Mexerico
No Rio de Janeiro, Graciliano Ramos (1892-1953) se preparava para engraxar os sapatos. O engraxate, não mais do que um garoto, virou para ele e disse: “E aí, amizade? Qual a novidade?” “A nossa amizade”, respondeu prontamente o escritor. “Esta ironia, sutil, é tanto na escrita quanto na vida. Ele tem uma capacidade de apreender a linguagem mesmo na vida cotidiana, de dar uma resposta como esta à própria linguagem”, afirma Wander Melo Miranda.
É este o desafio que o professor de literatura, aposentado da UFMG desde 2016, tomou para si. Um dos maiores especialistas na obra do autor de Vidas secas – que completou 80 anos neste 2018 –, Melo Miranda, que esteve por 15 anos à frente da Editora UFMG, prepara para a Companhia das Letras biografia de Graciliano Ramos. O projeto está ainda no início – ele prevê a biografia para 2021.
“É uma tarefa de muita responsabilidade porque ele tem uma biografia muito boa do Dênis de Moraes (O velho Graça, de 1992, reeditada em 2012 pela Boitempo) e dois perfis muito interessantes (Mestre Graciliano, de Clara Ramos, e Graciliano: retrato fragmentado, de Ricardo Ramos, filhos do escritor) e outros textos biográficos. O que vou tentar é fazer uma biografia literária, ou seja, a obra explica a vida e a vida explica a obra”, afirma Melo Miranda.
Publicada em 1992, sua tese de doutorado Corpos escritos: Graciliano Ramos e Silviano Santiago é um estudo pioneiro na reavaliação da importância de Memórias do cárcere dentro da obra de Graciliano Ramos. Ainda sobre o escritor alagoano, Melo Miranda publicou em 2004 o ensaio Graciliano Ramos.
No fim deste mês, Melo Miranda vai a campo. Em Alagoas, onde Graciliano nasceu e viveu suas primeiras décadas, ele vai até a cidade natal, Quebrangulo; à Palmeira dos Índios, onde ele foi prefeito e abriga o Museu-Casa Graciliano Ramos, e Buíque, na fazenda que pertenceu à família de escritor.
“Acho que o melhor personagem dele é ele mesmo. O que ainda me comove sobre Graciliano é ter sido uma pessoa que dedicou a vida a um projeto, que é o projeto literário, sem se isolar numa torre de marfim. Foi uma vida toda dedicada à literatura, e ele não fez concessão de maneira alguma. Para mim, é um exemplo ético de cidadão e artista”, afirma Melo Miranda na entrevista ao lado.
Graciliano Ramos é lido hoje como merece?
Ele tem um grande público leitor na escola. Também hoje, em qualquer concurso público cai Vidas secas. Ao mesmo tempo, na academia, ou seja, nas universidades, ele ainda é objeto de teses. Os doutorandos novos fazem uma leitura muito inovadora de Graciliano, usando de filósofos contemporâneos como Jacques Derrida, Gilles Deleuze e Walter Benjamin. Acho que por muito tempo será estudado na universidade. E com isso continua sendo um autor canônico.
Há algum período pouco documentado da vida dele?
A vida é clara, luminosa, porque ele era uma pessoa muito franca. Era um homem mais fechado, há pessoas que conviveram com ele que o consideraram intratável, mas isso é da personalidade. Sobre a prisão dele, está tudo em Memórias do cárcere. Depois, ele vai publicar em algumas revistas do Departamento de Imprensa e Propaganda do Getúlio, que o prendeu, mas ele declara isso claramente. Ele vai publicar porque precisa de dinheiro para sobreviver, tem filhos de dois casamentos. Inclusive, num certo momento da vida, tudo que ele faz é para jornal primeiro. Foi revisor de jornal. Um dia, estava andando na revisão meio nervoso. “O que foi, Graciliano?”, perguntaram. “Outrossim, outrossim, é a PQP.” Tinham escrito um outrossim que ele estava corrigindo. Ele tinha coisas engraçadas. É tido como um homem pessimista, mas tinha tiradas muito bem-humoradas, irônicas, não era um personagem tão fechado.
Você estuda Graciliano há mais de três décadas. Por que o escolheu?
