O Brasil ameaça endurecer o jogo contra os refugiados da Venezuela. Na semana, o Supremo Tribunal Federal (STF) deu prazo de 30 dias para a União se manifestar a respeito do pedido de fechamento temporário da fronteira com o país, feito pela governadora de Roraima, Suely Campos. Outro destino dos emigrantes, a Colômbia, também estuda medidas rígidas para solucionar o caos instalado com a chegada de 600 mil venezuelanos em suas terras, segundo as Nações Unidas, nos últimos três anos. O cerco se fecha. E sem perspectivas de asilo, trabalho e boas condições de vida no Brasil ou na Colômbia, resta aos refugiados do país de Nicolás Maduro se aventurarem em pontos mais longínquos na América do Sul, como Equador, Peru e Chile.
Viajando pelas Américas a bordo de um motorhome, nós cruzamos com uma multidão de refugiados na passagem da Colômbia para o Equador. Era para ser uma simples travessia de fronteiras. Passaportes para cá, documentos do carro pra lá, cartões de vacina, assinaturas e burocracias, tudo parte da rotina em nossas andanças por 59 países dos cinco continentes. Mas fomos surpreendidos com algo mais. Desta vez teve nó na garganta, um aperto diferente no peito, lágrimas (muitas lágrimas) e um sentimento de impotência que ainda nos paralisa. No Departamento de Migração, na Ponte Internacional de Rumichaca, passamos sete horas e meia na fila, de pé, ao relento, em um frio de 5 graus, ao lado de milhares de venezuelanos que, fugindo da miséria, da fome e da falta de perspectivas em um país devastado pela crise buscam nova vida longe de casa.
Durante 450 minutos, estivemos juntos, lado a lado, naquela fila infinita. Confesso que os primeiros momentos foram de susto (e me perdoem, mas também de um pouco de medo) diante de uma legião de refugiados. Na desordem da fila, houve empurra-empurra, bate-boca e até algumas cotoveladas. Mas o tempo e o cansaço fizeram com que tudo se acalmasse, inclusive o nosso coração. Conversa vai, conversa vem, e a multidão de venezuelanos começou a ganhar novos contornos aos nossos olhos. O que antes nos parecia um formigueiro humano em meio a um depósito de malas, sacolas e mochilas, aos poucos passou a ter identidade.
Quarenta mil pessoas deixam a Venezuela a cada mês em direção à Colômbia. Mas, naquela fila, eles eram para nós mais que simples números e estatísticas. Um homem de olhar assustado, vigilante com uma montanha de bagagens a cada passo na fila, era Pablo Mendez, de 31 anos. Ex-gerente de um supermercado, deixou dois filhos, a esposa e os pais em Caracas para tentar um emprego em Quito. Ao seu lado, tremendo de frio e de medo, estava Hugo Quispe, de 52, um policial obrigado a abandonar a carreira militar para buscar em Lima o sustento para a filha e a mulher. Carmem Alberto, de 49, fechou um restaurante na Venezuela e, junto do filho Carlos, de 28, antes estilista em uma marca de biquínis, pegou a estrada em busca de trabalho.
Histórias tristes estampadas no rosto de quem se viu obrigado a abandonar raízes e um porto seguro (agora tão inseguro). Em mais de sete horas de “vizinhança” na fila, estreitamos laços e, ao falar de tudo o que ficou para trás, Pablo, Hugo, Carmem e Carlos se emocionaram, e nós também. Com a voz embargada, Hugo não conseguiu pronunciar o nome da filha. “É pela minha menina que estou aqui”, disse, entre lágrimas. Pablo confessou ter fome. Na minha mochila sempre há Coca-Cola e chocolate (meus vícios) e, muito sem jeito, eu os ofereci ao venezuelano. Renato ficou sem graça, com receio de que meu ato parecesse uma esmola. Prontamente expliquei que aquilo não era comida, e sim um afago. Pablo me olhou nos olhos, sorriu e devorou tudo, como quem tem mais fome de comida do que de carinho.
Naquelas sete horas e meia, o medo que nos afligia virou compaixão, perplexidade e revolta. Já havíamos experimentado esses sentimentos em visitas a campos de refugiados de Myanmar, assentamentos de muçulmanos na Palestina e praças incendiadas no Centro do Cairo, logo depois de o Egito ser palco dos conflitos da Primavera Árabe. Mas, desta vez, na nossa América do Sul, foi diferente.
