Saúde Plena
Em tempos de cólera, da impaciência imperando, da falta de escuta do outro, de quase todo mundo no piloto automático e uma raiva que, às vezes, nem se sabe de onde vem e o porquê, nada como uma leitura que o leve para um plano que o faça pisar no freio e perceber que nada melhor do que seguir o conceito japonês de shinsetsu, que prega o reconhecimento do outro em nome da convivência harmônica entre todos. Aliás, é o que nos faz pensar o livro Shinsetsu: o poder da gentileza, de Clóvis de Barros Filho. “Gentileza, empatia, cuidado, motivação, ética e felicidade na verdade são conceitos que nunca estiveram tão presentes nas nossas discussões e reflexões, enquanto conceito. O que falta é a conduta, a prática, o alinhamento entre o discurso moral e aquilo que as pessoas se autorizam a fazer na hora de tomar suas decisões existenciais. Isso sim, isso realmente está muito difícil de encontrar.”
Clóvis de Barros Filho, que é professor-doutor e livre-docente da Escola de Comunicações e Artes da USP (ECA-USP) e palestrante, teve o start desse livro quando um passageiro sentado à frente no avião lhe perguntou: “Você se incomoda se eu reclinar minha poltrona?”. Um traço de gentileza com o qual ele nunca havia se deparado em nenhuma de outras de suas centenas de viagens: “Ficamos surpreendidos com condutas gentis porque, ao longo da vida, nas relações entre as pessoas, vamos nos acostumando com a grosseria e a rudeza, toda ela fundada no egoísmo, na busca cega e obsessiva pelo prazer, pelo ganho, pelo próprio resultado. Então, quando alguém cede a vez, isso chama a atenção pela sua excepcionalidade. Nós nos acostumamos a viver numa sociedade muito próxima da selva e da animalidade no cio. Então, a gentileza, que é uma espécie de resultado sofisticado da civilização, é estranha e rara para nós”.
Para Clóvis, as pessoas estão cada vez mais rudes. Em outras palavras, ele diz que perdemos a capacidade de considerar a alegria do outro na hora de tomar nossas decisões. Em especial quando ela implica abrir mão de alguma vantagem para nós. “Seja a geração Y, Z, W, 4.0, como quiser chamar, é só uma questão de nomenclatura. Por outro lado, nunca fomos tão flexíveis do ponto de vista moral como nos tempos de hoje. Todo aquele rigor dos nossos pais, por não se apropriar daquilo que não é nosso e ter uma vida digna, esse rigor foi se perdendo em nome de uma liquidez de princípios.”
CONVIVÊNCIA
Com a atual sociedade brasileira dividida, sem paciência para o diálogo, sem respeito com as formas diferentes do pensar, inundada de haters do mundo virtual, parece difícil pensar em harmonia e gentileza. “Imagino que o respeito pela posição diferente, pelo entendimento discrepante e pela ideologia que não é a nossa requer a mesma formação que outras formas de respeito pela presença do outro, sobretudo quando são impeditivas de ganhos, vantagens e prazeres. Não há que pretender com o livro resolver problemas que têm raízes profundas numa educação que desdenha a cidadania, o conviver, a solidariedade, o bem comum e teima em aplaudir o sucesso fácil, a idolatria. O livro fala da possibilidade de um outro tipo de sociedade, na qual 100% do tempo estaríamos antenados a limitar nossas condutas de maneira a não prejudicar quem está interagindo conosco”, frisa Clóvis.
Mesmo num cenário nada amigável, Clóvis se diz esperançoso: “Acho que meu otimismo advém da certeza de que muito na nossa vida, e nos coletivos aos quais pertencemos, depende da nossa iniciativa, do nosso empenho, da nossa dedicação, do trabalho, da vontade de ser diferente. Então, se estamos todos chafurdados numa sociedade que não deve agradar a ninguém, eis aí uma primeira condição auspiciosa para que juntos arregacemos as mangas, façamos acontecer uma nova sociedade, com novos valores e um grande respeito de uns por quaisquer outros. Da mesma maneira como fomos todos juntos tecendo os fios de uma sociedade em que não queremos viver, se formos capazes de construir nós mesmos isso aí, a boa notícia só pode ser esta: existe a possibilidade de nós mesmos estabelecermos as condições de uma nova convivência mais justa, mais honesta e, quem sabe, mais feliz”.