Desde que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi condenado a 12 anos de prisão pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região, vários pedidos de liberdade foram apresentados pelos advogados e aliados do petista a diferentes tribunais – Superior Tribunal de Justiça (STJ), Supremo Tribunal Federal (STF) e, mais recentemente, ao próprio TRF-4, numa estratégia do PT para que o processo caísse com o desembargador de plantão, Rogério Favreto, que já foi filiado ao PT e é crítico da Operação Lava Jato.
Os primeiros habeas corpus apresentados ao STJ e STF haviam sido negados – um foi rejeitado pelo plenário do Supremo e outros dois pelo ministro Felix Fischer, relator dos processos da Lava Jato no STJ.
Na sexta, pouco depois de Favreto assumir o plantão do TRF-4, os deputados petistas Wadih Damous (RJ), Paulo Teixeira (SP) e Paulo Pimenta (RS) apresentaram um habeas corpus em favor do ex-presidente ao tribunal.
No domingo, por algumas horas, parecia que esse plano havia sido bem-sucedido. Favreto deferiu o pedido sob o argumento de que a pré-candidatura de Lula à Presidência seria um fato novo e que ele não poderia ter os direitos políticos como pré-candidato restringidos no período pré-eleitoral.
Mas a decisão foi derrubada pelo presidente do TRF-4, Thompson Flores, depois de uma queda de braço em forma de despachos entre Favreto e o relator dos processos da Lava Jato, João Pedro Gebran Neto, que se opôs à soltura do petista argumentando que a decisão contraria a posição do próprio tribunal e do STF.
Afinal de contas, a quem cabe decidir sobre o caso Lula: TRF-4, STJ ou STF?
A Procuradoria-Geral da República (PGR) encaminhou ao STJ um documento em que defende que cabe a esse tribunal decidir sobre pedidos de habeas corpus apresentados em nome de Lula.
Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil também afirmam que o papel do TRF-4 na decisão sobre pedidos de liberdade para Lula se esgotou neste processo. Caberia, na visão deles, ao STJ e ao STF decidir sobre o futuro do ex-presidente.
Veja algumas perguntas e respostas sobre o assunto:
Onde está o processo penal contra Lula no caso do triplex?
O processo em que Lula é acusado de receber propina da construtora OAS, na forma de um triplex no Guarujá, teve a análise do mérito concluída no TRF-4 – que condenou o ex-presidente a 12 anos e um mês de prisão.
A ação penal vai subir para o STJ – última instância em questões que envolvem legislação federal – e para o STF – mais alta Corte do país e que dá a última palavra sobre matérias constitucionais.
Isso porque a defesa de Lula apresentou recurso especial ao STJ e recurso extraordinário ao STF contestando a condenação. Antes de chegarem às cortes superiores, esses recursos passam por um exame preliminar no próprio TRF-4.
A vice-presidente do tribunal, desembargadora Maria de Fátima Freitas Labarrère, entendeu que não havia questões constitucionais a serem discutidas pelo Supremo no processo de Lula. Mas permitiu o envio do processo ao STJ.
Os advogados do ex-presidente, então, entraram com um agravo (espécie de recurso) questionando essa decisão. O recurso extraordinário seguirá para o STF, que decidirá se concorda com a desembargadora – e não analisa o mérito – ou se admite o recurso para julgamento.
O processo de Lula ainda não foi encaminhado ao STJ e ao STF porque ainda não se esgotaram, no TRF-4, os prazos para as chamadas “contrarrazões” – apresentação de argumentos pela parte contrária a quem entrou com os recursos (no caso, seria o Ministério Público Federal, já que quem apresentou recurso ao STJ e ao STF foi a defesa de Lula).
A quem caberia decidir sobre um pedido de liberdade?
Além de recorrer ao STJ e ao STF para tentar reverter a condenação, os advogados tentam libertar Lula por meio de habeas corpus. Eles pedem que o ex-presidente responda ao processo em liberdade e que possa concorrer à eleição presidencial de outubro.