Miséria assola o país
O martírio desses venezuelanos que fogem da miséria e da crise que assola o país de Nicolás Maduro começa em Caracas. Na capital, eles tomam ônibus fretados em direção à Colômbia e outros países da América do Sul. São 850 quilômetros, feitos em aproximadamente 13 horas de viagem, até deixarem sua terra natal, na cidade fronteiriça de San António del Táchira, ainda na Venezuela. Depois, com todas as bagagens nas costas, é preciso caminhar mais dois quilômetros para cruzar a Ponte Simón Bolívar até o Departamento de Migração da Colômbia, na cidade de Cúcuta.
Já em território colombiano, os destinos são os mais diversos. Bogotá vive o inchaço de receber, segundo estimativas da Organização Internacional de Migrações (OIM), cerca de 15 mil venezuelanos por mês. Medellín assiste às suas comunas (favelas) superlotarem e os índices de criminalidade dispararem. E o que mais assusta os colombianos: a chegada de hordas de refugiados em pequenos povoados, como os charmosos vilarejos do Eje Cafetero, no Centro da Colômbia.
As cidades de Salento, Buenavista e Armenia, que vivem da produção do café, por exemplo, já sofrem com o desemprego das populações locais. “Os venezuelanos aceitam trabalhar em troca de um prato de comida e os empresários locais têm explorado esta mão de obra. Com isso, nosso povo perde o emprego”, conta o comerciante Jayme Sanchéz, também preocupado com a ocorrência de pequenos furtos na região. “Em Buenavista, cidade de 3 mil habitantes, nunca havia se roubado um celular sequer, e agora já não temos mais sossego.”
As filas nos postos de saúde da Colômbia só aumentam, faltam vagas nas escolas públicas para os filhos dos refugiados e a hospitalidade com os imigrantes nem sempre é grande. “Temos pena das pessoas que chegam famintas e queremos ajudá-las. São nossos irmãos e já receberam muitos colombianos lá nos tristes tempos das Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia). Mas já estamos nos cansando de ver o problema só aumentar, sem uma perspectiva de melhora”, lamenta a professora Gimena Soles. Com o cenário pouco promissor na Colômbia, resta aos venezuelanos se aventurarem em países vizinhos, como Equador, Peru e Chile.
Outro calvário começa aí. Milhares de refugiados que cruzam a fronteira da Venezuela com a Colômbia já embarcam em ônibus sucateados, sem itens básicos de segurança e conforto zero, para cruzar o país. Da Ponte Simón Bolívar, em Cúcuta, até a cidade de Ipiales, na fronteira entre Colômbia e Equador, são mais de 26 horas de viagem para percorrer 1.430 quilômetros em rodovias precárias, de pista simples e sem acostamento. Sem banho, dormindo no corredor ou nas duras poltronas do ônibus, milhares e milhares de venezuelanos desembarcam em Ipiales para enfrentar horas de espera nas filas do Departamento de Migração equatoriano, na Ponte Internacional de Rumichaca. E o clima nas cidades fronteiriças de Ipiales (Colômbia) e Tulcán (Equador) é de insegurança.
Até quando?
Temos plena consciência da bolha em que vivemos. Privilegiados por termos famílias sólidas, amigos leais, saúde, uma condição financeira estável e educação de qualidade, fazemos parte do seleto time com a chance de fazer escolhas na vida.
E uma pergunta nos persegue: até quando vamos continuar assistindo, paralisados, a esse triste espetáculo da humanidade? Somos todos irmãos, somos um único povo, mas que, divididos por estúpidas fronteiras, nos expulsamos da Venezuela, nos matamos na Síria, nos escondemos em campos de refugiados no Sudeste Asiático, nos perseguimos na África e nos odiamos no Brasil. Até quando?
Será que não aprenderemos nunca? Campos de concentração em Auschwitz, bombas atômicas sobre o Japão, genocídios na Indochina… nada disso nos serve de lição? Somos apenas um grãozinho de areia neste imenso universo. Mas, depois daquelas sete horas e meia na fila, nunca mais seremos os mesmos.
PERFIL
A Casa Nômade é um projeto do repórter fotográfico Renato Weil e da jornalista Glória Tupinambás para percorrer, até 2020, os extremos da América, de Ushuaia ao Alasca. Em três anos de viagem a bordo de um motorhome, eles já desbravaram os 26 estados brasileiros, Uruguai, Argentina, Chile, Bolívia, Peru, Equador e Colômbia, e agora seguem em direção à América Central. Juntos há 12 anos, o casal já viajou por 59 países dos cinco continentes e é autor de dois livros – A Casa Nômade pelo mundo (lançado em dezembro do ano passado) e O mundo em Minas (de 2015). (Estado de Minas)