Se olhasse para o Brasil, Mark Zuckerberg teria uma ótima notícia e outra nem tão boa assim. Aquela de que ele não vai gostar é que o Facebook já não é crucial para debates e mobilizações sociais, como as que ocorreram nas manifestações de junho 2013; a boa é que a rede social deu lugar a outro produto de sua empresa: o WhatsApp, que virou o canal para organizar de churrasco a greves, como a dos caminhoneiros, que paralisou o país por 10 dias neste ano.
Mas como isso aconteceu? Segundo especialistas, acadêmicos, ativistas e empresários, em cinco anos, o aplicativo de bate-papo:
- tornou-se a forma mais simples de se comunicar para muita gente que teve contato pela primeira vez com a internet;
- deu abrigo aos insatisfeitos com as políticas de distribuição de conteúdo do Facebook e;
- fomentou a criação em seu entorno de um submundo de empresas que, por exemplo, ganham milhares de reais dando visibilidade a grupos de conversa.
Nada disso, no entanto, seria possível sem que os smartphones virassem a principal ponte entre os brasileiros e o mundo online.
De celular na mão
“O celular é a primeira tela, aquela que carregamos conosco o tempo todo, onde consumimos e produzimos conteúdos e nos conectamos com outras pessoas”, afirma Ronaldo Lemos, advogado e um dos coordenadores do Instituto Tecnologia e Sociedade do Rio (ITS-Rio).
Um dos marcos na migração do computador para o celular foi 2014. Naquele ano, mais de 50% das casas brasileiras passaram a estar conectadas pela primeira vez. A maior inclusão online foi puxada pelos celulares que, coincidentemente, desbancaram os desktops naquele ano e viraram o aparelho mais usado pelo brasileiro na hora de entrar na internet. Também foi o ano em que o 4G passou a funcionar mais amplamente para atender as cidades-sede da Copa do Mundo no Brasil.
Outro fator que contribuiu para colocar de vez um smartphone na mão do Brasil foi a gama de funções executadas por celulares de entrada. Tanto é que a compra de smartphones, ainda que mais simples, fez o consumidor postergar a aquisição de outros aparelhos, como novos tablets ou computadores. Dispositivos como iPhone X e Galaxy S9+, que custam R$ 7,8 mil e R$ 4,9 mil, respectivamente, ofuscam os preços médios, na casa dos R$ 1.177 em 2018, de acordo com dados da consultoria de tecnologia IDC.
“Consumir conteúdo que era o que impulsionava a venda de 15 milhões de computadores em 2012. Mas hoje, para entrar em rede social e mandar e-mail, você já faz em um aparelho na palma da sua mão”, diz o consultor Reinaldo Sakis, da IDC.
Longe do Facebook
Ainda assim, o preço acessível do celular e o crescimento na velocidade de banda larga não poderiam responder sozinhos pelo declínio do Facebook.
“O Facebook era muito bom em unir pessoas que estavam distantes, que tinham carinho uns pelos outros”, afirma Fabrício Benevuto, professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que estuda as interações entre usuários de redes sociais. Ele lembra que diversos estudos mostram que, quando surgiu, a plataforma era bastante competente para conectar pessoas que moravam longe umas das outras.
“A rede social entregou seu papel até certo ponto, e hoje é uma pena que ela esteja tão tomada por discussões políticas e por brigas de todo tipo.”
Antes mesmo de ter de prestar contas a parlamentares de Estados Unidos e União Europeia pela negligência com as informações de seus usuários no caso Cambridge Analytica, o Facebook já enfrentava uma onda de reclamações sobre a forma como mostrava o conteúdo a seus usuários.
Como as publicações não são mostradas conforme entram no site, um algoritmo age como “sommelier do post”: após entender o que um usuário gosta de ver e com o que ele interage mais, o algoritmo escolhe o que mais corresponde a esses interesses. Só que o uso desses robozinhos pode deixar de fora posts com determinada orientação política ou de parentes e amigos que não dão as caras há tempos.
