BBC Future
Para melhor entender este artigo, vamos imaginar um cenário. É uma noite de sábado em um bar agitado no centro da cidade. Entediado, Antônio pega a garrafa de cerveja vazia que está na mesa em sua frente e começa a jogá-la de uma mão para a outra.
De repente, a garrafa cai e quebra na mesa, ele se levanta da cadeira e vai até o desconhecido que havia esbarrado nele mais cedo, ferindo-o no rosto com a garrafa quebrada. Um amigo do homem ferido chamado Pedro reage, empurra Antônio e continua o ataque enquanto outros tentam segurá-lo, atraindo mais pessoas para a briga.
É uma história fictícia, mas serve para ilustrar a diferença entre dois tipos de criminosos na prisão. As características de Antônio são as de um psicopata: frio, calculista, superficialmente charmoso e sem remorsos. “A violência é planejada com antecedência e a pessoa pode ficar empolgada e muito satisfeita ao cometê-la”, diz Stephen Blumenthal, uma psicóloga que trabalha com infratores violentos na Portman, uma clínica de psicoterapia em Londres.
Pedro, por sua vez, exibe sintomas de personalidade antissocial: uma condição caracterizada por impulsividade e agressão. “A típica violência do indivíduo antissocial e não psicopata é causada por emoções fortes e é impulsiva ou reativa”, diz Blumenthal.
Há chance de reabilitação?
Dois homens violentos, duas motivações bem diferentes – mas o sistema criminal de justiça muitas vezes os trata da mesma maneira. Apesar de ambos serem violentos e, portanto, apresentarem um risco à sociedade, com taxas altas de reincidência, isso pode ser um erro. Cada vez mais pesquisas sugerem que seus cérebros funcionam de maneiras bastante distintas. Isso pode significar que eles precisam de tipos diferentes de reabilitação se algum dia forem voltar às ruas.
Com isso em mente, especialistas estão tentando criar novos tratamentos para infratores violentos reincidentes.
O psiquiatra americano Hervey M. Cleckley formalizou o conceito de psicopata em 1941 com seu livro The Mask of Sanity (“A Máscara da Sanidade”, em tradução literal), que tinha como base entrevistas com presos em prisões de alta segurança. “Ele identificou um grupo de pessoas que pareciam muito perturbadas, mas que desafiavam a categoria padrão de desordem mental”, diz Blumenthal.
A psicopatia é diagnosticada usando uma ferramenta de avaliação que classifica pessoas de acordo com uma série de critérios. Os que estão acima de certo limite são oficialmente classificadas de psicopatas – apesar de a psicopatia ser um espectro e de que a maioria dos psicopatas não são criminosos violentos (aliás, muitos são extremamente bem-sucedidos no mundo dos negócios). No entanto, aqueles que são tendem a ser criminalmente versáteis. “Eles geralmente são infratores em várias categorias diferentes”, diz Blumenthal.
Entre os infratores violentos na prisão, apenas uma minoria pode ser classificada como psicopata. Um estudo britânico recente estima que exista uma prevalência de cerca de 8% dos presos e 2% das presas, outro estima que sejam 31% dos infratores homens violentos e 11% das presas.
Claramente, portanto, a psicopatia não explica todos os crimes violentos. Mas, uma vez que um psicopata esteja na prisão, é importante descobrir como melhor reabilitá-lo: eles têm até quatro vezes mais chances de reincidência do que os não psicopatas.
O transtorno de personalidade antissocial (TPA) é muito mais comum que a psicopatia – afeta entre 50 e 80% da população encarcerada em geral. “Dizem que buscar esse transtorno nas prisões é como buscar ‘palha em um palheiro'”, diz Blumenthal.
Apesar de pessoas com TPA parecerem despreocupadas e agradáveis, diante do conflito elas podem facilmente surtar e se tornar assustadoras. “Elas são o grupo esquentadinho”, diz Nigel Blackwood, um professor da universidade Kings College, em Londres. “Elas ficam frustradas e irritadas, veem ameaças onde não existem e surtam ou se tornam agressivas para resolver seus problemas.”
