É impossível não comparar Kobane calling, do italiano Zerocalcare, a algumas obras significativas do norte-americano Joe Sacco – Palestina: nação ocupada, sobre o conflito no Oriente Médio, ou Gorazde, sobre a guerra da Bósnia. Assim como Sacco, Zerocalcare se aventura em uma zona de confronto para relatar, sob uma ótica bastante pessoal, tanto as origens e os horrores da guerra quanto, sobretudo, toda a humanidade contida nela.
Diferentemente do americano, porém, a constante mordacidade e autoironia de Zerocalcare é o elemento responsável pela narrativa ágil e moderna. Isso tudo com linguagem jovial e repleta de referências à cultura pop. Entre as tantas citações, há a franquia Star wars, o game Street fighter e o mangá Dragon ball.
Um dos pontos altos de Kobane calling talvez seja o fato de que se trata de uma obra dirigida ao público quase adolescente, que, em sua maioria, conhece pouco ou nada do que se passa na Síria.
Tudo começa em 2014, quando o quadrinista romano – ou, como ele sublinha, de Rebibbia, bairro residencial na periferia de Roma – é convidado por um jornal para ir ao Iraque, numa zona limítrofe da guerra civil síria. Lá, presta serviços comunitários em campos de refugiados e vê, de longe, a real extensão do conflito, que, àquela altura, já completara dois anos e se intensificara por todo o país.
Ao retornar à Itália, o artista se vê tomado por dilemas, como se algo faltasse em sua jornada. Alguns meses depois da primeira viagem, ele volta à Síria, desta vez rumo à cidade de Kobani, enclave de maioria curda, outrora dominado pelo Estado Islâmico e que acabara de ser libertado.
Para chegar lá, o italiano e seus amigos precisam atravessar zonas da Turquia, do Iraque e do Curdistão. É dessa viagem que trata a maior parte do livro. Permeada de humor e sarcasmo, mas ao mesmo tempo tocante e profunda, a HQ de Zerocalcare explica a intrincada guerra civil síria, apontando alguns de seus atores e desdobramentos.
Iniciada em 2011 sob influência da Primavera Árabe, cujos protestos iniciais foram promovidos principalmente por meio das redes sociais, a guerra na Síria já matou cerca de 400 mil pessoas, praticamente destruiu o país e, infelizmente, não está perto de acabar.
BLOG
Zerocalcare tem 34 anos e algumas obras publicadas, mas é por meio de seu blog e das redes sociais que se assenta a sua enorme popularidade, até entre o público não habituado a ler quadrinhos. Militante, ligado aos movimentos punk e do grafite, ativista dos centros sociais – casas comunitárias, comuns em grandes cidades europeias, onde jovens se reúnem para promover arte, cultura e ações humanitárias –, ele faz quadrinhos quase sempre autobiográficos.
Embora sua postura seja a de um crítico que prefere se posicionar a se omitir, o retrato que faz de si próprio é, com frequência, o de um jovem com fragilidades e manias. Ou seja, procura desmistificar a própria imagem, mas de forma leve e bem-humorada. Em Kobane calling, é hilário seu quase histriônico vício pelo “tchai”, a infusão que os sírios tanto apreciam e consomem.
Recém-lançado pela Nemo, Kobane calling, sucesso em toda a Europa, é obra fundamental não apenas para que se conheça o talento do jovem e brilhante quadrinista Zerocalcare, mas principalmente para trazer a luz à guerra na Síria, mais um ato de horror da grande tragédia moderna da humanidade.
* Fabiano Barroso é quadrinista e pesquisador de arte sequencial
KOBANE CALLING
. De Zerocalcare
. Nemo
. 272 páginas
. R$ 50
*Com Uai