O jornalista e escritor Lucas Figueiredo escreveu a mais completa biografia de Joaquim José da Silva Xavier, o alferes Tiradentes, herói da Conjuração Mineira e mártir nacional. Das figuras mitificadas e mais controversas da historiografia brasileira, Tiradentes é descrito e analisado nas mais de 500 páginas em que Lucas o acompanha do nascimento à morte. O Tiradentes – Uma biografia de Joaquim José da Silva Xavier (Companhia das Letras) chegou esta semana às livrarias, mas ainda não tem data para ser lançada em Belo Horizonte nem em Ouro Preto – embora seja o desejo do autor fazê-lo o mais rápido possível. “Tinha que parar e quebrar a cabeça para entender quem era aquele homem, porque ele fez isso na segunda-feira, na terça fez aquilo e na quarta-feira aquilo outro. A vida amorosa, a relação com Antônia Maria do Espírito Santo.” Lucas buscou o homem atrás do mito, desconstruindo muita imprecisão que se tem sobre ele, inclusive a imagem “a la” Jesus Cristo. “Tiradentes fez tudo para vencer na vida, mas faltou a ele um pouco de sorte”, conclui.
Para fazer a biografia, você transita pela historiografia. Como foi esse processo de pesquisa a fontes primárias?
O livro nasceu no Estado de Minas. Em 2008, fiz com (os repórteres) Gustavo Werneck e Isabella Souto A corrida do ouro em Minas Gerais. Ao estudar a Inconfidência, deparei-me com esse personagem sensacional, Tiradentes, que não tinha ainda biografia moderna. Depois de fazer aqueles cadernos especiais, escrevi um livro sobre a corrida do ouro no Brasil, o Boa ventura – A corrida do ouro no Brasil (1697-1810) (Record). Ao escrever, vi que Tiradentes merecia um livro só para ele. Procurei refazer as fontes primárias priorizadas pela academia com olhar de jornalista. Refiz todo o processo jurídico, os autos da devassa, 12 volumes impressos com mais de 300 depoimentos. Tem muita gente falando. Muita gente mentindo. Muita gente tentando manipular o processo. E quem fez o processo, a Coroa portuguesa, mentia muito. É um processo judicial contado pela monarquia sobre movimento com cunho republicano. Mais que isso, cunho revolucionário. Separar o joio do trigo foi um trabalho custoso. Pesquisei em fontes primárias do Brasil e Portugal, muito estudadas, mas com olhar acadêmico, que é diferente do olhar do jornalista. Não é melhor nem pior. É diferente. Pesquisei arquivos dos Estados Unidos pouco estudados: National Archives e Jefferson Papers. Pesquisei dois arquivos em Paris, que nunca tinham sido estudados em relação à Conjuração Mineira: o arquivo do Ministério do Exterior e o Arquivo Nacional da França.
A figura de Tiradentes é bastante controversa. O que guiou seu olhar para biografar esse personagem?
Tiradentes morre em 1792. Fica 50 anos aproximadamente esquecido na história. No início do século 19, é resgatado pelo grupo que queria impor a república no Brasil. Tiradentes começa a ser um personagem manipulado. Surge o Tiradentes “a la” Jesus Cristo. Nasce toda a figura do herói, muito manipulada como mito. No entanto, Tiradentes-mito não me interessava. Queria contar a história de Joaquim, nascido em 1746, tropeiro, minerador, que tentou ser homem de negócio, que foi dentista prático, que teve sonhos, desilusões, equívocos e esteve no centro de um episódio central no Brasil, a Conjuração Mineira. Deixei de lado a leitura feita sobre o mito e vi a história do homem.
Dos personagens que você apresenta, quais divergem mais da historiografia oficial?
A figura do Tiradentes se destaca no grupo. Os mitos Tiradentes – tem aqueles que o tratam como herói e os que o tratam como um Zé Ninguém, sempre em extremos. O Tiradentes réu é diferente desses dois. Não é aquele super-herói acima do bem e do mal. Nenhum ser humano é tão firme e tão sólido. Tiradentes era cheio de rachaduras, de qualidades e defeitos como cada um de nós. Destaco também – não é que diverge, mas a historiografia não tinha dado conta ainda – a figura da única mulher inconfidente, dona Hipólita, fazendeira rica de 40 anos. Ela tem papel muito importante dentro da Conjuração Mineira, mas nunca foi incluída no grupo dos conjurados.
