Não
Um corte no tempo, chegamos a 2018 e as redes voltam a estar no olho do furacão. Desta vez, no entanto, a perspectiva se inverte: vistas como espaço de disseminação de notícias falsas, as chamadas “fake news”, apontadas como criadoras de bolhas ideológicas, responsabilizadas pela radicalização de seus usuários, lugar onde são perpetuados discursos de ódio… No lugar de esperança, as mídias – outrora celebradas – agora inspiram o medo, ironicamente, de corroer a democracia.
Impossível não se perguntar: o que aconteceu para que de um extremo essas mesmas mídias fossem para outro em um espaço tão curto de tempo? “Não acredito que a internet tenha mudado tanto em poucos anos, o que mudou foi nossa leitura sobre ela”, assegura Joana Ziller, pesquisadora do Núcleo de Pesquisa em Conexões Intermidiáticas (Nuccon), da UFMG. A afirmação encontra concordância nas observações de Luciana Andrade, estudiosa das redes e doutoranda em comunicação pela UFMG, para quem tais interpretações saltaram de um mito para outro.
Mas há quem, de fato, perceba uma mudança geral de clima nesses espaços e prefira até mesmo fechar suas contas e sair desse “lugar hostil”, como classifica Camila Lopes, estudante de Letras da UFMG. “Senti alívio desde que apaguei meu Facebook”, diz ela, que está há cerca de dois meses longe da rede Mark Zuckerberg. A moça, vale dizer, não está sozinha quando diz da sensação de um mau humor crescente no ambiente digital. De 2016, um estudo do Pew Research aponta que 49% dos norte-americanos percebem que as conversas políticas estão mais ásperas nas redes sociais.
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Longe do universo presidido por Zuckerberg, Camila avalia que perdeu pouco. Alguns contatos, claro, ficaram por lá. Mas o desgaste e a ansiedade diminuíram radicalmente, garante. “Ficava o dia todo acompanhando o que as pessoas estavam falando – e, em geral, elas estavam se ofendendo. Agora, eu tenho mais tempo, posso ler mais, estudar mais…”, comenta ela. Mesmo quando usava o Facebook apenas para um escape, ao se divertir com memes e outras situações, a estudante considera que “ficava tempo demais acompanhando algo que não me trazia nada de muito proveitoso”.
A julgar pelos recentes escândalos de que a maior rede social do mundo, que reúne mais de 2 bilhões de usuários, é alvo, é possível que Camila encontre mais adeptos à escolha de se desligar. Acontece que dados de 50 milhões de norte-americanos, colhidos no Facebook, foram usados para influenciar a eleição de Donald Trump <FI10>(veja mais na página 4)</FI>. Desde então, a campanha #DeleteFacebook ganhou audiência em outra rede: o Twitter – que também é acusado de ser um espaço de disseminação de “fake news”.
Estranhamento
Reconhecendo estranhamentos ao se debruçar sobre seu cotidiano nas redes sociais, a diretora teatral Michelle Barreto preferiu não fechar contas. Suas latentes observações se converteram no argumento da peça “19ª Conferência para o Fim do Mundo”. “O espetáculo partiu muito do pensamento sobre os discursos, necessidade de falar e estabelecer nossas convicções”, explica a diretora. Assim como Camila, ela observa que “sempre nos pegamos lendo coisas nessas mídias e acreditamos que estamos construindo conhecimento, mas muitas vezes são completamente banais”, reflete. “Eu me pergunto muito se esses discursos que a gente reproduz são nossos, ou estamos apenas reproduzindo o que lemos superficialmente”, critica.
Se dando conta de quão imersa estava, Michelle mudou de postura e tomou algumas iniciativas para garantir uma presença mais proveitosa nas mídias sociais. No smartphone, ela tem um aplicativo que bloqueia o uso das redes depois de determinado tempo de utilização. Assim, diz, quer priorizar os contatos “face a face”.
Bem, mas maldizer as redes sociais, insinuar que é delas e apenas delas a culpa da radicalização e de um certo mau humor generalizado não é muito promissor. É o que examina a pesquisadora Luciana Andrade. “Tudo isso é, antes de tudo, social, político e econômico antes de ser tecnológico”, pondera, lembrando ainda de situações como o encolhimento global do PIB como elementos externos que compõem esse contexto geral e, portanto, dizer que a culpa fosse só da internet seria uma simplificação. Para ela, aliás, era um equívoco creditar ao digital a responsabilidade pelas erupções sociais que tomaram o país em 2013.
“Esse desgaste nos debates online são a ponta do iceberg”, postula Luciana. “Todas essas discussões que estão bem tônicas no ambiente de trabalho, no bar, na família… A rede apenas amplifica”. Tais observações são ratificadas por Joana Ziller. “A internet contribui na visibilidade das pautas, possibilita algo novo: que as demandas encontrassem eco, que elas reconhecessem outras com interesses afins”, situa. “Mas nem sempre essas bandeiras são éticas. Um neonazista, por exemplo, vai encontrar outro que vai reforçar suas crenças com mais facilidade”.
