Deutsche Welle
Aos 84 anos, Hermann (Mano) Höllenreiner saúda seus visitantes no jardim de casa, em Mettenheim, na Baviera, a cerca de 80 quilômetros de Munique. Pelas escadas, estão fotos em que ele mostra aos presidentes Christian Wulff e Joachim Gauck seu número de prisioneiro de Auschwitz tatuado no braço: Z 3526.
“Z” indica “Zigeuner”, cigano, nome dado pelos nazistas aos membros da mais numerosa minoria europeia, os sinti e roma, que eram perseguidos.
“Todo mundo quer ver o número”, diz Mano, já levantando a manga da camisa. Nos últimos tempos ele emagreceu muito, e seus pés começaram a tremer. “Não é de espantar, depois de tudo por que o senhor passou”, teria dito seu médico.
Na noite de 2 para 3 de agosto de 1944, o “campo dos ciganos” em Auschwitz-Birkenau foi desmantelado. Homens, mulheres e crianças das etnias sinto e rom foram sufocados nas câmaras de gás, e seus cadáveres, cremados. Historiadores do Museu Auschwitz constataram que nessa noite foram assassinadas ao menos 4 mil pessoas, e não 2.900, como até então se supunha.
Juntamente com os pais e a irmã Josefine, apelidada Lilly, Mano fora transferido pouco antes para o campo de concentração de Ravensbrück. Porém, muitos parentes seus morreram em Auschwitz: primas e os respectivos filhos, tias. “E minha pobre avó, que eu amava tanto, também foi morta na câmara de gás”.
Ao todo, 36 membros da família Höllenreiner foram vítimas da perseguição nazista. Do lado materno, mais de cem familiares morreram, pois a mãe de Mano também tinha ascendência judaica. “Eu sou um mestiço de verdade”, comenta o octogenário, que hoje não visita mais Auschwitz, pois a carga emocional é excessiva.
Vivendo com os mortos do passado
Quando as lembranças vêm, ele escuta novamente os gritos do campo de concentração. Os mortos de Auschwitz se tornam visíveis – em meio à sala de estar com seus móveis bávaros antigos.
“Quando os filhos morriam, as mães berravam. Então, eles os pegavam e simplesmente jogavam num monte”, conta, recordando a conduta brutal dos inspetores do campo.
Ele e o primo Hugo, ambos ainda em idade escolar, carregaram mortos, inclusive um bebezinho. “Eu vi a cabeça. Que cabecinha pequena!”, diz horrorizado. Os cadáveres eram amontoados: “Os mortos iam até a altura da minha casa”, conta, apontando para o teto da sala, como se ainda os visse ali.
Sua esposa, Else, conta de noites cheias de pesadelos, em que ele soltava brados quase inumanos. Mano a olha com gratidão: “Ela aguentou muita coisa junto comigo.” Por um lado, ele gostaria de esquecer tudo, “mas a coisa sempre volta”. Por isso, ele se engaja ativamente contra o esquecimento.
Ele tem dado muitas palestras, em grande parte para classes escolares, para que “os jovens alemães saibam o que a gente enfrentou no campo de concentração, e que era um sistema de criminosos”. Alguns alunos choram, outros aplaudem, uma menina o abraçou, soluçando. O trabalho de esclarecimento de Mano lhe valeu a Ordem do Mérito da República Federal da Alemanha.
“Mas nós éramos alemães!”
Nascido em 1933, Mano costumava fugir da escola em Munique para se esconder atrás do altar da igreja. O professor o perseguia, embora ele não aparentasse ser da etnia nômade sinto: “Ele era um nazistinha de verdade”, define.
O pai de Mano, Johann Baptist Höllenreiner, possuía uma firma de transportes a cavalo junto com os irmãos. A Segunda Guerra Mundial começou, o pai foi servir à Wehrmacht, a família se mudou para o campo. Mano brincava com os filhos dos camponeses: “Eu não tinha a menor ideia de que era um cigano.”
