Com o decreto editado por Temer (9.254/2017), é a terceira vez, desde 2010, que o governo federal estica o prazo para que as administrações municipais estabeleçam um plano para cuidar do lixo e do esgoto que produzem, contrariando os limites previstos pela lei de diretrizes de saneamento básico. E seriam muitas prefeituras em Minas Gerais sem qualquer acesso a fundos de saneamento, já que, dos 853 municípios, apenas 231 (27%) concluíram o PMSB, segundo listagem do Ministério das Cidades.
A medida serviu, por outro lado, como alívio para prefeituras que sujeitam sua população a esgotos a céu aberto, lixões e a uma farra na implantação de Estações de Tratamento de Esgoto (ETE) que custam milhões mas simplesmente não funcionam.
Na bacia mais fragilizada pela poluição em Minas Gerais – e uma das piores do Brasil –, a do Rio Doce, apenas 10 (9,8%) dos 102 municípios da área minera tratam o seu esgoto antes de lançá-lo nos mananciais. A elasticidade do prazo deu mais tempo a prefeituras, que levaram oito anos para editar o plano e não o fizeram, como também ao Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio Doce (CBH-Doce), que havia se comprometido a ajudar as administrações municipais a produzir o PMSB com recursos referentes ao uso das águas do Rio Doce.
Para se ter uma ideia, a maior cidade da bacia federal, Governador Valadares, com 264 mil habitantes, coleta quase 94% de seu esgoto, mas despeja 100% do que é captado diretamente em mananciais d’água, ou seja, tudo isso acaba no Rio Doce. Desde 2013, está prevista a construção de duas ETEs no município, mas tais estruturas ainda não foram feitas.
Também se beneficiou a Fundação Renova, entidade criada para gerenciar e executar a recuperação dos danos do rompimento da Barragem do Fundão, em 2015, após um acordo entre a Samarco, que operava a estrutura, a Vale e a BHP Biliton, controladoras da mineradora, a União e os governos de Minas Gerais e do Espírito Santo. Entre as diretrizes de planejamento da Renova consta a “Ação 31: Coleta e Tratamento de Esgoto”, que previa R$ 500 milhões para a “elaboração de planos de saneamento básico, projetos de sistema de esgotamento sanitário, implementação de obras de coleta e tratamento de esgoto, erradicação de lixões e implantação de aterros sanitários regionais”, segundo tal planejamento.
Em paralelo à benesse em forma de prazos, segue o sofrimento de quem fica exposto a esgoto e lixo. Em Caratinga, onde apesar de 82,79% dos esgotos serem captados, todo o resíduo produzido pela população de 74 mil habitantes acaba nos córregos e cursos d’água, que invariavelmente ingressam no Rio Caratinga, um dos afluentes do Rio Doce.
Os reflexos disso são sentidos pouco depois do território municipal. Apenas cinco quilômetros depois do limite com a vizinha Ubaporanga, o pesadamente poluído Rio Caratinga tem suas águas sugadas por uma bomba flutuante que abastece a Estação de Tratamento de Água (ETA). Essa mesma água precisa ser intensamente tratada para chegar minimamente consumível às torneiras e aos copos dos moradores de Ubaporanga. As mesmas águas irrigam extensos campos de hortaliças e matam a sede dos rebanhos de gado.
Valão
Um dos casos mais gritantes de esgoto a céu aberto na Bacia Hidrográfica do Rio Doce é o de Vargem Alegre, a 40 quilômetros de Caratinga. Apesar do nome, que remete a um alagadiço ribeirinho de astral tal que torna as pessoas mais felizes, o pequeno município de 6.500 pessoas é cortado por um antigo curso d’água que se tornou um fosso de esgoto cinzento e ganhou o apelido de “valão”. Esse duto de resíduos fétidos e insalubres percorre canais estreitos entre barracos de tijolos sem reboco, recebendo adições ao longo do seu caminho de mais esgoto doméstico vindo de sequências de encanamentos que pendem das habitações para dentro do curso.
Debaixo das pontes é que o grosso do esgoto satura as águas já escuras e sem vida. De manilhas e tubulações grossas escondidas da visão de motoristas e de pedestres pelas estruturas viárias, manilhas e encanamentos derramam ininterruptamente uma água de coloração negra que, ao se misturar no líquido cinzento, vai formando línguas escuras, que deixam o valão com um aspecto mais sombrio.
Um canal aberto e tão abandonado pelo poder público incentiva os próprios moradores a jogar ali mesmo o lixo doméstico que produzem, parte dele em sacos, um outro tanto atirado livremente, como embalagens de lanches que são descartadas após seu consumo, cotonetes que acabaram de ser usados, roupas sujas que não valem mais a limpeza e até papel higiênico posto fora pelas janelas.
Várias barreiras improvisadas para tentar conter as cheias desse rio podre seguem o curso estreito e cercado de casas e muros residenciais. São barreiras de sacos de areia e defesas de tábuas e estacas de madeira contendo aterros. Com a neta de 1 ano no colo, a dona de casa Adelaide Costa Marques, de 55 anos, e o funcionário público Rui Batista Marques, de 58, averiguam com os vizinhos o nível do esgoto para ver se as suas casas estão ameaçadas com as chuvas.