Em uma minoria de casos, infratores violentos são diagnosticados com TPA e psicopatia. Blackwood e seus colegas identificaram diferenças nos cérebros dessas pessoas que os separam de infratores apenas com TPA e dos sem qualquer distúrbio. “As diferenças estão em áreas-chave do cérebro que estão envolvidas com o pensamento sobre nossas reputações sociais e com o uso do medo para determinar nossos comportamentos”, diz Blackwood.
Psicopatas parecem processar informações sobre castigo e recompensa de uma maneira diferente do restante das pessoas. A maioria das crianças passa por uma fase de bater ou morder outras crianças, mas em algum momento aprendem que é um comportamento inapropriado que será punido.
Os psicopatas, porém, parecem relativamente inabaláveis com a punição, o que os torna muito difíceis de administrar. “Nossos experimentos indicam que a questão que caracteriza os psicopatas não é não ser capaz de usar a informação do castigo para definir seu comportamento”, diz Blackwood. “Nosso estudo sugere que os psicopatas processam a punição de uma maneira bem diferente”. Ele acredita que isso pode ter implicações importantes para reabilitação e que seja possível fazer programas para esses “grupos separáveis”.
Considerando seu sistema incomum de recompensa no cérebro, uma estratégia pode ser encorajar outras atividades para prevenir a reincidência, diz Blackwood, como um emprego ou um hobby. Mas ele adverte que “ainda é muito, muito cedo” para saber se isso pode funcionar.
Reconstituição das atividades violentas
Outras pesquisas mais avançadas sugerem intervenções com foco nos infratores com TPA. Estudos sugerem que essas pessoas têm dificuldades de ler expressões faciais e apresentam outras limitações na ‘mentalização’: sua capacidade de entender tanto as suas quanto as ações dos outros em termos de seus pensamentos, sentimentos, desejos, crenças e desejos. Isso não apenas pode fazer com que eles interpretem ações como mais ameaçadoras do que elas realmente sejam, mas também fazer com que seja mais difícil regular essas emoções porque elas têm dificuldade de entender seus próprios sentimentos.
Peter Fonagy, um psicólogo clínico e psicanalista da University College London coordena um teste de terapia grupal com base na mentalização com infratores violentos que foram postos em liberdade condicional – a maioria tem TPA. Toda semana, eles se encontram e discutem assuntos que são importantes para eles, com o objetivo de introduzir um entendimento com mais nuances de sua posição e daqueles ao seu redor.
“Nós estamos tentando apertar um tipo de botão de pausa de mentalização: dizer ‘ok, espera um pouco, o que realmente aconteceu aqui?'”, explica Fonagy. Reconstruir o acontecido mentalmente muitas vezes faz com que o calor do momento dissipe, reduzindo a vontade de fazer algo no impulso.
Fonagy e seus colegas já conseguiram usar a mentalização para ajudar pessoas com outra desordem, o Transtorno de Personalidade Borderline (TPB), que é caracterizado por instabilidade emocional e automutilação frequente. Um estudo diz ter encontrado melhoras no humor e funcionalidade interpessoal até oito anos depois do tratamento com mentalização.
Pesquisadores na Espanha estão dando um passo à frente e encorajando infratores violentos a experimentar as reações emocionais de suas vítimas na própria pele. Na Universidade de Barcelona, Mel Slater e Mavi Sánchez-Vives têm trabalhado com homens que cometeram violência doméstica e aceitaram participar de um programa de reabilitação comunitária em vez de ir para a prisão – a oferta foi feita apenas aos réus primários.
Como parte desse programa, os homens passam por uma sessão de realidade virtual na qual eles são um avatar feminino e encontram um avatar masculino agressivo. O homem critica sua aparência, joga um telefone contra a parede e invade seu espaço pessoal. “É comum assistir a vídeos ou fazer teatro durante programas de tratamento, mas essa é uma experiência mais intensa”, diz Sánchez-Vives.
Antes e depois da sessão, é feito um teste para avaliar se os agressores conseguem reconhecer emoções como medo no rosto das mulheres. A habilidade de reconhecer medo melhorou com a intervenção. “Acreditamos que experimentar essa emoção neles mesmos os ajuda a entender – de uma maneira implícita – o que realmente estava acontecendo durante esse tipo de confronto”, diz Slater.