No entanto a avó foi espancada por um camponês por andar com uma cesta nas costas para vender artigos de armarinho como botões, linha e renda. O pai e os tios foram dispensados do serviço militar “por motivos de política de raça”.
Um parecer do Departamento de Pesquisa de Higiene da Raça, que inspecionava regularmente a minoria, registrou a família no fim de 1941 como “ciganos mestiços”. De volta a Munique, seu pai e tios foram submetidos a trabalhos forçados, tendo que pavimentar ruas sob supervisão policial.
Numa manhã de março de 1943, a polícia bateu à porta. A família teve que sair imediatamente, o cachorrinho de Mano ficou para trás. Presos na delegacia, eles encontraram parentes e outros sinti.
“Mas nós éramos alemães!”, indigna-se Mano até hoje com a perseguição injustificada. Há séculos a família Höllenreiner vivia na Baviera, “meu avô e bisavô já tinham servido ao Exército, nós somos sinti alemães!”
“Uma granja na Polônia”
Porém isso não contava 75 anos atrás. Todos foram trancados em vagões de gado na Estação Sul de Munique, sem alimentação nem instalações sanitárias – um pesadelo também para o senso de pudor das mulheres, recorda-se Höllenreiner.
Ele escutou o pai dizer que haviam lhes prometido uma granja na Polônia. Para o menino de nove anos, a viagem de vários dias pareceu interminável. De vez em quando, jogava-se água no vagão com uma mangueira. Os primeiros passageiros morreram.
Já na chegada a Auschwitz-Birkenau ficou claro que a promessa da granja era mentira. Todos foram tatuados com números, tiveram as cabeças raspadas. As famílias foram enfiadas nos “campos de ciganos”, em barracas com camas de três andares, a família Höllenreiner ficou bem no alto.
Mais tarde, o menino foi brincar entre as camas, mas caiu, quebrou o nariz e ficou no chão, inconsciente. Else complementa com o que a sogra lhe contou: ela não levou Mano para o médico do campo, por medo de nunca mais vê-lo.
Durante dias ela o carregou para a chamada matinal e ficava mantendo-o de pé. Assim conseguiu salvá-lo. Todos os prisioneiros tinham que se apresentar às 4 horas da manhã, no inverno em meio à neve alta. “As senhoras idosas congelavam, e caíam mortas”, lembra Mano. “Nós estarmos vivos é um milagre.”
“Muito pior do que se possa contar”
A mãe de Mano alertava os filhos para não beberem a água de Auschwitz, contaminada com tifo. Com sede, eles bebiam mesmo assim. A comida era um pedacinho de pão e nabos mofados.
Certa vez, depois do trabalho, Mano passou por uma casa das tropas SS onde havia um cachorro com um prato de comida. Ele se aproximou sorrateiramente e engoliu rápido a ração. O cão só rosnou, e um soldado espantou o menino.
Mano também teve contato com o médico da SS Josef Mengele, pois tinha a tarefa de transportar vidros com amostras em formol, contendo órgãos de crianças que o cientista assassinara no “campo dos ciganos”.
A crueldade de Mengele era notória: “Ele fazia criancinhas gêmeas pularem do terceiro andar para depois costurar o que tivessem quebrado.” O primo de Mano, Hugo, e seu irmão foram operados por Mengele e sofreram graves ferimentos na região abdominal.
No “campo dos ciganos”, todos conheciam os crematórios próximos, o fogo que saía das chaminés, o cheiro de carne queimada. Quando se decidiu desmontar o campo, em 1944, os Höllenreiner foram uma das famílias a serem transferidas.
Quando estavam no trem, ele andou para trás, onde ficavam os crematórios. Todos gritaram de pavor: “A gente pensou que ia para a câmara de gás”, lembra Mano. Mas aí o trem finalmente partiu na direção certa.
O sobrevivente respira fundo, agitado: “A mãe e o pai, todo o mundo gritou. Algo assim não pode mais acontecer, nunca mais!”, afirma. “Não dá para dizer como era, de verdade, em Auschwitz, no campo de concentração. Era muito pior do que o que eu estou lhe contando.”