Dois
A reportagem buscou estatísticas oficiais, ouviu especialistas de diversas áreas e pais de jovens que tiraram a própria vida para tentar traçar um panorama sobre o que a ciência sabe sobre o tema, como prevenir e qual o nível de risco quando o foco são os adolescentes.
Você vai ver nesta reportagem mais sobre:
- Números de suicídios no Brasil: 10.575 casos em 2016.
- Adolescentes: faixa etária tem dilemas específicos aos quais os pais devem ficar ligados.
- O que se sabe sobre as relações entre transtornos mentais e as causas dos suicídios.
- Reação das escolas após mortes em SP indica caminhos para lidar com o tema.
No Brasil, em 2016, foram registrados 845 suicídios de adolescentes – o número foi 0,7% menor que em 2015 e representa 8% dos casos de suicídio no país, que naquele ano ficaram em 10.575.
Apesar dos números, a prevenção do suicídio avança. Na década de 1980, estudo nos EUA afirmavam que essas mortes poderiam ocorrer por imitação. E esse trabalho reforçou a ideia de que “não podemos falar sobre o assunto”. Mais de 30 anos depois, a Organização Mundial da Saúde vai na direção contrária, dizendo que, sim, precisamos conversar sobre o suicídio.
“Não é proibido falar, só não podemos falar de forma errada. Não podemos glamourizar, nem ensinar técnicas”, diz o psiquiatra Antônio Geraldo da Silva.
OS DILEMAS DA IDADE
Se por um lado os adolescentes não são os que mais se matam, por outro a Organização Mundial da Saúde (OMS) aponta o suicídio como a segunda maior causa de mortes nessa época da vida.
Na cabeça de pais e educadores surgem as dúvidas: redes e universo digital, cobranças em casa e na escola, álcool, drogas, bullying… Não existe um motivo em comum entre todos os casos, mas a maioria deles está ligada de alguma forma a transtornos mentais, como a depressão. Vale lembrar que nem sempre a causa do transtorno é um problema de desequilíbrio químico – a saúde mental de uma pessoa pode ser afetada, por exemplo, pelo consumo excessivo de substâncias como álcool e drogas. Esse fator afeta todas as faixas etárias, mas entre os adolescentes ele ocorre em cenários específicos.
De acordo com o psiquiatra Enton Kanomata, do hospital Albert Einstein, um primeiro ponto da diferença entre os adolescentes e outras faixas etárias é que eles ainda estão concluindo seu desenvolvimento cerebral.
“Toda a parte mental deles está em desenvolvimento. A questão da resiliência e da capacidade de lidar com as frustrações podem não estar prontas”, afirma.
O psiquiatra Antônio Geraldo da Silva, da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) corrobora a tese e vai além, lembrando que o cérebro está em formação até os 22 ou 23 anos de idade.
“Nós estamos expondo esses cérebros em formação a vários tipos de estressores. (…) Isso leva à predisposição do aparecimento de doenças mentais, como a depressão”, diz.
Álcool e drogas
Referência na área, um estudo dos cientistas José Manoel Bertolote e Alexandra Fleischmann publicado há mais de 15 anos no periódico científico “World Psychiatry”, do Associação Mundial de Psiquiatria, até hoje é citado por especialistas.
Os pesquisadores analisaram os dados de 15 mil pessoas que se mataram em todo o mundo, entre 1959 e 2001. A conclusão: o maior percentual dos casos estava ligado à depressão (35,8%) e, em segundo lugar, estavam os transtornos decorrentes do abuso de substâncias lícitas, como o álcool e o cigarro, e também das ilícitas.
Em um cérebro totalmente desenvolvido, o excesso dessas substâncias já contribui de uma maneira negativa, de acordo com os psiquiatras. No caso dos adolescentes, pode ser ainda pior. É um dos motivos para a proibição da venda pela indústria nesta faixa etária.
“O uso de substâncias é o segundo fator que mais contribui para o suicídio, tanto por uma questão da alteração de humor devido ao uso, tanto quanto pelo uso agudo que, às vezes, podem levar à uma psicose induzida”, disse Kanomata.
