Em meio ao temporal, uma mulher corre para um restaurante em busca de abrigo, na cidade de Kogbara Dere, conhecida como K Dere, na Nigéria.
As garrafas de plástico com gasolina caseira que ela estava vendendo ficam para trás e são danificados pela forte chuva.
O cheiro de gasolina exala do chão e paira brevemente no ar, antes de se misturar à estrada enlameada.
Ao seguir o rastro escorregadio do óleo derramado, por um labirinto de moradias de concreto, chegamos à casa de Love Sunday.
Cidade de lágrimas
Love teve seu quinto filho há pouco mais de um mês. Por duas semanas, estava tudo bem.
“Quando o bebê nasceu, não houve problema nenhum”, diz ela.
“Mas um dia, quando o peguei no colo, ele deu três suspiros e se foi”, recorda.
“Eu ainda estou de luto, choro todos os dias.”
Love não sabe a causa da morte do filho, porque não chegou a procurar um médico. Mas ela não é a única mãe na comunidade a enfrentar esse tipo de luto.
Patience Sunday e o marido Batom, que vivem do outro lado da cidade, também tiveram seu primeiro filho em outubro. E ele viveu por apenas poucas horas.
“Quando o bebê nasceu, ele não estava respirando. A enfermeira começou a cuidar dele e ele passou a respirar”, conta Patience.
“Então, levaram o bebê para dar banho, e ele faleceu.”
Barinaadaa Saturday e Chief Bira Saturday têm uma história parecida.
“Eu dei à luz e o bebê morreu na mesma hora”, afirma Barinaadaa, que guarda um retrato emoldurado do filho. Com um gorro de lã azul e rosa, ele parece estar dormindo.
O episódio ocorreu em 2014, mas Barinaada e o marido não conseguiram ter outro filho.
A propriedade do casal fica no local onde aconteceu o último grande derramamento de petróleo em K Dere, ocorrido no mesmo ano da morte da criança.
“Nossa área de cultivo está sempre cheia de óleo. Quando você vai lá, pode sentir o cheiro”, relata Chief Bira Saturday, que passou a sofrer de asma após o vazamento.
“O médico disse que esse óleo prejudicou o bebê no meu útero”, completa sua mulher.
Patience Sunday ouviu algo semelhante dos médicos quando estava grávida.
“O médico disse que eu não deveria sair na chuva ou usar água da chuva, porque a água da chuva contém óleo”, diz.
Todos os pais com quem a reportagem da BBC conversou citaram outros casos de casais que também perderam bebês recém-nascidos.
Assassino oculto?
Um estudo recente feito por um grupo de cientistas da Universidade de St Gallen, na Suíça, pode dar algumas pistas sobre o que está ocorrendo com os bebês da região.
Segundo a pesquisa, crianças nascidas a um raio de 10 quilômetros de um derramamento de petróleo têm duas vezes mais chances de morrer no primeiro mês de vida.
O estudo é baseado inteiramente em dados. Foram usadas duas bases de informação – o monitor de derramamento de óleo da Nigéria, que registra a hora e o local dos vazamentos, e a pesquisa demográfica de saúde, que compila os nascimentos no país.
Os cientistas buscaram dados de crianças concebidas após um derramamento. Em seguida, compararam seus indicadores de saúde com os de seus respectivos irmãos nascidos antes do vazamento.
Na comparação, os pesquisadores excluíram algumas variáveis, como pobreza, dieta alimentar e saúde dos pais, uma vez que irmãos encontram-se inseridos na mesma realidade.
O resultado mostrou que as crianças concebidas após derramamentos de petróleo tinham duas vezes mais chance de morrer no primeiro mês de vida.
“O efeito (do derramamento de petróleo na saúde dos recém-nascidos) foi muito maior do que o esperado – mais abrangente e duradouro”, explica Roland Hodler, professor de economia na Universidade de St Gallen e coautor do estudo.
“Descobrimos que mesmo quando há um vazamento de óleo três ou quatro anos antes da concepção, ele ainda tem forte impacto em um futuro recém-nascido”, acrescenta.
O estudo não aborda, no entanto, o que exatamente pode estar provocando essas mortes. Surpreendentemente, há pouca pesquisa sobre os efeitos da exposição ao petróleo não processado na saúde humana.
Quando o petróleo bruto é derramado na terra, ele se infiltra no solo, vai para os lençóis freáticos e contamina o ar. Além disso, libera substâncias químicas que são nocivas – como benzeno e tolueno. O benzeno tem propriedades cancerígenas conhecidas, enquanto o tolueno pode causar danos ao rim e ao fígado.
Além disso, muitos vazamentos em campos de petróleo terrestres provocam incêndios, liberando uma fumaça tóxica que pode gerar problemas respiratórios.
“Quando o sistema respiratório está bloqueado por essas partículas, causa problemas de saúde como asma, bronquite, enfisema. Sentimos sonolência, falta de concentração”, explica Vincent Weli, especialista em poluição do ar na Universidade de Port Harcourt, na Nigéria.
“Se mulheres grávidas forem expostas ao petróleo bruto e inalarem essas emissões, a formação do feto será afetada”, completa.
É impossível saber se o petróleo foi a causa da morte das crianças citadas nesta reportagem. Mas não é difícil de acreditar que isso possa estar acontecendo em K Dere.
A poucos quilômetros das casas dos pais entrevistados pela BBC, avistamos um dos locais em que houve vazamento. Até onde a vista alcança, a terra verde está coberta de manchas chamuscadas e escuras, repleta de piscinas de petróleo bruto, com seu inconfundível brilho negro e pegajoso.
Há centenas de derramamentos de petróleo todos os anos na Nigéria, provenientes de oleodutos de diferentes companhias. Mas os vazamentos ocorridos especificamente nessa região do país são originários de dutos operados pela Shell.
Posicionamento da Shell
A empresa assumiu a responsabilidade por dois derramamentos em K Dere – em 2009 e 2012. Mas, quando foi procurada para se posicionar sobre o conteúdo desta reportagem, a companhia informou que não tinha nada a comentar.
Em relação ao vazamento de 2009, a Shell afirmou que foram feitos esforços para limpar a área, mas foram suspensos devido ao “grande desafio de acesso à região de Ogoniland”.
Ogoniland é onde fica K Dere, palco de diversos protestos da população contra os danos ambientais provocados pela indústria petroleira na região.
A Shell disse ainda que a agência governamental nigeriana de detecção e controle de derramamentos de petróleo certificou a área onde os trabalhos de recuperação ocorreram e afirmou que as pessoas afetadas foram indenizadas.
Já sobre o vazamento de 2012, a petroleira disse que não pagou indenização porque “terceiros não foram afetados”.
Em relação a ambos os derramamentos, a empresa declarou que “está sendo feita uma análise detalhada para encerrar qualquer assunto pendente o mais rápido possível”.
Legalmente, é responsabilidade da empresa responsável pelo oleoduto limpar qualquer vazamento dentro de 24 horas.
Segundo a Shell, a impopularidade da empresa em Ogoniland tem dificultado a realização do trabalho de limpeza com segurança. A companhia também tem dito que muitos derramamentos foram criminosos.