Em um tempo em que as redes sociais estão em tudo e praticamente todos estão nas redes sociais, um fenômeno que não é recente, mas que ganhou impulso assustador no ambiente virtual, mobiliza famílias, escolas e entrou definitivamente no radar de gigantes da internet. As agressões, ataques, calúnias, injúrias e difamações, resumidas sob a alcunha de “cyberbullying”, ganharam a partir deste mês tratamento mais rigoroso do Instagram, mídia de compartilhamento de fotos e vídeos com interface com várias outras redes, que anunciou atuação mais agressiva em relação ao tema, já condenado nas regras de plataformas semelhantes. É uma reação corporativa a um tipo de comportamento que afeta a vida de famílias inteiras e se traduz em números em ascensão. Em Minas, por exemplo, os registros desse crime cresceram 11%, passando de 4.939 em 2016 para 5.480 no ano passado.
É pouco para um fenômeno tipicamente subnotificado, e que muitas vezes não passa da esfera privada. Mesmo assim, os casos levados às autoridades aumentaram tanto que delegacias foram criadas especificamente para tratar do assunto, tipificado no Código Penal. Na era contemporânea, cyberbullying é a versão virtual de crimes contra a honra. Segundo a legislação, pode ocorrer de três formas: calúnia, injúria ou difamação. E engana-se quem pensa estar protegido por um suposto anonimato na internet: é possível rastrear e encontrar não somente quem deflagrou iniciativas classificadas como bullying, mas também quem as tenha compartilhado.
Não estar frente a frente com a vítima e se esconder atrás de uma tela de computador ou celular, “protegido” pelo anonimato, é a vitrine perfeita para o agressor, na opinião da psiquiatra Júlia Khoury, professora da Faculdade de Minas (Faminas). “O fato de passar pela internet e não estar numa relação real favorece a desinibição e acaba estimulando pessoas a fazer o que não fariam caso estivessem diante do agredido”, afirma. De acordo com a médica, os agressores são normalmente pessoas com autoestima baixa e necessidade de atacar terceiros para compensar essa falha. “A maioria sofreu algum trauma na infância ou também algum tipo de bullying”, pontua.
Já para quem é vítima, os efeitos são nefastos do ponto de vista do alcance e das consequências clínicas. A ausência de barreira física no mundo virtual faz a antiga “fofoca” se disseminar rápido e chegar a pessoas no mundo inteiro. A psiquiatra relata que o problema atinge, principalmente, adolescentes, que agem por impulso e tendem a pensar que não haverá consequências negativas quando tiram e enviam fotos comprometedoras – ou os chamados “nudes” – para grupos, por exemplo. Aumenta assim a chance de sofrer bullying pela internet, que pode desencadear estresse pós-traumático, depressão e ansiedade. “É preciso buscar ajuda médica psiquiátrica ou de um psicólogo para superar o trauma. Há pessoas que são afetadas de tal forma que precisam mudar a aparência para não ser reconhecidas, além de carregar uma carga de culpa. A família também é atingida, pois é a imagem de alguém próximo que é manchada”, relata.
“O alcance é enorme. O que antes era um bullying restrito a um espaço, a uma sala de aula, se espalha em ambiente virtual numa rapidez incrível, a ponto de nós, que estamos fora do âmbito escolar, termos acesso a esse tipo de informações”, afirma a psicóloga Maria Clara Jost, diretora na Tip Clínica. Doutora em psicologia, ela lembra que, no mundo do adolescente, a opinião do outro e o fato de ser ou não aceito em determinados grupos sempre foi importante. Mas, hoje, há uma esfera virtual que se tornou paralela. E o jovem vai se construindo e se configurando como pessoa nesse ambiente virtual. “Estar na mídia social, aparecer, é algo que tomou proporções gigantescas. É o mundo do parecer, que é mais importante do que ser. Assim, o parecer se constrói pela opinião pública. E, no conjunto da internet, é desesperador se o parecer é algo negativo”, explica.