Apesar de eles não terem comprovado se essas mudanças são duradouras, outros estudos de realidade virtual sugerem que elas podem ser. Por exemplo, Slater mediu o efeito de uma pessoa branca “ser personificada” no corpo de uma negra e descobriu que isso reduz o viés de raça, uma forma inconsciente e muitas vezes não intencional de racismo. Essa redução se manteve quando os participantes foram testados uma semana depois. “Isso não comprova que o efeito se manteria para violência de gênero, mas ao menos aponta nessa direção”, diz Slater.
Não se sabe, porém, se estratégias de cultivo de empatia funcionariam com psicopatas. Tratamentos que envolvem conversas demandam motivação, colaboração e participação emocional, mas os psicopatas não dispõem de um leque normal de emoções. Eles podem se ver como superiores aos seus colegas de prisão e terapeutas, e debocham ou os comprometem de outras maneiras. “Se você colocá-los em uma situação de tratamento de grupo, há um risco de que irão corrompê-la”, diz Blumenthal. “Eles são muito difíceis de lidar.”
Em seu livro Assessing Risk (“Calulando Riscos”, em tradução livre), Bluementhal descreve um psicopata, Sid, com um histórico de atacar mulheres jovens vulneráveis e de abusar de suas crianças. Ele foi transferido ao albergue de liberdade condicional onde Blumenthal trabalhou. “Ele é uma das pessoas mais charmosas e manipuladoras que eu já conheci”, diz Blumenthal. Um mês mais tarde, Sid desapareceu com a faxineira do local, “uma mulher aparentemente estável e confiável”. Ela havia sido avisada sobre ele.
“Eu não quero comprometer o tratamento totalmente porque a maioria dos programas são muito básicos e é preciso muito trabalho nessa área. Mas essas pessoas precisam de um bom tempo para ficarem melhor e elas precisam escolher o tratamento elas mesmas”, diz Blumenthal. “Eu acho que também precisamos aceitar que há pessoas resistentes ao tratamento que são muito difíceis de serem atingidas.”
Talvez exista mais esperança em reconhecer pessoas jovens com traços psicopatas para mudar a trajetória de seu desenvolvimento. Estudos indicam que a psicopatia tem um efeito herdado e que crianças com níveis altos dos chamados “traços insensíveis” têm um risco maior de se tornarem adultos psicopatas.
A ideia de que a psicopatia possa ser identificada na infância continua controversa, mas evidências apontam que há fatores de risco claros. Tanto psicopatia como TPA também estão associados a um histórico de negligência e abuso na infância. E, enquanto crianças emocionalmente reativas tendem a responder bem a limites firmes, crianças não emocionais são menos responsivas.
É por isso que intervenções podem funcionar: pesquisas recentes sugerem que eles podem ser mais suscetíveis a intervenções que focam em comportamento positivo do que sendo punidas por comportamentos ruins. O que parece estar de acordo com os resultados de Blackstock sobre adultos psicopatas.
“Se você pode construir aquela parte do cérebro que quer os mesmos tipos de recompensa que você tem ao agradar o outro em vez de simplesmente conseguir o que você quer, então você provavelmente tem uma chance melhor de sucesso”, diz Graham Music, um psicoterapeuta de crianças e adultos que trabalha com Blumenthal na Clínica Portman.
Essas crianças também demonstram déficits na habilidade de ler os estados emocionais alheios, mas pesquisas sugerem que essa habilidade possa ser melhorada ao ensiná-los a olhar nos olhos dos outros, o que pode aumentar os níveis de empatia e laços emocionais.
É por isso que intervenções antecipadas são chave: o cérebro é mais maleável durante a infância. Isso traz seus próprios desafios, considerando que essas crianças não necessariamente passaram pelo consultório de um psicólogo.
“As crianças que geralmente chegam a nós são as que estão reagindo, jogando coisas, chutando as pessoas, gritando, entrando em brigas”, diz Music. Crianças insensíveis, por outro lado, são vistas como “agressivas felizes” porque elas parecem inabaláveis pela violência.
A evidência crescente de que infratores violentos não são um “monolito” exige uma estratégia com mais nuances. Parte do desafio é identificar as pessoas que parecem que vão se beneficiar mais do tratamento e apoiar sua tentativa de mudar. Pode ser que algumas pessoas não possam ser salvas, mas muitas outras podem estar ao alcance. “Eu realmente acredito que a biologia é maleável e eu prefiro não desistir das pessoas”, diz Fonagy.