Para calibrar o algoritmo, o Facebook promoveu mudanças desde 2013 que, segundo Sérgio Amadeu, professor da Universidade Federal do ABC, tiveram o poder de:
- frear o crescimento das bases de fãs de páginas de empresas e personalidades;
- reduzir o número de pessoas a quem uma publicação poderia chegar;
- ampliar da exibição de posts feitos por familiares e amigos;
- barrar análises de pesquisadores e acadêmicos sobre a rede social;
Para Amadeu, que também é membro do Conselho Gestos da Internet do Brasil (CGI.br), as mudanças fizeram que os interessados em ter suas publicações disseminadas no Facebook não tivessem outra escolha senão pagar por isso.
“Cada vez mais o dinheiro tem peso maior no Facebook. Seja para o mercado, para ativistas digitais ou para candidatos políticos, a grande alteração é que agora você tem que pagar por causa das restrições que o Facebook foi construindo de 2013 para cá.”
“Eu não sei o critério pelo qual o algoritmo do Facebook distribui o conteúdo para os meus seguidores, mas, se eu pagar, eu digo exatamente quantas pessoas vão ser atingidas.”
Não à toa, a rede social conseguiu expandir sua receita em 516%, entre 2013 e 2017, quando chegou faturou mais de US$ 40,6 bilhões.
Com todos esses obstáculos, ainda de acordo com Amadeu, o “jardim murado” do Facebook passou a dificultar muito a comunicação, na contramão da lógica de “uma rede distribuída que é a internet”. “A interação no Facebook é extremamente controlada pela plataforma, verticalizada, coisa que você não imaginaria no início do século 21.”
De olho no WhatsApp
Se com o Facebook, o debate girava em torno dos algoritmos “que mediavam a forma como recebíamos as informações”, com o Whatsapp, essa discussão não existe, diz Lemos.
“Ele não é mediado por algoritmos. A informação circula conforme as suas redes de contato e grupos dos quais você faz parte, sem qualquer tipo de filtro editorial. Isso leva a uma outra dinâmica.”
É claro que ninguém instala o WhatsApp pensando em fugir dos algoritmos. Mas o app possui algumas características que, apesar de quase invisíveis, acabam atraindo as pessoas:
- usa o número do celular como forma de acesso, em vez de um cadastro próprio;
- é leve, o que permite que funcione em todo tipo de celular;
- envia arquivos compactos, o que não gasta muito do pacote de dados;
- faz com que todas as mensagens cheguem ao destinatários;
- é relativamente privado;
- permite a circulação de vídeos, fotos e áudios, além da realização de videoconferências.
Para Ariel Kogan, ativista do Instituto Tecnologia & Equidade, o WhatsApp criou oportunidades de negócio para operadoras de telefonia. Ao oferecer pacotes que não cobram pelo acesso ao app, atraem mais clientes. Só que assim, diz ele, podem acabar limitando o contato com a internet daquela pessoa ao WhatsApp.
O desvio da atenção dos brasileiros do Facebook para o WhatsApp foi seguido também por movimentos sociais. Surgido na esteira das manifestações de massa de junho de 2013, o Movimento Brasil Livre (MBL), que se viu sufocado pelas mudanças do Facebook, foi um dos que recorreu ao WhatsApp.
“Já chegamos a ter alcance de 60 milhões por semana, mas isso já não acontece mais”, diz Kim Kataguiri, um dos líderes do MBL. “Para contornar esse problema, a gente tem utilizado a lista do WhatsApp.”
“Como o Facebook tem priorizado posts de pessoas e não de páginas, isso tem diminuído muito o alcance de veículos de imprensa, o que fez com que as articulações para manifestações passem mais pelo WhatsApp e YouTube.”
Apesar de ter nascido como aplicativo de bate-papo, o WhatsApp ganhou ares de redes sociais graças a recursos como as listas de transmissão, mencionadas por Kataguiri, e aos grupos.
“As pessoas parecem postar nesses grupos públicos o que elas querem que se espalhem rapidamente. Como são grupos pequenos [comportam só 256 participantes], tentam maximizar o movimento mandando em vários grupos”, afirma Benevuto, da UFMG.