Há, ainda, a suspeita de que alguns antidepressivos possam influenciar o “impulso” suicida. Não há um consenso entre especialistas, mas as bulas da maioria dos medicamentos trazem a informação de que “casos isolados de ideação e comportamentos suicidas foram relatados durante o tratamento”.
Segundo Kanomata, é preciso confirmar se esses casos isolados devido ao consumo de antidepressivos tinham uma causa direta: tomou remédio e teve uma reação adversa que trouxe o impulso suicida.
Há também outra hipótese: a ação antidepressiva, de melhorar o humor, leva de duas a quatro semanas para ter efeito na maioria dos remédios, segundo os psiquiatras. Enquanto isso, a melhoria da parte física, do vigor do paciente, já ocorre pouco tempo após as primeiras doses.
É neste momento de recuperação do vigor físico, mas não da saúde mental, que os médicos avaliam que pode ocorrer a tentativa de suicídio. Por isso, é necessário um acompanhamento de perto, além de tratamento psicoterápico constante na fase em que o remédio ainda não começou a agir totalmente.
Proteção e bolha
Mário Corso, psicanalista de Porto Alegre, concorda que o problema do suicídio na adolescência é composto de muitos fatores e diz que, além dos itens já bastante mencionados, como a formação do cérebro, o momento da vida de aprender a viver sem os pais, da pressão por definir uma carreira e dos hormônios típicos dessa faixa etária, o contexto dessa atual geração de jovens também deve ser levado em conta.
“É na adolescência que o sujeito se dá conta do mundo onde ele vive. Como a infância é cada vez mais protegida, é uma grande bolha, existe um degrau muito alto entre a saída da infância e a chegada no mundo adulto, que acontece na adolescência. ”
Segundo Corso, não é ruim a infância ser um momento de superproteção às crianças, mas um dos efeitos colaterais é que o adolescente não cria “anticorpos para suportar o mal-estar civilizatório”, especialmente no mundo atual, onde a impressão é de crise generalizada.
“É um lugar muito sem utopia, sem esperança, e assim dá um desespero. É uma depressão típica da adolescência, você se dá conta do peso do mal-estar no mundo, e isso varia conforme o ambiente político e cultural.”
SUICÍDIO: EM BUSCA DE EXPLICAÇÕES
Para aqueles que perderam alguém, é comum o relato das dificuldades para encontrar uma “justificativa” para o ato. Eles também apontam que não é fácil identificar transtornos e sinais, até mesmo com ajuda profissional. “A gente achava que era coisa da adolescência”, conta Terezinha do Carmo Guedes Máximo, de 45 anos.
Marina, a filha de Terezinha, se matou aos 19 anos, depois passar por diferentes fases desde os 16 anos: houve um período em que a família julgava que a irritação era efeito da Tensão Pré-Menstrual, as automutilações estavam ligadas a um possível diagnóstico de Boderline. Durante vários meses, a jovem passou por diversos psiquiatras, foi atendida por dois profissionais psicoterapeutas e também tomou medicação de forma controlada, além do constante acompanhamento, para não ficar sozinha.
A família via sinais de melhora e confiava que era “questão de tempo” até ela superasse o quadro depressivo, mas mesmo assim ela tirou a própria vida. “Ela não quis estar aqui. O desespero dela era tão grande que ela preferiu ir para alguma coisa que ela não sabe o que era. A parte mais difícil é reaprender a viver sem a pessoa, e ter certeza de que você não teve culpa”, desabafa Terezinha.
O que é um conjunto de dúvidas para os “sobreviventes enlutados” ganha certa clareza para a ciência atual. A depressão é apontada como o principal transtorno sofrido pelos suicidas, mas isso não significa que todo depressivo é um suicida em potencial, nem que todo suicida sofria de depressão.
A solução para isso, segundo Antônio Geraldo da Silva, seria acabar com o preconceito e o medo de falar de doenças como a depressão. E ampliar o acesso ao tratamento na rede pública. Mas não somente da depressão: também o alcoolismo, a ansiedade, a esquizofrenia e a Síndrome de Borderline (caracterizada por instabilidade de humor, de comportamento e de relacionamento).
