Um flertou com oportunidades de novas vivências, mas voltou ao mundo do crime e foi assassinado em um acerto de contas com o tráfico. O outro deixou para trás a inocência da infância e as peladas nas ruas do bairro com os amigos para também entrar no universo das drogas e ter a vida interrompida abruptamente. As histórias são contadas por dois educadores de Betim, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, que viram, nos últimos tempos, jovens de seus relacionamentos pessoais ou profissionais terem a vida ceifada pela violência. Fruto de um roteiro em comum, se tornaram estatística e engrossaram o índice de mortes violentas de adolescentes, em disparada nos últimos anos no país. Esse quadro de desajuste social atinge quase três quartos das cidades mineiras com mais de 100 mil habitantes, segundo dados do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef). Em Minas, Betim é onde mais se matam integrantes desse grupo da população. São 7,95 para cada grupo de 1 mil habitantes – mais que o dobro da taxa de BH. O levantamento mostra ainda que o problema deixou de ser exclusivo da capital e seu entorno para avançar pelo estado. Entre os cinco municípios com a maior taxa de vítimas de homicídio entre 12 e 18 anos, três estão no interior (veja gráficos). E estima-se que, se nada for feito, 43 mil adolescentes sejam assassinados nas maiores cidades do Brasil até 2021.
É o que mostra o Índice de Homicídios na Adolescência 2014 (IHA), do Unicef, calculado para cada grupo de 1 mil pessoas entre 12 e 18 anos. Em Minas, Coronel Fabriciano, no Vale do Aço, aparece em segundo lugar no IHA, com 7,14 assassinatos por 1 mil habitantes. É seguido por Governador Valadares (6,54), no Vale do Rio Doce; Ribeirão das Neves (6,25), na Grande BH; e Muriaé (5,81), na Zona da Mata. Em BH, o índice é de 3,10 – o que sugere, segundo o Unicef, a existência de municípios em Minas com índices muito mais altos, puxando a média para cima. Os dados são alarmantes, pois o resultado aceitável dessa taxa numa sociedade pouco violenta seria um valor abaixo de 1. A pesquisa, com dados referentes ao ano de 2014 mas concluída recentemente, analisa os homicídios nos 300 municípios brasileiros com mais de 100 mil habitantes – 31 deles estão em Minas Gerais.
A análise geral do IHA revela que, para cada 1 mil adolescentes no país, 3,65 correm o risco de ser assassinados antes de completar o 19º aniversário. Minas é o 15º estado com pior IHA: aqui, 3,2 adolescentes são assassinados por grupo de 1 mil. O primeiro nesse ranking é o Ceará (8,71). O levantamento é resultado de parceria entre o Unicef, o Ministério dos Direitos Humanos, o Observatório de Favelas e o Laboratório de Análise da Violência da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (LAV-Uerj).
Das 31 cidades mineiras analisadas pelo relatório, 23 têm índice superior a 1. Betim, líder no ranking mineiro, tem posição incômoda também quando comparada a outras cidades do país: é a 22ª na lista nacional e a sétima da Região Sudeste, atrás de Serra (ES), com 12,71; Cabo Frio (RJ), com 10,35; Vila Velha (ES), com 10,28; e, também do interior do Rio de Janeiro, Itaguaí (9,02), São João de Meriti (8,14) e Macaé (8,09).
A educadora Cleide Moura, de 41 anos, perdeu um ex-aluno de 18 no período em que ele se afastou das oficinas do projeto do qual participava. “Soubemos que ele estava envolvido em coisas erradas, em que ocorre acerto de contas”, diz. E não foi o único, embora tenha sido o mais próximo ou, talvez, o caso mais marcante. Pessoas que moravam perto de Cleide também morreram em circunstâncias semelhantes. “Dá uma sensação de derrota. Vínhamos fazendo um trabalho de resgate com alguém, que por um tempo ficou sem ir ao lugar onde ele tinha amparo e, justamente nessa hora, isso ocorre. É como se perdêssemos para aquele que tirou a vida dele”, relata.