Dentro de grupos no WhatsApp
Os grupos do WhatsApp ganharam tanta relevância que viraram oportunidade de negócio. Há aplicativos voltados somente a divulgá-los. Um deles é o ZapGrupos, que possui 5 mil grupos em sua “vitrine”, que cresce a cada dia. Patrick Assunção de Oliveira, dono do serviço, disse que sua equipe avalia a inclusão de até 1 mil grupos diariamente.
Algumas pessoas já chegaram a manter até 50 grupos em exposição no ZapGrupos, conta Oliveira.
Ele tem ainda outros dois apps que orbitam o WhatsApp: o Meu ZapZap e o recém-lançado ZapReligão. Ambos oferecem imagens para serem compartilhadas no bate-papo, mas, enquanto o primeiro foca no humor, o forte do segundo são as mensagens religiosas.
Nem os administradores pagam para promover seus grupos nem internautas pagam para baixar as imagens. Os aplicativos, que são vistos quase 3,5 milhões de vezes por dia, ganham com a publicidade exibida neles, por meio do programa de anúncios do Google. Oliveira diz que o faturamento é “em torno de R$ 15 mil por mês”.
Abaixo do radar
Assim como o Meu ZapZap, o MBL também aposta na criação de imagens para que as pessoas compartilhem pelo WhatsApp. Kataguiri conta que a chamada “diretoria de memes” pinça informações do noticiário, aplica os “valores e aquilo em que o MBL acredita” a elas, aplica outra camada de humor e a dispara para seus seguidores.
“Temas políticos e econômicos costumam não ser muito populares por serem técnicos e complexos. A gente simplifica isso e busca fazer uma piada para a pessoa compartilhar.”
Para alguns especialistas, a proliferação dessas replicações é parte de um processo de amadurecimento do brasileiro na internet.
“Antes, a gente vivia uma era da adoção. Agora estamos na era de não só estar presente como também de querer falar. A as pessoas se perguntam como entrar na conversa”, diz Rodrigo Amatea, professor de marketing do Insper.
“Replicar dá menos trabalho do que criar. Escrever o post, o texto, a crítica é mais difícil do que compartilhar, que é menos doloroso.”
Só que o caráter privado do WhatsApp é um prato cheio para a proliferação das notícias falsas e de outras mensagens com teor agressivo. Plataformas abertas, como Facebook e Twitter, tiveram de criar políticas de remoção de conteúdo ofensivo e indicação de postagens falsas após serem alvos de muitas críticas.
“Como a comunicação no Whatsapp tem caráter privado, isso abre a possibilidade para formas de comunicação que não teriam lugar em um espaço visível ao público, caso das redes sociais. O filtro não existe, e muita gente se sente confortável para compartilhar conteúdos que jamais compartilharia publicamente em uma rede social”, comenta Lemos.
Quem usa o aplicativo de bate-papo como trampolim para catapultar sua mensagem não está totalmente satisfeito. “O problema do WhatsApp é que a gente não tem como medir o quanto uma mensagem se espalha exatamente”, diz Kataguiri.
Futuro
Se o Facebook foi o passado das interações sociais e o WhatsApp é o presente, qual seria o futuro?
Para Ronaldo Lemos, a tendência é os aplicativos de bate-papo adotarem recursos que os façam executar ações próprias de outros serviços.
“O próximo ciclo são os comunicadores sociais absorverem toda a internet. Eles vão se tornar as próprias redes sociais, meios de pagamento, aplicativos de transporte e assim por diante. Eles se transformarão em plataformas e muito do que fazemos na internet irá para dentro deles.”
Esse panorama já ocorre na China, onde aplicativos como o Wechat já permitem agendar corridas de táxis ou carros particulares ou mandar dinheiro a amigos.
Ainda que fiquem mais potentes, essas redes sociais turbinadas terão que tratar as informações pessoais de forma mais cuidadosa, diz Amadeu, da UFABC.
A era do WhatsApp, no entanto, está longe de acabar. “Durante muito tempo, o WhatsApp vai continuar dominando o mercado de mobilização, a não ser que ele crie algum tipo de nova burocracia ou dificuldade para os usuários, o que eu duvido”, diz Kataguiri.