Mexerico
José Miguel Wisnik só esteve uma vez em Itabira. Em 2014, convidado para o 40º Festival de Inverno da cidade do Quadrilátero Ferrífero, conheceu a região. “O fato é que nunca soube qual era o tamanho das consequências da mineração em Itabira. Sabia que o Pico do Cauê tinha estourado, mas imaginava uma coisa parcial, não que uma montanha pudesse ser um buraco”, afirma o professor, pianista e compositor paulista.
Impactado com o cenário da “paisagem anulada”, Wisnik começou a pesquisar a influência que a mineração provocou na obra de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987). Relação inédita na análise da obra do poeta itabirano é desfiada por Wisnik no ensaio Maquinação do mundo – Drummond e a mineração (Cia. das Letras). O autor está em Belo Horizonte para lançar o livro neste sábado (28), a partir das 11h, na Livraria e Editora Scriptum.
Drummond só viveu suas primeiras décadas na Itabira natal. Sua derradeira visita à cidade foi em 1948. Em 1981, aos 78 anos, em entrevista à jornalista Leda Nagle, afirmou que não ia mais lá porque “meus parentes morreram, meus amigos morreram. Itabira hoje é uma cidade de 100 mil habitantes, gente de fora, da Companhia Vale do Rio Doce, que faz a extração do minério. Então, eu vou lá para quê? Para ver um passado meu que já não existe? Para sofrer? Eu vejo a minha Itabira do passado na minha fotografia na parede”, afirmou, fazendo uma referência ao poema Confidência do itabirano (do livro Sentimento do mundo, 1940).
Movido pela presença da cidade na obra do autor, Wisnik começou a investigar como aquele cenário poderia ter impactado em seus escritos. “Veio-me o sentimento de que A máquina do mundo (de Claro enigma, 1951) tinha que ter uma motivação histórica, alguma coisa que situava, contextualizava um poema tão importante quanto aquele.”
Wisnik fez uma pesquisa sobre a mineração naquela região. “É aí que se vê que a história é muito longa e profunda. Itabira estava no centro da discussão sobre a mineração no Brasil, que remete ao começo do século 20. Ela atravessa essa discussão, que tem um desenlace importante na Segunda Guerra Mundial, torna-se uma referência sobre as discussões em torno da modernização brasileira. Quis ver como isto teria a ver com o grande poeta brasileiro, o mais abrangente do século 20.” Na obra, o contexto histórico acompanha a trajetória de Drummond.
No Congresso Geológico Internacional de Estocolmo, em 1908, foi anunciada uma enorme reserva de minério de ferro em Itabira. Atraídos pelo potencial da região, ingleses adquiriram grandes lotes de terra e fundaram a mineradora Iron Ore Company.
O minério itabirano foi alvo de disputas de duas concepções de modernização no país. A primeira, ainda na gestão do presidente Epitácio Pessoa (1919-1922), dava prioridade ao capital estrangeiro. A segunda, defendida por seu sucessor, Artur Bernardes (1922-1926), defendia a utilização dos recursos para a criação de uma siderurgia nacional.
Somente na Segunda Guerra a disputa foi resolvida. Durante o Estado Novo (1937-1945), o presidente Getúlio Vargas fundou a Companhia Vale do Rio Doce (1942). Vargas recuperou as áreas exploradas pela mineradora inglesa e recebeu do governo norte-americano um financiamento de US$ 14 milhões para aparelhar as minas. Em troca, o Brasil se comprometeu a fornecer minério de ferro aos dois países. Como escreve Wisnik, a Vale, empresa de economia mista controlada pelo Estado, foi criada “com a finalidade expressa de extrair e exportar o minério itabirano para suprir a indústria aliada no esforço de guerra”.
Wisnik analisa no ensaio que a presença da mineração na obra drummondiana nunca foi explícita. “O desenrolar dos acontecimentos repercute surdamente nos escritos de Drummond… É que a relação profunda e muito próxima com a história da mineração, em seus textos, permanece naquele lugar sub-reptício das coisas invisíveis de tão óbvias”, escreve o autor.
Três poemas são cruciais, na opinião dele, para este entendimento: Itabira, A montanha pulverizada, e o já citado A máquina do mundo. Publicado em Alguma poesia (1930), estreia de Drummond em livro, Itabira, segundo Wisnik, é um “poemeto meio anedótico” que já intui o que viria ocorrer. “Cada um de nós tem seu pedaço no pico do Cauê” é o verso inicial.
Já A montanha pulverizada, incluída no primeiro volume de Boitempo (1968), obra de caráter memorialista, Drummond fala sobre a destruição do pico. “Britada em bilhões de lascas deslizando em correia transportadora entupindo 150 vagões no trem-monstro de 5 locomotivas – o trem maior do mundo, tomem nota – foge minha serra, vai deixando no meu corpo e na paisagem mísero pó de ferro, e este não passa.”
Por fim, A máquina do mundo dá um caráter mais universal à questão. “O poema foi escrito no ano seguinte à primeira vez que ele faz uma viagem de avião. Ao ver Minas do alto, com as dinamitações do pico do Cauê e os vagões de minério partindo, o impacto é violento. Isso nos faz ler o poema sob um aspecto diferente. Ele é cheio de indicações”, continua Wisnik, citando os versos “uma estrada de Minas, pedregosa” e “no sono rancoroso dos minérios”.
“Raras vezes um poeta consegue que o local e o mundo se tornem uma coisa só. Isso dá à obra de Drummond uma agudez em sua dimensão. E não estou falando de um sentimento nostálgico, mas de uma visão do mundo contemporâneo pega pela poesia lírica”, analisa Wisnik.
Debate musical
O canal Arte 1 está exibindo às segundas, às 21h, a série documental Depois do fim da canção. Nos oito episódios do programa, Wisnik e Arthur Nestrovski, diretor artístico da Osesp, analisam canções de diferentes épocas. O tema começou a ser trabalhado pela dupla há quase uma década, através de aulas-show que levavam o nome de Fim da canção – posteriormente os encontros foram lançados em DVD. Na série, que conta com convidados, eles tratam da produção musical do samba à cena contemporânea. O próximo episódio inédito, o terceiro, terá como tema a bossa nova – a cantora Paula Morelenbaum é a convidada. O episódio de cada semana é reprisado às terças, 15h; sextas, 13h30 e 21h30; e sábado, 2h30.
MAQUINAÇÃO DO MUNDO – DRUMMOND E A MINERAÇÃO
De José Miguel Wisnik. Companhia das Letras, 304 páginas, R$ 64,90 (livro) e R$ 39,30 (e-book). Hoje, a partir das 11h, o autor participa de manhã de autógrafos na Livraria e Editora Scriptum (Rua Fernandes Tourinho, 99, Savassi, (31) 3223-1789).