguma vontade de construir unidades prisionais, é impossível do ponto de vista econômico e político”, afirma a socióloga Camila Dias Nunes, professora da Universidade Federal do ABC e pesquisadora do NEV (Núcleo de Violência da USP). “É uma política (de encarceramento em massa) fadada ao fracasso.”
O número de presidiários no Brasil vêm aumentando desde os anos 1990. No ano 2000, o país tinha 137 pessoas presas por grupo de 100 mil habitantes. Em junho de 2016, essa taxa chegou a 352,6 detentos – alta de 157%.
O país é hoje o terceiro no mundo em número total de presos, superado apenas pelos EUA e pela China.
O que explica a quantidade de presos?
Juristas e especialistas em violência e segurança pública consultados pela BBC Brasil apontam elementos que explicam a expansão do encarceramento.
A Lei das Drogas, de 2006, é citada como uma das principais responsáveis. Seguindo uma política de aumento na guerra aos entorpecentes como resposta à crises de segurança pública, a legislação exime usuários de punição, mas endurece penas para traficantes – sem, no entanto, criar critérios claros sobre como diferenciar um traficante de um usuário.
“Foi um momento de inflexão, quando o número de presos por tráfico de drogas sofreu uma explosão”, diz Alamiro Velludo, ex-presidente do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária e professor de direito da Universidade de São Paulo (USP).
Não há, por exemplo, uma determinação objetiva da quantidade de drogas apreendida que configura tráfico – fica a critério do juiz determinar se houve a intenção de traficar.
Outro problema é que frequentemente há processos com investigação precária, que não produzem provas além do testemunho policial. Um exemplo é o Tribunal de Justiça do Rio, que emitiu a súmula 70, autorizando juízes a condenarem acusados de tráfico tendo como única prova a palavra do policial que efetuou o flagrante.
Pesquisa da USP, de 2012, mostrou que 74% das prisões por tráfico em São Paulo tinham policiais militares como únicas testemunhas no processo.
De onde vem a tendência a prender?
Para Velludo, tanto em casos de tráfico quanto outros crimes, é positivo que o juiz tenha liberdade na decisão para comportar situações individuais. O problema é a cultura de encarceramento que permeia o sistema.
“Tanto que 40% dos presos são provisórios, não foram condenados. Não se busca saber se a pessoa é culpada, busca-se apenas a punição”, diz.
Segundo ele, isso é resultado da frustração da sociedade com problemas de segurança, crime organizado, milícias – as pessoas acabam pedindo mais punição como como resposta. “Isso tudo é resultante de um processo de deficiência do Estado, que não pode ser resolvido apenas com o direito penal.”
“Há uma tendência punitivista que enxerga a prisão em regime fechado como única resposta possível para todos os problemas”, afirma Cristiano Maronna, presidente do Ibccrim (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais).
Embora o Brasil tenha um Código Penal e uma Lei de Execuções Penais que prevejam o uso de penas alternativas à prisão, como penas reparatórias e prestação de serviço à comunidade, na prática outros instrumentos legais acabam sendo usados com mais frequência.
Criminalistas defendem que penas alternativas são muito mais adequadas a delitos sem violência, como tráfico e crimes contra o patrimônio sem uso de força.
“Quando a gente trata todos os crimes de maneira indistinta, o que faz é botar na cadeia um monte de gente pobre, negra e periférica. No fundo o Estado nada mais faz do que uma gestão da miséria”, diz Velludo. “Não adianta só construir vagas. Desse jeito vamos sempre correndo atrás do número de vagas. É preciso reequacionar o sistema como um todo.”
Para Maronna, é uma questão de racionalizar o uso dos recursos disponíveis. Além disso, diz ele, “a cultura judiciária encarceradora passa por cima da legislação e da Constituição”.
Ele cita como exemplo o fato de muitos juízes considerarem o tráfico crime hediondo – mesmo quando é praticado por réus primários, com pouca quantidade droga, sem ligação com organizações criminosas.
Nesses casos, a pessoa não precisa necessariamente ficar presa em regime fechado, segundo o STF (Supremo Tribunal Federal).
