Já faz alguns anos que Martinho da Vila vinha fazendo críticas às escolas de samba, ao Carnaval, aos sambas-enredos que já não queriam dizer mais nada, provocar nada, passar mensagem alguma. O enredo, explicou em inúmeras entrevistas, sempre teve função de fazer pensar, refletir. Nos últimos tempos, contudo, ele passou a ser feito apenas para levantar arquibancada, fazer festa. Contudo, durante as comemorações de seus 80 anos, completados em 12 de fevereiro, Martinho viu a coisa mudar. Primeiro, com o desfile histórico da Paraíso de Tuiutí que fez críticas duras ao Governo Temer, criando uma caricatura monstruosa do presidente, e ironizando símbolos e manifestações de 2016, que convergiram para o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff. Depois, com o enredo da Beija-Flor, repleto de críticas ao sistema político.
No sofá de seu apartamento na Barra da Tijuca, zona oeste do Rio de Janeiro, em um condomínio de prédios circundados por um campo de golfe, o sambista se diz animado com a mudança. “Este Carnaval foi melhor do que os últimos e creio que no ano que vem as escolas já vão mais por onde a Beija-Flor e a Tuiutí foram”. Só que não vai muito além disso. Sobre o desfile da Tuiutí, que apesar de ter ficado em segundo lugar roubou a cena do Carnaval, por exemplo, diz que foi “corajoso, fantástico, muito, muito bom”. Mas não se alonga. É que Martinho, que nos últimos anos cobrou enredos menos água com açúcar, tem ele próprio evitado falar sobre política, justificando que está tudo muito incerto, muito confuso. Sorrindo, com provavelmente a arcada dentária mais branca e a maior simpatia do Brasil, diz que se o assunto da conversa com o EL PAÍS enveredar para política ele vai ir desviando, deslizando.
O problema é conseguir não falar de política. Por motivos óbvios, este é o principal assunto no Brasil faz, sei lá, pelo menos uns três anos. E tem outra coisa. O Martinho, por mais que nunca tenha composto música de protesto, nem tenha feito parte da geração artística que se engajou abertamente contra a ditadura civil militar, tem, sim, uma atuação política. Nos anos 1970, desembarcou em Angola para descobrir – “ninguém falava disso aqui no Brasil” – as guerras de independência dos países africanos, o pan-africanismo. Apaixonou-se. Promoveu uma troca cultural intensa entre o continente e o Brasil. Realizou por lá, por exemplo, o projeto Kalunga, em que Dorival Caymmi, Clara Nunes, João Nogueira e outros bambas fizeram shows em Angola. Ficou conhecido como embaixador do país africano no Brasil. E, na década de 1990, fez campanha pela libertação de Nelson Mandela e pelo fim do apartheid sul-africano.
Assim, não por acaso, Martinho é reconhecido hoje como um dos expoentes do movimento negro no Brasil. Como não perguntar, então, de Marielle Franco, a vereadora carioca do PSOL executada a tiros em pleno centro do Rio? “O que aconteceu com ela acontece no Brasil toda hora. Mas a comoção que causou é um fenômeno. Muita gente que foi para a rua não conhecia ela. Eu mesmo não conhecia direito. É algo coletivo, que foi muito importante e que, com certeza, vai ter uma ressonância que ainda não sabem direito qual”, comenta. Mas cumprindo a promessa de que vai deslizar quando o assunto for política, Martinho para por aí. Por exemplo, o que acha da intervenção militar no Rio? “Não fiz nenhuma análise sobre isso, não sei, sei lá. Só acho que, como fui militar, o alto comando do Exército deve estar se perguntando como vai sair dessa, porque não tem plano, não foi feito com antecedência, mas de uma hora pra outra”, diz.
Em 1967, Martinho da Vila surgiu para o público durante o lendário Festival de Música Popular da Record com a música Menina Moça, mas só alcançou sucesso definitivo na edição seguinte, em que emplacou Casa de Bamba – “Na minha casa/ Todo mundo é bamba/ Todo mundo bebe/ Todo mundo Samba” –, um de seus maiores sucessos. O samba não ganhou prêmio nenhum, talvez vítima do fato de não ter conotação política – mais uma vez ela! – em tempos até mais políticos que os de hoje, mas sua qualidade é inegável. Tanto em Casa de Bamba, como em Menina Moça, a marca de Martinho já estava colocada. Em todos as músicas que fez a partir das duas, o sambista propôs uma releitura das raízes musicais brasileiras. Atualizou o chamado partido alto, estilo de samba com latente presença africana, trabalhou com o jongo, explorou a ciranda, a música caipira.