Na primeira parte, você apresenta muito bem Joaquim e sua família. Por ser branco, homem e de família pura, tem várias possibilidades na vida. Como você percebe temas atuais, como a questão racial e de gênero, na Vila Rica do século 18?
É arriscado estabelecer relação do século 18 com o 21. No século 18, a questão da raça pura era muito grande. Não era nem só ser branco, era ser branco e cristão antigo. Mesmo o cristão novo tinha senões ali, era chamado de raça impura – mestiço, judeu, não cristão. Entre homens e mulheres havia uma diferença muito grande. Porém, havia muitos mestiços e muita manipulação dos dados oficiais – nem sempre a família considerada oficialmente branca era composta 100% de brancos. Ser homem e oficialmente branco, no Brasil do século 18, era uma vantagem grande em relação aos demais. Tiradentes não era de família rica, nem pobre. Era de uma família que tinha alguns meios. O Tiradentes nunca foi à escola, mas sabia ler e escrever, o que o colocava numa condição muito privilegiada. Quando perde os pais, inicia a vida adulta carregando essas vantagens: era homem, oficialmente branco, sabia ler e escrever. Ganha de herança algum dinheiro para iniciar projetos, como mascate, por exemplo.
Você reconstrói todo o processo do julgamento. Tiradentes foi ingênuo?
A posição de Tiradentes na Conjuração Mineira era muito diferente dos demais conjurados. Enquanto os demais tinham atividade subterrânea, eram discretos, meio na sombra, o papel de Tiradentes era ofensivo. Era o homem que fazia o recrutamento. Fazia a propaganda da Conjuração Mineira, inclusive, aumentando o espectro de forças, falava para o Rio de Janeiro, São Paulo, Bahia. Pegou para si o papel de fazer a propaganda do movimento revolucionário que, segundo ele, era fortíssimo. Queria convencer as pessoas que o movimento, além de justo, era forte. Ele se expôs como nenhum outro conjurado. Sabia da repressão. Ele nunca teve dúvida disso. Todos os conjurados tinham deixado uma porta de saída. Ele não. No julgamento, sabia que não tinha nenhuma chance de ser absolvido. Colocou a cara a tapa. Num primeiro momento, tenta negar a participação, mas, a partir do quarto depoimento, vê que a Coroa tem muitas provas da participação dele e acaba confessando. Não diria que ele foi ingênuo. Foi mais fiel à atividade dele como conjurado.
Como ele era em relação ao tipo físico?
A única coisa que sabemos é que era oficialmente branco. Não posso dizer que ele era branco. Não posso dizer que não era mestiço. Claro que tinha pele mais branca, mas poderia muito bem ter algum traço de mestiço. A gente não sabe se ele teve barba, se tinha nariz fino ou grosso. Aquela figura de Tiradentes “a la” Jesus Cristo, com os cabelos longos e a barba longa na forca, tem o mesmo valor do desenho que minha filha de 7 anos faça. É uma fantasia. A única coisa que a gente sabe é que cedo, chegando aos 40 anos, ele já tinha os cabelos brancos. Esse é o único traço que podemos dizer com toda certeza. O resto é pura conjectura ou fantasia.
Depois de mergulho tão profundo, qual seu sentimento em relação ao biografado?
Tiradentes queria tanto dar certo, se doou tanto. Até antes da Conjuração. Era um homem que tinha escrúpulos. Entrou nos Dragões Reais de Minas (a guarda militar da época) e cumpriu todas as missões que deram para ele, mesmo as mais difíceis, era um militar exemplar. Apesar disso, em 14 anos, nunca teve uma promoção no regimento. Tiradentes não foi reconhecido como merecia e isso o deixa desapontado. Ele se doa, faz tudo que ele pode. Tenta virar homem de negócio. Quando ele entra na Conjuração Mineira, é homem cheio de ressentimento, cheio de questões por não ter sido valorizado. Entra no grupo de pessoas muito diferente dele: são letrados ou fazem parte da elite econômica, são homens de negócio, como Silvério dos Reis, ou grande fazendeiros, militares com postos elevados. Ele era um simples alferes. Tem atitude muito coerente na Conjuração Mineira e é o único condenado à morte. É o sentimento de pessoa que fez tudo para vencer na vida, mas que faltou a ele um pouco de sorte.
O TIRADENTES – UMA BIOGRAFIA DE JOAQUIM JOSÉ DA SILVA XAVIER
De Lucas Figueiredo
Companhia das Letras
520 páginas
R$ 79,90 (livro) e R$ 39,90 (e-book)