Luciana pontua, ainda, que tanto a visão idealizada da rede quanto a demonizada não procedem. “Quantas pessoas realmente têm acesso e estão inseridas nessas plataformas? E, mesmo as que estão, passam pela mediação de grandes corporações… Então, não é tão democrático como parecia. Por outro lado, culpar totalmente a plataforma pelo cenário político e social atual é tirar toda nossa responsabilidade e jogar no algoritmo, algo que também não procede”.
A juventude e as redes sociais
De criador a opositor Fundador da rede de downloads que desafiou a indústria fonográfica na década de 1990, o Napster, e um dos principais impulsionadores nos primeiros anos do Facebook, Sean Parker se diz, hoje, um opositor das redes sociais. Sua principal crítica é o potencial viciante destes espaços virtuais: para que o usuário permaneça mais tempo logado, são criados mecanismos que liberam pequenas descargas de dopamina, garantindo pequenos instantes de felicidade, explorando uma “vulnerabilidade da psicologia humana”, para usar palavras dele. “Só Deus sabe o que isso está fazendo com o cérebro das crianças”, alardeou.
Juventude digital Professora do Departamento de Psicologia da UFMG e organizadora do livro “Juventude e Cultura Digital” (Ed. Artesã), Nádia Laguárdia busca em pesquisas da psicóloga norte-americana Sherry Turkle respostas a preocupação de Parker. “A autora chama a atenção para um sintoma que tem surgido nessa geração digital: a maior dificuldade de conversar presencialmente e de assumir a responsabilidade pela palavra”, indica ela. Para a pesquisadora, “o contato presencial favorece o crescimento pessoal, o respeito pelas diferenças e a implicação nos próprios atos”, o que acaba se perdendo no ambiente digital, “que envolve maior imprevisibilidade e menor controle”.
Educação Nádia observa, no entanto, que “os dispositivos tecnológicos estão cada vez mais presentes em nossas vidas, de forma irreversível” e, portanto, a “cultura digital não deve ser temida, mas também não pode ser idealizada”. O essencial, para ela, é “educar as crianças e os jovens para os impasses, dificuldades e possibilidades envolvidos no uso da internet, para que eles possam fazer um uso crítico, reflexivo, criativo e ético desse ambiente virtual”. Lembrando que “o ingresso nas redes sociais ocorre, ou deveria ocorrer, a partir da adolescência”, ela analisa que, “neste momento, é fundamental que os pais escutem o filho, cultivem um espaço para a palavra dentro de casa, demonstrando interesse pela vida do jovem, oferecendo apoio, respeitando a sua privacidade e favorecendo o seu desenvolvimento”.
Redes sociais na berlinda
O escândalo envolvendo o papel do Facebook nas eleições de Donald Trump, em 2016, e no resultado do referendo que determinou a saída do Reino Unido da União Europeia, o Brexit, colocaram o modelo de negócio das mídias sociais em xeque. Desde as denúncias de que a empresa britânica de marketing eleitoral Cambridge Analytica teria usado dados de mais de 50 milhões de norte-americanos para divulgar propaganda política e “fake news” sob demanda, favorecendo o candidato do Partido Republicano, nos EUA, e Brexit, no Reino Unido, muito se fala sobre o potencial corrosivo das redes para a democracia.
No Brasil, a disseminação de notícias falsas depois da execução da vereadora Marielle Franco, do PSOL, levantou sinal vermelho, indicando que as eleições deste ano tendem repetir as circunstâncias do pleito norte-americano. “O mais estranho é que essas ‘fake news’, em um primeiro momento, não parecem favorecer ninguém, apenas difamar a vereadora”, comenta a pesquisadora Luciana Andrade. Vale dizer, o uso de bots (robôs que imitam perfis reais) durante os protestos contra o Santander pela exposição Queermuseum em Porto Alegre, em 2017, aliás, já indicavam tal tendência.
É nesse contexto que as redes são postas na berlinda – e as saídas, ao que parece, não chegarão muito rapidamente. É no que aposta Davi Teófilo. Técnico em informática pelo Instituto Federal de Minas Gerais (IFMG) e estudante de Direito pela UFMG, ele foi um dos jovens brasileiros que participaram do 12ª Internet Governance Fórum, organizado pela ONU, no Palácio das Nações, este ano.
Teófilo analisa que há uma série de problemas no modelo de negócio das redes sociais que, reunidos, formam um combo perigoso. “Os algoritmos tendem a dar visibilidade a notícias que causam espanto, aquelas manchetes caça-cliques, que são sensacionalistas e até falsas”, explica.
Um detalhe importante é que essas manchetes e notícias sensacionalistas ou falsas são distribuídas de forma que venham a confirmar as convicções do usuário. “Essas mídias conhecem você melhor que você mesmo e elas vão te entregar o que você quer ler, mesmo que seja mentira”, diz. Somadas, essas características contribuiriam para uma maior radicalização dos usuários.
Agora, sabendo da atuação da Cambridge Analytica, a pedra fundamental para o funcionamento das redes também passa a ser questionada. “O que eles fizeram foi subverter uma lógica desse ecossistema, que é a publicidade dirigida, mas no lugar de produtos, ofereceram uma interferência política”, explica Teófilo.