Para ela, por trás desse quadro está uma falsa facilidade que é oferecida pelo “outro lado” a esses meninos e meninas. “Para a pessoa que está desorientada, esse caminho parece mais atrativo. É onde ele pode usar roupas chiques, ter um pouco de dinheiro e ostentar. Mas tudo é cobrado. E se o jovem não tem estrutura para manter esse padrão, paga caro. É como se ele fosse comprado e, depois, descartado”, resume a educadora.
A interiorização da violência
Quase metade das cidades mineiras consideradas violentas para adolescentes por estudo do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) estão no interior do estado. De acordo com levantamento que analisou a quantidade de assassinatos entre crianças e jovens de 12 a 18 anos nos municípios brasileiros com mais de 100 mil habitantes, o problema avança para além dos limites da Região Metropolitana de Belo Horizonte. Das 31 cidades mineiras verificadas pelo relatório, 15 estão nessa situação. “A Grande BH revelou tendência crescente nos primeiros anos da série, e depois manteve certa estabilidade, enquanto a do Vale do Aço sofreu um aumento a partir de 2009”, constata a publicação Homicídios na Adolescência no Brasil, que calcula o Índice de Homicídios na Adolescência (IHA).
Mas, apesar de o estudo considerar cidades acima de 100 mil habitantes, a escalada da violência envolvendo adolescentes também é percebida em cidades menores e, como consequência, a redução das mortes se tornou um dos desafios nos pequenos municípios. “Quando se pensava em homicídios de adolescentes, inicialmente imaginávamos que só ocorriam nas grandes capitais. Nos últimos 10 anos, no entanto, a mortalidade vem crescendo muito pelo interior”, afirma a consultora do escritório do Unicef para os estados de Minas Gerais, Bahia e Sergipe, Ana Carla Pinho Carlos.
Segundo ela, foi observado um surto do avanço da violência em adolescentes na faixa de 12 a 18 anos no interior mineiro, principalmente em cidades com menos de 20 mil habitantes, deixando cidades menores mais vulneráveis. Ana Carla aponta como uma das principais causas da violência a evasão escolar. “Uma das principais causas é criança fora da escola. Tudo está relacionado a isso.”
Ela também cita o tráfico como fator responsável pelo aumento dos homicídios na adolescência. “O alto índice de drogas nos municípios tem relação direta com a violência. Há ainda uma série de outros fatores, que são analisados e usados para dialogar com as administrações municipais, para que consigamos reduzir os índices, com muita participação popular e comunitária”, destaca.
Ilustrando a percepção anunciada pela consultora do Unicef, na semana passada um duplo homicídio chocou os moradores de Congonhas, na Região Central de Minas, cidade pacata com pouco mais de 50 mil habitantes. Na madrugada da última quarta-feira, dois adolescentes de 15 anos morreram e três ficaram feridos depois que criminosos encapuzados invadiram a casa onde estavam, no Bairro Alvorada, e dispararam vários tiros. Os garotos assassinados foram encontrados pela Polícia Militar. Outros três foram achados nas imediações do imóvel, baleados em pernas e nádegas, e foram socorridos. Em depoimento, informaram que estavam dentro da casa quando homens bateram na porta e gritaram dizendo ser da polícia. Com medo, não abriram. Pouco depois, o lugar foi arrombado e invadido.
COMBATE A consultora Ana Carla lembra que o Unicef desenvolve ações que visam ao combate da violência contra crianças e adolescentes. “Trabalhamos com conjuntos de resultados sistêmicos e muitos deles estão diretamente ligados à violência, como serviços integrados de atendimento a vítimas ou testemunhas de violência nessas cidades”, diz. Ela ressalta ainda que o Fundo das Nações Unidas também trabalha com a implantação de medidas socioeducativas para adolescentes em conflito com a lei. “Propomos aos municípios que ofertem de forma qualificada as medidas socioeducativas. Mesmo que não tenham em nível municipal, que sejam oferecidas em nível regional”, disse. “Também propomos ações multissetoriais de proteção do direito dos adolescentes à vida”, ressaltou a especialista, citando como o exemplo o trabalho de fortalecimento dos programas municipais de prevenção contra a violência, conforme a realidade local.