Antes de entrar para a Faculdade de Letras, eu gostava muito de ler o romance regionalista da década de 1930. Comecei por Jorge Amado, depois fui para José Lins do Rêgo e cheguei a Graciliano com 16, 17 anos. Foi o que mais me interessou. Em 1981, o Silviano Santiago lançou Em liberdade, um livro de ficção como se fosse o Graciliano escrevendo suas primeiras experiências fora do cárcere. Sempre gostei de trabalhar a questão da memória e história. Naquela época, quando o Gabeira publicou O que é isto, companheiro? (1979), houve uma avalanche de relatos de vida de jovens perseguidos politicamente. Em liberdade, de certa forma, é uma espécie de resposta literária a estes relatos, pois ele liga a ditadura Vargas à ditadura militar e também a um período anterior de repressão, que foi a Inconfidência Mineira. O livro rearranjou minha cabeça para trabalhar com o tema. Além disto, Memórias do cárcere, até aquela época, havia sido pouco estudado.
O que você destaca em Memórias do cárcere?
É um livro de um preso político, mas que tem um peso literário grande, e não só pelo estilo. Tem momentos emocionantes. Quando Graciliano está preso no Recife (às vésperas de sua transferência para o Rio de Janeiro), o capitão Lobo, que é o cara que o mantém preso, oferece a ele dinheiro para ele ir para o Rio. “Você vai precisar. Não tenho muito dinheiro, aqui tem um cheque em branco, mas você preenche com quanto achar que vai precisar”, ele disse. O Graciliano fica muito comovido e espantado. O cara que era o carcereiro dele, de certa forma, estava oferecendo essa ajuda desinteressada. Tanto que ele vai considerar, num autorretrato que fez depois, o Capitão Lobo um de seus maiores amigos. Em um momento de dificuldade, uma pessoa que era contrária politicamente a ele oferece essa ajuda, que ele não aceita, é claro. Mas ele tem isso de procurar esse outro, de tentar entender o ser humano de uma maneira não bélica. Porque hoje tudo que é diferente da gente é contra a gente. Isso é uma deturpação das relações humanas, porque o outro, com a diferença dele, nos completa. Graciliano tinha essa curiosidade em relação ao outro, ele tem isso tanto na obra quanto na vida.
Para o iniciante, como Graciliano deve ser lido?
Tenho dificuldade em se saber qual o melhor livro dele. Para mim, é o que estou lendo no momento. Mas começaria por Vidas secas. (Através do livro) o leitor vai entender um pouco essa questão que estamos vivendo, dos refugiados, de quem tem que sair da terra pra procurar sobrevivência em outro lugar. Graciliano não tem uma obra tão grande, mas não há um livro que você fale que é fraco. Noventa por cento do que ele escreve é obra-prima, o que é raro mesmo nas grandes literaturas. Como hoje se escreve tão mal, ler Graciliano é uma forma de limpar a língua.
Para um professor, crítico e editor, qual o desafio de se fazer uma biografia?
Já publiquei muito em jornal, mas não tenho hábito de escrever regularmente para o grande público. A questão é juntar qualidade, veracidade das informações, propriedade das fontes, com uma escrita que atenda grande público, ou pelo menos o público que lê. O Graciliano participou de todos os eventos, políticos e culturais, dos anos 1930 até o inicio dos anos 1950. Foi o escritor brasileiro mais importante que esteve preso. Passou quase um ano na prisão sem processo de culpa formado, o que é muito significativo. Por que ele foi preso? É possível ler o Brasil dessa época através dele e de sua obra.
O velho Graça
Nascido em 27 de outubro de 1892, em Quebrangulo (AL), Graciliano Ramos, o primeiro dos 16 filhos de uma família de classe média do interior de Alagoas, chegou a ser prefeito de Palmeira dos Índios (1928-30). Começou a escrever seu primeiro romance, Caetés, em 1925. O livro só foi publicado em 1933. Nos anos seguintes, escreveu São Bernardo (1934) e Angústia (1936), considerado um marco da literatura moderna. No romance, Luís da Silva, de origem rural, se integra com dificuldade à vida urbana.
Muito antes de sua filiação ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), em 1945, suas convicções políticas o levaram à prisão, em 1936. Ficou 11 meses preso – 10 anos mais tarde, percorreria o período em Memórias do cárcere (1953), só publicado após sua morte. Sua obra-prima, Vidas secas, é de 1938. No clássico da literatura brasileira, os personagens sobrevivem em busca de um futuro mais digno.
Vítima de câncer no pulmão, Graciliano morreu no Rio, em 20 de março de 1953. O escritor paraibano José Lins do Rego o apontou como o maior romancista daquela época.
Três clássicos da cinematografia brasileira foram adaptações de romances de Graciliano: Vidas secas (1963, de Nelson Pereira dos Santos), São Bernardo (1972, de Leon Hirszman) e Memórias do cárcere (1984, também de Nelson Pereira dos Santos).