“Quando falo, em palestras, do volume de dados que entregamos para as redes, as pessoas ficam assustadas. Mas, quando explico que é tudo automatizado, que o objetivo é gerar padrão de consumo, o público se sente confortável porque parece inofensivo: eles só vão voltar a oferecer o mesmo tênis que você pesquisou há meses pela enésima vez”, comenta a pesquisadora Luciana Andrade. “Mas, se os votos de milhões são afetados, o buraco é mais embaixo”, diz ela, que acredita que 2018 será a prova de fogo. “Alguns candidatos já se preparam para usar robôs”, assevera.
Em busca de macro soluções
Membro do Instituto de Referência Internet e Sociedade (Iris), que realiza pesquisa para gigantes como o Google e o Facebook, Davi Teófilo acredita que a saída para a atual crise nas mídias sociais passa, necessariamente, pela sociedade civil.
“‘Fake news’ é um tema difícil de lidar”, diz o rapaz, lembrando que o tema está tão em voga que no Fórum Mundial da Internet, realizado pela ONU, foram nada menos que oito mesas de debates. “E nenhuma delas encontrou saída”, completa. Teófilo explica que não existem ferramentas de checagem que sejam eficientes.
“Não é algo que podemos deixar na mão do Estado”, diz, lembrando do risco de censura política. “Não podemos deixar na mão das empresas”, alerta, mencionando que é equivocado acreditar que os algoritmos sejam neutros – “eles carregam os preconceitos e visão de mundo de seus criadores”.
Caminhos
“O caminho que enxergo passa por uma lei de proteção de dados que também possa tratar de assuntos mais amplos, como as fake news”, observa. Na Europa, algo do tipo será implementado. “Mas não podemos simplesmente copiar, são realidades diferentes”. Teófilo vê com bons olhos o Projeto de Lei 5276, de 2016, “que foi produzida dentro do Ministério de Ciência e Tecnologia com audiências com a sociedade civil”.
Além disso, tanto Teófilo quanto Luciana Andrade indicam que o melhor caminho passa pela educação e por campanhas de conscientização sobre o uso das redes. “Precisamos colocar esse debate no meio público, criar uma educação digital… O problema é que para isso precisamos sair do plano das ideias e melhorar a infraestrutura, ter computadores nas escolas…”, critica Teófilo, para quem só assim haverá um amadurecimento digital.
Driblando algoritmos
Furar a bolha As redes, é verdade, viabilizam o encontro de ideias afins. Por outro lado, tal lógica tende a criar as “bolhas ideológicas”. Pesquisadora do Núcleo de Pesquisa em Conexões Intermidiáticas da UFMG (Nuccon), Joana Ziller acredita que é possível abrir frestas. “Nas minhas redes há pessoas com quem discordo veementemente. Mas não excluo. O principal caminho é fazer na rede social o que você faz na vida e respeitar a opinião do outro”, diz.
Sempre desconfiar No Brasil, 78% da população se informa pelas redes sociais e 42% assume já ter compartilhado notícias falsas, de acordo com estudo realizado pela agência Advice Comunicação Corporativa, em 2016. “A checagem de informação é imprescindível: notícia sem autoria, site suspeito, dado sem fonte, uso excessivo de adjetivos e generalizações devem levantar o sinal vermelho”, aconselha a doutoranda Luciana Andrade.
Face a face “Criar outras formas de diálogo e debater fora das redes. Gosto do conceito de transmídia que englobe tanto o on quanto o off”, indica Luciana sobre a necessidade de levar as pautas em voga na rede para o tête-à-tête.
Privacidade zero “Precisamos manter o senso crítico e ter em mente que nada nas redes é privado e os rastros são regra”, avisa Joana.
Eleições nos EUA
Entenda o caso Cambridge Analytica:
Kogan Em 2014 o professor Aleksandr Kogan, da Universidade de Cambridge, cria aplicativo para fins acadêmicos e, com aval do Facebook, obtém dados de 270 mil usuários.
Cambridge Analytica Empresa britânica compra o banco de dados e consegue informações também de amigos destes perfis, totalizando acesso a informações de 50 milhões de pessoas.
Facebook Rede social descobre vazamento em 2015 e exige exclusão destes dados, mas não notifica usuários.
Trump Informações são usados para influenciar eleitores dos EUA: ciente de preferências pessoais e políticas, empresa cria propaganda que, por exemplo, agrada fãs de Kit Kat ao mesmo tempo que faz campanha contra Israel.
Queda Países de todo o mundo cobram explicações da cúpula do Facebook e da Cambridge Analytica. As ações da rede despencaram 6,8% (US$ 50 bilhões) – tendência acompanhada por outras empresas de tecnologia, como Google e Amazon.
Mudança Davi Teófilo, do Instituto de Referência em Internet e Sociedade, acredita que a queda das ações tem relação com o temor do mercado quanto à regulação sobre a principal commodity das redes sociais: os dados dos usuários.
*Jornal da Pampulha