Quando o publicitário francês Stéphane Heuet decidiu transpor para o universo das HQs os sete volumes de “Em Busca do Tempo Perdido”, o clássico de Marcel Proust (1871-1922) cuja leitura é um desafio até para os mais inveterados leitores, houve quem não recebesse a iniciativa com bons olhos. Fato é que a crítica acabou avalizando a “ousadia”, que, vale dizer, não entrou em cena com o objetivo de “mastigar” o conteúdo do original para o leitor apressado, e sim de apresentar uma versão do texto em outro registro.
Verter clássicos para o universo das HQs, claro, não teve seu marco inicial com a obra de Proust. Tampouco parou por aí. Um dos mais recentes exemplos lançados no Brasil é “O Velho e o Mar”, no qual o francês Thierry Murat coloca seu traço a serviço da obra de Ernest Hemingway (1899-1961).
Precisar a pedra fundamental desse movimento que tem ganhado fôlego nos últimos anos não é tarefa das mais fáceis. Mas o quadrinista Wellington Srbek e o curador do Festival Internacional de Quadrinhos (FIQ), Fabiano Azevedo, lembram as “Classics Illustrateds”, dos anos 40, que, no Brasil, viraram a “Edições Maravilhosas”, publicadas pela Ebal.
“No começo, a Ebal apenas traduzia as histórias – adaptações de obras como ‘Os Três Mosqueteiros’, ou ‘Ivanhoé’. Mas rapidamente passou a produzir obras nacionais, como ‘O Guarani’, de José de Alencar, ‘Cabocla’, de Ribeiro Couto, e ‘Cangaceiros’, de José Lins do Rego”, lembra Azevedo.
Mesmo se a coleção não dá mais o ar da graça, Srbek reconhece que, nos últimos anos, houve “um interesse editorial renovado pelo gênero quadrinístico”. Tanto para ele quanto para Azevedo, em grande parte esse fenômeno deve-se a programas governamentais de adoções de livros. “Como o Programa Nacional da Biblioteca na Escola (PNBE), que passou a ter os quadrinhos entre as formas de linguagem contempladas. Num primeiro momento, talvez as adaptações de clássicos da literatura tenham sido privilegiadas pela proximidade com a cultura literária escolar. Por esses fatores todos, em geral o público-alvo das adaptações são os jovens estudantes e também adultos de programas como o Educação de Jovens e Adultos (EJA)”, avalia Srbek.
Pesquisador do universo dos quadrinhos, o professor Felipe Muanis complementa: “As adaptações literárias atraem o público específico dos quadrinhos, claro, um público de curiosos e, acredito, o leitor de livro que não tem preconceitos, visto que algumas pessoas, talvez leitores mais ortodoxos de literatura, possam torcer o nariz para a adaptação, nem mesmo querer chegar perto. Os de cabeça mais aberta, ao contrário, vão querer conhecer a versão até para ver como é essa releitura do texto original em outra mídia e tal. Então, acho que a atração por esse tipo de leitura se dá por diversos tipos de público com interesses também bastante distintos”.
Miríade. Shakespeare, Allan Poe, Herman Melville, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, Machado de Assis. São vários os totens da literatura que já tiveram suas obras adaptadas para o quadro a quadro. “Recentemente, li ‘Jubiabá’, de Jorge Amado, e achei muito bacana. Também comprei ‘Grande Sertão: Veredas’, mas ainda não tive tempo de ler”, diz Muanis.
O próprio Srbek, enquanto editor, criou a série “Shakespeare em Quadrinhos”, para a qual selecionou duplas de autores para adaptar seis das principais peças shakespearianas. “Por também ser autor, traduzi e roteirizei ‘Hamlet’, que não fez parte daquela coleção, mas saiu pela mesma editora (Nemo). Em todos os casos, a premissa básica era a fidelidade à história original e a busca de uma adaptação criativa para a linguagem dos quadrinhos”, explica o mineiro, que, enquanto roteirista, adaptou, ainda, “Memórias Póstumas de Brás Cubas” e “Dom Casmurro”, de Machado de Assis. “São meus trabalhos mais bem-sucedidos no campo das adaptações”, avalia, frisando que nenhuma adaptação substitui a obra original. “O objetivo, em todos esses trabalhos, além de homenagear os grandes autores, foi criar uma ponte entre os textos clássicos e os jovens leitores de hoje”, estabelece. (O Tempo)