ESCOLAS APRENDEM O SIGNIFICADO DA POSVENÇÃO
Os casos recentes no Colégio Bandeirantes, em São Paulo, também levaram para as salas de aula o debate sobre como lidar com um tema que é tabu. E sobre como fazer a posvenção, ou seja, o trabalho de apoio para quem está em luto e afetado por um suicídio.
Depois dos episódios, o Bandeirantes afirmou em nota que “conta com a assessoria de uma das maiores especialistas de prevenção ao suicídio do país e, desde o primeiro acontecimento, tem realizado diversas ações direcionadas aos alunos, bem como à equipe pedagógica e aos funcionários para lidar com o ocorrido”.
Em entrevista ao G1, Karina Okajima Fukumitsu, psicóloga contratada pelo colégio, afirma que os dois casos só têm em comum o fato de envolverem a mesma escola, e diz que não houve “suicídio por contágio”. Mesmo assim, os acontecimentos fizeram com que a procura de pais pelas palestras sobre o assunto, oferecidas por ela, tenha sido mais que o dobro do esperado. “Em 20 minutos esgotamos todas as vagas”, disse ela.
Dedicada ao estudo do suicídio há nove anos, Karina explica que família e escola têm papéis diferentes e complementares na formação dos adolescentes. Segundo Karina, o professor alertar os pais quando um aluno começa a apresentar mudança de comportamento, humor ou rendimento acadêmico é um dos exemplos de integração que ajuda na prevenção.
Karen Scavacini, do Instituto Vita Alere, afirma, porém, que a formação dos educadores e inclusive dos psicólogos que atuam nas escolas ainda não contempla os conhecimentos necessários para o trabalho de prevenção ao suicídio. Ela afirma que o Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo aborda o suicídio em uma de suas disciplinas, mas que o tema é abordado com mais frequência em palestras pontuais. “E eu não conheço nenhuma faculdade de pedagogia que tenha disciplina de prevenção e posvenção de suicídio.”
Por isso, segundo ela, a demanda pelos serviços de organizações dedicadas especificamente ao assunto cresce sempre que um caso atinge uma escola, ou quando o suicídio invade a opinião pública, como ocorreu com o “Desafio da Baleia Azul” e com a série “Treze razões porquê”.
Nas escolas, Karina Fukumitsu afirma que um protocolo de posvenção deve ser implantado quando um caso de suicídio entre os estudantes é registrado, mesmo que o fato não ocorra dentro da instituição. O trabalho, segundo ela, deve ser feito tanto com os colegas da sala do estudante quanto com os demais alunos da escola, além dos professores e funcionários.
Em vez de aulas normais, a primeira etapa é reunir os colegas em uma roda de conversa, para escutar o que cada um está sentindo.
“Eles precisam lidar com o esvaziamento, inclusive da carteira da pessoa. Às vezes, quando uma pessoa se mata, ela se torna mais presente do que era antes. É uma ‘presença ausente’ que acontece depois do suicídio.”
Na hora da conversa, é importante não deslegitimar o sentimento de cada um, ressalta Karina. “O que costumo falar é que está todo mundo em carne viva. A gente vai recolher esses escombros e criar estratégias unidos, porque é isso que faz diferença: estar junto nessa situação.”
Karen Scavacini, do Vita Alere, lembra que, por causa da faixa etária, o suicídio entre adolescentes é especialmente sensível porque, para muitos, será o primeiro luto. Por isso, após um primeiro momento de trabalho em grupo, os professores, orientadores e demais profissionais da escola devem manter a atenção para identificar os estudantes mais vulneráveis e alertar os pais, para que eles possam oferecer auxílio individualizado.
No entanto, Karina ressalta que não é o caso de se falar em “suicídio por contágio”.
“Não é que o suicídio de uma pessoa vai induzir o suicídio do outro. O suicídio de uma pessoa da escola (…) pode atingir uma pessoa que já está vulnerável e propensa a se matar”, explica.
Para ela, cada caso é o ápice de um processo interno de alguém que já está “definhando existencialmente”.