Pelo fato de o TRF-4 já ter decidido pela condenação de Lula, rejeitando recursos apresentados pela defesa à Corte, especialistas ouvidos pela BBC News Brasilargumentam que não caberia a um desembargador do tribunal decidir sobre o pedido de habeas corpus assinado pelos três deputados do PT. O pedido, na visão deles, deveria ter sido apresentado ao STJ.
Mas, na última sexta, integrantes do partido viram no plantão do desembargador Rogério Favreto, do TRF-4, uma oportunidade. O argumento central do habeas corpus é o de que a pré-candidatura de Lula seria um “fato novo” que exige nova análise do caso pelo tribunal. Na prisão, o ex-presidente não pode participar de sabatinas e reuniões de organização da campanha. Isso, na visão dos deputados petistas, viola os direitos de Lula como pré-candidato.
O pedido foi protocolado cerca 30 minutos após Favreto assumir o plantão, na sexta-feira (6). No domingo, ele deu decisão favorável a Lula.
O professor da FGV Direito Rio Ivar Hartmann afirma que o desembargador deveria ter rejeitado o pedido porque seu tribunal não é mais a instância adequada para esse recurso, mas sim o STJ. “Claramente o pedido não devia ser encaminhado para o TRF-4 e vemos uma estratégia de fazer o pedido justamente no fim de semana em que o plantonista é o juiz Rogério Favreto”, observou.
O ex-presidente do STJ e ex-corregedor nacional do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) Gilson Dipp afirma que Favreto extrapolou sua competência ao deliberar em regime de urgência sobre a soltura do ex-presidente, uma matéria “de alta indagação que está sendo discutida nas cortes superiores”.
“É temerário um plantonista de fim de semana decidir sobre uma matéria que já vem sendo contemplada há muito tempo por tribunais superiores. Isso contribui para um desgaste muito grande do Judiciário, das instâncias inferiores às superiores”, afirma o jurista.
Em documento enviado à presidente do STJ, Laurita Vaz, o vice-procurador-geral Eleitoral, Humberto Jaques de Medeiros, pediu que o tribunal determine à Polícia Federal que se “abstenha de executar mandados judiciais referentes à liberdade” de Lula se eles não tiverem sido ordenados pelo STJ.
“Havendo ordens e contra-ordens expedidas à autoridade policial sobre a liberdade de paciente em ação que deveria ser originariamente apresentada ao Superior Tribunal de Justiça, a hipótese é de cabimento de reclamação para restaurar a autoridade deste Tribunal”, afirma o procurador, que nesta semana está na chefia da Procuradoria-Geral da República, na ausência da procuradora Raquel Dodge.
À BBC News Brasil, Favreto negou que tenha agido por motivação política e defendeu sua decisão afirmando que a pré-candidatura de Lula à Presidência da República seria um “fato novo” que justificaria libertá-lo agora.
Em seu despacho, o desembargador argumentou que o petista seria vítima de “duplo cerceamento de liberdade: direito próprio e individual como cidadão de aguardar a conclusão do julgamento em liberdade e, direito político de privação de participação do processo democrático das eleições nacionais, seja nos atos internos partidários, seja na ações de pré-campanha”.
Na manhã desta segunda-feira, 103 integrantes de ministérios públicos estaduais e do Ministério Público Federal (MPF) entraram com pedido de providências no Conselho Nacional de Justiça (CNJ) contra o desembargador.
Eles argumentam que a decisão de libertar Lula “viola flagrantemente o princípio da colegialidade, e, por conseguinte, a ordem jurídica e o Estado Democrático de Direito”.
Na prática, o uso de habeas corpus em diferentes tribunais evidencia a estratégia dos aliados de Lula de maximizar as chances de uma vitória jurídica (ainda que temporária), e a tentiva de trazer visibilidade ao caso. Mesmo que a decisão de Favreto tenha sido revista, o caso gerou repercussão e fez com que o ex-presidente voltasse a figurar nas manchetes.
O que a defesa de Lula pretende fazer?
Enquanto integrantes do MPF querem que o CNJ investigue Favreto sob o argumento de que ele agiu por motivação política, deputados do PT e advogados de Lula acusam o juiz Sérgio Moro de agir politicamente ao se negar a dar cumprimento à decisão do desembargador plantonista.