Se antes da internet, diante de um estigma a pessoa se mudava de escola ou de cidade para tentar escapar, agora essas providências adiantam pouco. “O desespero de não conseguir sair da caixa em que colocaram alguém pode levar a pessoa ao suicídio. É muito sério”, ressalta. Além disso, Maria Clara chama a atenção para a necessidade de se estar em evidência, ao custo do sofrimento do outro. “O foco é simplesmente que quem fala, brilha. E acaba com a imagem de alguém com uma força incrível, por simplesmente levantar uma calúnia, que passa a ser verdade”, diz. A psicóloga lembra que impedir os filhos de participar ou acessar redes sociais não é o caminho para evitar o problema, e sim trabalhar para fortalecer a autoestima desses meninos e meninas, de forma que não fiquem vulneráveis a comentários nem participem de agressões. “Esse tipo de comportamento só se sustenta quando tem palco. Se a pessoa não se deixa estar no centro do palco, o boato perde força.”
Um novo filtro foi adicionado
No início do mês, Kevin Systrom, co-fundador e CEO do Instagram, explicou como a rede social reagirá a comentários ofensivos e foi enfático: “Não toleramos o bullying no Instagram”. De acordo com o executivo, um filtro de comentários ofensivos foi adicionado às configurações da rede social, com o objetivo de ocultar automaticamente dizeres considerados “tóxicos” e desagregadores, “especialmente aqueles destinados a grupos em risco”. O objetivo do novo filtro, segundo o co-fundador, é ocultar manifestações que ataquem aparência, o caráter ou que contenham ameaças ao bem-estar ou à saúde dos usuários da plataforma. “O novo filtro também nos alertará para problemas repetidos, para que possamos agir. Nosso objetivo é tornar o Instagram um lugar seguro para a autoexpressão e promover a gentileza na comunidade”, afirmou.
Hiperconectados e ultravulneráveis
Uma geração extremamente conectada, que usa as redes nem sempre de forma construtiva. Para a psicopedagoga e mestre em educação Jane Patrícia Haddad, o problema é fruto do acesso desmedido à tecnologia: ao mesmo tempo em que ela quebra barreiras, tem provocado isolamento. Jane chama a atenção para o papel do adulto nesses casos. “Quem é a bússola da criança? É o adulto. Temos que tentar sensibilizar os pais, porque hoje vivemos uma polaridade no mundo, em que a opinião diferente do outro é um confronto. Se isso está se passando com os adultos, imagine com as crianças?”, adverte.
“A tecnologia não vai ruir. A questão é do adulto. É autoridade, não no sentido de autoritarismo e, sim, de referência. É preciso passar algo simbólico aos mais novos”, diz. Por isso, segundo ela, o primeiro ambiente de aprendizagem é a família. “O bullying e o cyberbullying aumentaram muito por causa da intolerância, pelo fato de as pessoas não saberem lidar com a diversidade. Daí, a necessidade de voltar o olhar para o adulto que está deixando algo passar. Isso é responsabilidade nossa. Mas, para substituir a tecnologia seu filho tem que querer estar com você, e você com ele.”
Parceria entre escola e família da educação infantil à 3ª série do ensino médio é a aposta do projeto Cultura de Paz, no Colégio Sagrado Coração de Maria, no Bairro Serra, na Região Centro-Sul de Belo Horizonte, para combater e evitar um dos fenômenos mais cruéis da atualidade. Diálogo e palestras são as ferramentas usadas para alertar os estudantes sobre o respeito às diferenças e a importância de escutar o outro. Ano passado, uma promotora foi convidada a conversar com familiares e policiais, a falar com os alunos sobre crimes cibernéticos.
“Quando a criança aprende quais são seus direitos e seus limites, até onde pode chegar, e sobre respeito, se põe no lugar do outro. O conflito é normal, mas o cuidado com aquilo que o outro pensa, o respeito ao que o outro fala é fruto do projeto que é desenvolvido”, afirma a coordenadora educacional, Renata Medeiros. Para ela, pais devem saber o que os filhos estão acessando e verificar equipamentos como o celular de tempos em tempos. “Precisamos orientar e mostrar os perigos que estão por trás das redes sociais.”