“O desrespeito dos juízes a esse entendimento gera uma situação absurda em que os casos precisam chegar às instâncias superiores para que se cumpra a lei”, diz o presidente do Ibccrim. “É preciso racionalizar os recursos e parar de encarcerar pessoas por furtos insignificantes.”
Segundo os especialistas, o Poder Executivo não criou estrutura para o acompanhamento de penas alternativas.
“Uma das justificativas mais usadas pelos juízes (para não dar esse tipo de pena) é que não existe supervisão para penas alternativas. É preciso criar”, afirma Camila Nunes Dias.
Maronna explica que também faltam outros dispositivos previstos em lei que ajudariam a desafogar o sistema penitenciário – como colônias agrícolas e casas do albergado para que presos possam cumprir pena em regime semiaberto e aberto.
Procurado pela reportagem, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) respondeu que não havia representantes para comentar os dados e que essa sexta-feira é “feriado no Judiciário” (Dia da Justiça).
Prender mais gente diminui a violência?
O aumento do aprisionamento não significou diminuição nos índices de violência.
Em 2013, o Brasil registrou 55,8 mil mortes violentas, uma taxa de 28 casos por 100 mil habitantes, segundo dados compilados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Em 2016, houve 61 mil casos, crescimento de 9,5% – a taxa subiu para 30 mortes por grupo de 100 mil.
“No entanto, grande parte das pessoas presas não foram condenadas ou acusadas por crimes violentos” aponta Marona. Ele cita como exemplo que o motivo número um para manter pessoas na cadeia hoje é o tráfico de drogas, que representa 28% das acusações e condenações.
Historicamente, o Brasil soluciona apenas 8% dos assassinatos. O número de condenações e acusações por homicídio dentro do sistema prisional é 68,5 mil – 11% do total.
Para outro setor de pessoas ligadas à segurança pública, no entanto, a impunidade de crimes graves faz aumentar a criminalidade.
Em entrevista recente, Alexandre de Moraes, ministro do Supremo Tribunal Federal e ex-ministro da Justiça do governo Temer, afirmou que quem comete crimes graves fica muito pouco tempo na cadeia.
“Prendemos quantitativamente, desde o furto de um botijão que alguém pula o muro, sem violência ou grave ameaça, até um roubo de carro-forte, com fuzil, um roubo qualificado. Um fica 10 meses e outro fica 5. Condutas totalmente diferentes, só que a bandidagem violenta, a alta criminalidade, fica muito pouco tempo na cadeia”, disse.
“Não existe nenhuma relação cientificamente comprovada que incremento punitivo é sinônimo de diminuição de criminalidade”, pondera Velludo.
“Existe um problema da complexidade do delito. O que leva a pessoa a cometer não é um cálculo racional entre a pena e o benefício. Existem uma série de contextos pessoais e sociais.”
Segundo ele, o sistema penitenciário atual tende a agravar a criminalidade. “O PCC (Primeiro Comando na Capital) não surgiu na periferia, surgiu dentro do sistema prisional”, diz.
A situação precária dos presídios, com superlotação, violência extrema e péssimas condições de higiene, saúde e alimentação tiveram – e ainda têm – um impacto direto no surgimento e na consolidação de facções criminosas como o PCC e o Comando Vermelho, acrescenta Dias Nunes.
O período em que o PCC se consolidou, entre 2001 e 2006, coincide com a quase duplicação no número de presos – de 234 mil para 401 mil.
“Se é duvidoso que uma pessoa que comete um ato ilícito não violento tenha interesse em se relacionar com essas facções, a partir do momento em ela entra no sistema prisional, não tem escolha – terá que lidar com o crime organizado de alguma forma. A organização do dia a dia dos presídios é gerenciada por eles”, afirma a professora.
Neste ano, houve um conjunto de brigas entre facções criminosas em diversos presídios do país, como em Manaus, Boa Vista e Natal. O saldo de ao menos 130 detentos mortos dá dimensão do controle das facções sobre o sistema. (BBC Brasil)