Ao longo dos anos, foi reconhecido como um dos maiores pesquisadores das origens da música brasileira e de festejos populares. Como viu muita coisa de perto, aos 80 anos poderia sentir saudade de viajar pelo país. Despachado, contudo, diz que viajou demais; por ele, ficaria ali na sua casa mesmo, tranquilo . “É claro que o sujeito tem de viajar, uma coisa é saber o mundo pela internet, outra e ir lá e comprovar, mas hoje as diferenças culturais estão se apagando. Quando eu viajei para o Sul do país pela primeira vez, por exemplo, tudo era diferente. Havia um tipo gaúcho, chamava-se pilchado, eles usavam aqueles trajes característicos. Hoje não existe mais isso. Tudo mudou, mudou para ficar igual”, diz. “O capitalismo criticava o mundo árabe e comunista porque eles eram muito padronizados. Quem é padronizado agora? Tá tudo igual, perdeu um pouco a graça”, estende-se em uma análise.
Ele diz, contudo, que nada disso o angustia, repetindo uma espécie de bordão sorridente: “Eu só vou vivendo, eu só vou fazendo”. Mas se as raízes são tão importantes em sua obra, o que significa a palavra ancestralidade para você, Martinho? “Eu sou católico de formação, mas não deixo de dar bom dia para o dia e saravá meus orixás, entendeu? Quer dizer, eu tenho uma dose branca grande na minha ancestralidade, mas a admiração está na parte negra. Eu não posso me vangloriar do meu lado branco, porque ele foi o opressor do negro. Mas isso é uma palestra longa, complicada”, despista. O contato com o passado, então, é algo que está não só em sua obra, mas também em sua vida? “É. A coisa tem que andar, vai seguindo, mas a gente não pode perder o passado como referência. Tem um samba do Paulinho da Viola que diz: ‘pensa no futuro, não esquece do passado”, diz.
Volta e meia, o Martinho diz que se senta no sofá da varanda de seu apartamento e olha ao redor. O chão de porcelanato branco, o computador da Apple, os quadros do pintor Heitor dos Prazeres nas paredes e exclama para ele mesmo: “Que legal!”. “Estou aqui, hein? Nasci na roça, em Duas Barras, morei em barraco de zinco na favela, sem água, sem luz, e agora cheguei aqui. E aí penso que eu nunca vou abandonar tudo isso. É algo que guardo e lembro sempre”, diz. E com uma obra – de livros e letras de samba – tão voltada para a rua, para a convivência da rua, não dá uma saudade da Vila Isabel aqui na Barra? “Eu gosto daqui, não quero voltar, a vida mudou, mas de uma coisa sinto falta: de como as coisas eram interligadas lá. Se você quiser entrevistar alguém da Vila Isabel, que você não sabe onde mora, você descobre rapidinho. E aqui? De jeito nenhum. Quer saber quem mora naquele prédio ali do lado? Impossível”.
Aos 80 anos, Martinho diz não ter angústias ou arrependimentos, passa por cima dos temas que lhe parecem espinhosos, mas vai deixando pistas do que pensa, de como vê as coisas. Acredita que a população negra precisa estar em todos os espaços possíveis, assim, faz alguns anos lançou sua própria candidatura para a Academia Brasileira de Letras. Não recebeu votos, mas não era isso que estava em questão. Por isso, comemora o reconhecimento que escritores negros, como Carolina Maria de Jesus, estão ganhando e reconquistando nos últimos anos. E por trás da alegria contagiante de Martinho, e entre seus muitos sorrisos, não há alguma raiva escondida, advinda talvez dessas lutas? “Não. Acho que ninguém precisa ter raiva. A raiva faz mal apenas para quem sente a raiva. É igual a inveja, que só afeta o invejoso. O cara que tem raiva, não raciocina, não faz as coisas direito, não executa sua ação”, diz. E, em tempos raivosos, sua filosofia chega a soar como uma utopia.(El País)