Da porta de casa, no Largo das Mercês, a professora de português Leonor Gomes, de 79 anos, acena para os amigos que passam na rua de pedras, observa o vaivém de turistas e admira a paisagem da cidade onde nasceu, cresceu e sempre teve participação comunitária. Hoje, quando Tiradentes, na Região do Campo das Vertentes, comemora 300 anos da criação da primitiva Vila de São José que deu origem ao município e abre oficialmente a 21ª Mostra de Cinema, a aposentada reitera o amor por tanta história e se entusiasma com uma missão divertida: comandar, amanhã, às 16h, o Bloco Palhaçada, uma das atrações do cortejo que tomará conta da cidade. “Gosto de me comunicar com os jovens, gosto da vida”, conta Leonor, aposentada, solteira e residente num casarão “com quase a mesma idade de Tiradentes”.
Sentada no banco em frente da casa bem preservada, Leonor resume a história do seu tempo em duas fases. “Convivemos no passado com uma pacata cidade, quando o único trabalho era a indústria de telhas e tijolos, o artesanato de joias e objetos de prata e a lavoura. Mais tarde, surgiram talentosos artistas com matéria-prima diferenciada e fizeram a diferença. Deste modo, a cidade, lentamente, foi conquistando espaço e se modificando, adquirindo novo perfil, com pousadas, lindos cenários para gravação de novelas e eventos diversos. A cidade ocupa agora seu lugar ao sol, mas nem por isso deixou de ser uma cidadezinha do interior”.
Emoldurada pela Serra de São José, com sete igrejas, cinco passos da Paixão de Cristo, construções barrocas e conjunto urbano tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), Tiradentes em mesmo a cara de uma cidade do interior mineiro. Com uma série de atrações, incluindo cinema (até dia 27), fotografia (17 de março), festival de gastronomia (24 de agosto a 1º de setembro) e Bike Fest (de 20 a 22 de julho), a cidade de 7,5 mil habitantes quer se internacionalizar mais, diz o secretário de Turismo, Cultura e Esportes, Moisés Oliveira. O objetivo é lançar uma campanha na Europa, nos Estados Unidos e na Índia criando laços por meio de cidades-irmãs, e também na Índia.
DIÁLOGO FORTE “Queremos atrair mais visitantes, dialogar forte com o governo de outros países a fim de divulgar nosso projeto”, afirma o secretário. Com diferencial, ele diz que a cidade chega aos 300 anos com um patrimônio muito bem preservado, sem modificações na arquitetura barroca e mão de obra qualificada para atender o visitante. O prefeito José Antônio do Nascimento adianta que trabalha para construção de um memorial em homenagem a Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes (1746-1792), nascido na Fazendo do Pombal, que pertencia ao Termo da Vila de São José.
Morador do Bairro Pacu e bem da Serra de São José, José Domingos de Souza, o José Machado, de 75, ourives, pedreiro e trabalhador numa fazenda de produção de leite, tem um sentimento de gratidão em relação aos turistas. “Eles fazem Tiradentes”, afirma o homem casado há 49 anos com Maria Trindade da Silva, com três filhas e seis netos. “Tudo era 95% diferente, a cidade era muito pobre, não tinha serviço. Devemos muitos aos que vieram de fora, muitos deles estrangeiros falando francês, espanhol, alemão e inglês, construíram pousadas. Para ter uma ideia, em 1960 havia apenas uma pensão aqui. Emprego, só na roça”, conta José Machado, que tem esse apelido porque, na família, todos sabiam manejar a ferramenta para fazer carros de boi.
Mesmo bem preservada, a cidade ainda enfrenta desafios, os quais são apontados pelos turistas. Um deles é concluir a requalificação, iniciada há dois anos, do calçamento no Centro Histórico. Quem visita a Matriz de Santo Antônio, por exemplo, não deixa de se espantar com as pedras soltas, buracos e desnivelamento das pedras.
Crônicas do Rio das Mortes
Pesquisador do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), integrante do Instituto Histórico e Geográfico de Tiradentes e correspondente do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais na cidade onde nasceu, Olinto Rodrigues dos Santos Filho afirma que os habitantes devem celebrar a data principalmente por ter um patrimônio tão bem preservado. Para o aniversário, ele escreveu um texto, explicando que “consta nas crônicas antigas que o arraial que deu origem a vila surgiu lá por volta de 1702, quando o ouro se manifestou da Região do Rio das Mortes, pela primeira vez. Escrevendo em 1730, o capitão José Matoll, um dos mais antigos moradores da região e ativo nos conflitos da Guerra dos Emboabas, descreve de memória os descobrimentos e criação dos arraiais, por solicitação do padre Diogo Soares, documento guardado na Biblioteca Distrital de Évora, Portugal”.
Ao narrar a história, Olinto conta que “outros relatos dão conta que quem descobriu os veios de ouro foi o taubateano João de Siqueira Afonso, que tinha se hospedado em casa de Thomé Portes d’El Rei. João Siqueira Afonso já tinha experiência como minerador, pois havia descoberto as minas de Guarapiranga e do Arraial do Sumidouro, enquanto Thomé Portes havia se estabelecido às margens do Rio das Mortes, explorando a passagem do Porto Real para quem ia de São Paulo para as minas de Ouro Preto e Sabará, ditas então Minas Gerais, e fornecia hospedagem e mantimentos para os viajantes. Mas como autoridade (Guarda-Mor substituto) lhe coube demarcar e distribuir as novas minas descobertas”.
E mais: “O ouro foi explorado nos leitos dos rios e córregos, nas encostas dos morros e sempre em grande quantidade, o que fez com que muitos aventureiros acorressem ao lugar numa corrida desesperada, e criando conflitos entre os paulistas e taubateanos descobridores das minas e os advindos do reino e de outras paragens da colônia. O conflito iniciado em Caeté foi tomando conta de todos os arraiais auríferos até desembocar no Rio das Mortes, onde batalhas sangrentas vão pôr fim a chamada Guerra dos Emboabas, lá por volta de 1709. Apaziguados os ânimos, o Arraial Velho de Santo Antônio foi crescendo e a pequena capela bandeirante tornou-se matriz por volta de 1710. (…) Em 8 de dezembro de 1713, o governador D. Brás Baltazar da Silveira cria no Arraial Novo a Vila de São João del Rey, que também é cabeça da Comarca Judicial e Eclesiástica do Rio das Mortes.
Olinto informa que “além da documentação registrada no Livro primeiro de acórdãos e criação da Villa de S. Joseph, que hoje faz parte do acervo documental da IHGT, o governo registrou no livro de Termo nº 05 da Secretaria de Governo 1709-1754, um “Assento q. se tornou sobre a Erecção da Va de S. Joseph do Rio das Mortes” datado de 19 de janeiro de 1718, em que aceita os argumentos contidos na petição tinha “resoluto mandar levantar hua Villa no do Arrayal com a denominação de S. Joseph…” O nome da vila foi dado em homenagem ao príncipe D. José (1714-1777), àquela época com apenas quatro anos de idade.