Assim que Favreto concedeu o habeas corpus, Moro, que estava de férias, assinou um despacho dizendo que não poderia efetivar a decisão por considerar que o desembargador plantonista não possui a prerrogativa de “descumprir a ordem de prisão do Colegiado da 8ª Turma do Tribunal”. Ele concluiu o despacho recomendando que a Polícia Federal aguardasse a “conclusão desse impasse”, para “evitar descumprimento” da ordem de prisão.
“O juiz Moro e o MPF de Curitiba atuaram mais uma vez como um bloco monolítico contra a liberdade de Lula, mostrando que não há separação entre a atuação do magistrado e o órgão de acusação”, reagiram os advogados Cristiano Zanin e Valeska Martin, em nota divulgada à imprensa.
A defesa de Lula deve usar as diferentes decisões do domingo para tentar reforçar a tese de que o ex-presidente é alvo de “lawfare” – abuso e má utilização das leis e dos procedimentos jurídicos para perseguição política.
“A defesa de Lula usará de todos os meios legalmente previstos, nos procedimentos judiciais e também no procedimento que tramita perante o Comitê de Direitos Humanos da ONU, para reforçar que o ex-presidente tem permanentemente violado seu direito fundamental a um julgamento justo, imparcial e independente e que sua prisão é incompatível com o Estado de Direito”, disseram os advogados, em nota.
Que outro pedido de liberdade falta ser julgado?
Enquanto os recursos que pedem a revisão da condenação de Lula não são analisados pelo STJ e pelo STF, a defesa de Lula tenta suspender a prisão com um pedido feito ao Supremo. O relator da Lava Jato na Corte, ministro Edson Fachin, abriu prazo para a PGR se manifestar sobre os pedidos de Lula. Por isso, o caso só deve ser liberado para análise do tribunal a partir de agosto, depois do recesso.
Caberá à presidente do STF, Cármen Lúcia, pautar o pedido para julgamento no plenário.
Os advogados argumentam que há “flagrantes ilegalidades” no processo que condenou o petista, o que torna “altamente provável” que sua condenação seja anulada pelo Supremo mais à frente. Dessa forma, sustentam que Lula ficará injustamente detido e esses dias na prisão “jamais serão devolvidos”.
Que outras ações tramitam contra Lula?
O processo do triplex do Guarujá é o que está em estágio mais avançado na Justiça. Mas Lula é réu ou alvo de denúncia em outras ações.
Na Justiça Federal do Paraná, também referente à Lava Jato, Lula é réu em outras duas acusações de corrupção e lavagem de dinheiro. Uma delas é relacionada a um sítio em Atibaia, no interior de São Paulo, e a outra à compra de um terreno para o Instituto Lula e de um apartamento em São Bernardo do Campo para uso da família do petista.
Ainda há quatro ações na Justiça Federal do Distrito Federal, referentes às Operações Zelotes, Janus e Lava Jato. São referentes às acusações de tráfico de influência junto ao BNDES para favorecer a Odebrecht em contratos em Angola, tráfico de influência na compra de caças pelo governo brasileiro, corrupção passiva na suposta venda de uma medida provisória que beneficiou montadoras e obstrução de Justiça pela suposta tentativa comprar o silêncio de um ex-diretor da Petrobras.
Além das seis ações no Paraná e no Distrito Federal, Lula foi denunciado pelo ex-procurador-geral da República Rodrigo Janot, em setembro de 2017, por suspostamente integrar organização criminosa juntamente com a ex-presidente Dilma Rousseff e outros seis integrantes do PT, no caso que foi apelidado de “quadrilhão do PT”. Janot ainda denunciou Lula e Dilma por obstrução da Justiça pela tentativa de nomeação do ex-presidente como ministro da Casa Civil.
Essas últimas denúncias foram encaminhadas por Fachin para Justiça Federal do Distrito Federal, porque Dilma e Lula não possuem mais foro privilegiado. Os dois negam as acusações.