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Você pode não ter visto o filme Uma Aventura na Martinica – produção americana de 1944, protagonizada por Humphrey Bogart e Lauren Bacall -, mas talvez conheça sua cena mais famosa. Começa com uma troca de farpas entre o casal até que Bacall de repente se inclina e beija Bogart.
“Por que você fez isso?”, pergunta Bogart, com um sorriso idiota no rosto. “Queria ver se eu ia gostar”, dispara Bacall.
Ela então se levanta para sair e diz:
“Você sabe que não precisa fingir para mim, Steve”.
“Você não precisa dizer nada, não precisa fazer nada…. Ah, talvez só assobiar.”
Em seguida, ela abre a porta e se vira para ele como se tivesse lembrado de algo:
“Você sabe assobiar, não sabe, Steve? Basta juntar os lábios e soprar.”
A cena é inesquecível. E química do casal, arrebatadora – eles começaram um relacionamento no set de filmagem e se casaram pouco depois da estreia do filme. Mas também deve ficar na história por outro motivo: o que Bogart faz na sequência. Ele, de fato, junta os lábios e sopra – na verdade, assobia um “fiu-fiu” – duas notas que em 70 anos deixaram de ser uma tendência para se tornar, indiscutivelmente, o som mais ofensivo do planeta.
A França, por exemplo, está debatendo a adoção de uma lei que multará em 90 euros (R$ 360) quem for flagrado fazendo “fiu-fiu” na rua, como parte dos esforços para combater o assédio sexual (ainda não foi definido, no entanto, como a polícia implementaria essa medida). Um político britânico pede, da mesma forma, que a prática seja reprimida e combatida no Reino Unido.
Se você procurar por “fiu-fiu” ou “assobio” no Twitter, logo vai se deparar com uma série de reclamações de mulheres. Elas destacam a intimidação e o medo gerado por esse tipo de atitude, um exemplo óbvio de assédio em espaços públicos.
De fato, o polêmico “fiu-fiu” – tão ouvido pelas mulheres ao passar na frente de uma obra – parece estar com os dias contados.
Mas como foi que esse assobio ficou tão carregado de significado? E de que forma deixou ser uma prática banal para virar algo que choca? Surpreendentemente, sua história nunca havia sido contada.
Lobo em pele de cordeiro
Ao pesquisar a origem do assobio na internet, uma das teorias que aparece remete aos marinheiros. Enquanto estavam no mar, eles costumavam gritar palavras de ordem uns para os outros. Mas durante as tempestades, se comunicavam por meio de apitos – eram os únicos sons que podiam ser ouvidos além das ondas. Um deles soava como um “fiu-fiu”. E, segundo reza a lenda, os marinheiros começaram a usá-lo para avisar as mulheres quando chegavam à costa.
Só há um problema com essa hipótese: não é verdadeira, pelo menos de acordo com historiadores da Marinha Real Britânica e do Museu Marítimo Nacional. Os porta-vozes de ambas instituições disseram nunca ter ouvido falar nessa teoria. E consideram extremamente improvável que os marinheiros adotassem em terra um “chamado” usado para situações difíceis e assustadoras em alto-mar. Ainda mais para flertar com as mulheres.
Então de onde vem o “fiu-fiu”? A pista está no próprio nome usado para designar esse tipo de assobio em inglês: wolf-whistle (“assobio do lobo”, em tradução literal).
“Minha teoria vem de uma conversa com um velho pastor”, diz John Lucas, autor do livro A Brief History of Whistling (“Uma Breve História do Assobio”, em tradução livre).
“Ele era um cara muito experiente, treinava cães pastores e me mostrou diversos tipos de chamados, até que um soou exatamente como um ‘fiu-fiu’. Eu disse: ‘Isso é um pouco politicamente incorreto’! E ele respondeu: ‘Não, é apropriado, é da Albânia'”.
Segundo ele, em regiões montanhosas do sul da Europa, os pastores usaram, durante séculos, o assobio para avisar uns aos outros e a seus cães da presença de lobos. Colocavam dois ou três dedos na boca e, em seguida, sopravam as duas notas.
“É um assobio incrível, inacreditavelmente barulhento. Você poderia ouvir a milhas de distância”, diz Lucas.
Tanto a técnica quanto a melodia parecem ter sido batizadas de wolf-whistle.
Mas na década de 1930, esse assobio de duas notas começou a ser associado a um tipo completamente diferente de lobo – o predador sexual.
Lucas testemunhou seu primeiro “fiu-fiu” durante a Segunda Guerra Mundial, quando era criança. Havia muitos soldados americanos baseados perto de sua casa, na zona rural de Leicestershire, na Inglaterra. Ele e os colegas brincavam de seguir os militares pela vizinhança na esperança de conseguir um chiclete.
“Eles ficavam do lado de fora do saguão da igreja, do lado de fora dos bailes, e assobiavam para as mulheres quando elas entravam. Foi quando eu ouvi pela primeira vez. Agora, como passou dos criadores de ovelhas albaneses para os militares, eu não faço ideia”.
O momento da transição pode ser desconhecido, mas o que popularizou o “fiu-fiu” parece claro: foram os desenhos animados, especialmente os de autoria de Tex Avery, o lendário cartunista e animador americano que ajudou a criar personagens como Pernalonga e Patolino.
Avery foi um dos responsáveis pela transformação da indústria dócil dos desenhos animados em uma forma de arte anárquica e caótica, onde tudo era possível. O obituário do cartunista, publicado em 1980 pela revista Variety, deixa isso claro:
“Ele não tinha interesse em duplicar ou imitar a realidade. Em sua mente… quanto mais irreal, melhor. Na pior das hipóteses, seus filmes são estridentes e bobos. Na melhor das hipóteses, são incrivelmente engraçados. Em qualquer um dos casos, eles são diferentes de qualquer outro, feito antes ou depois.”
“Você quer saber por que Tex Avery era especial?”, indaga Pierre Floquet, autor do livro The Comic Language of Tex Avery (“A Linguagem Cômica de Tex Avery”, em tradução livre). “Você tem uma hora?”
Segundo ele, um dos personagens famosos de Avery era um lobo que assobiava. Ele aparece pela primeira vez em 1937, em uma versão de Chapeuzinho Vermelho, dirigida por Avery. No desenho, ele faz “fiu-fiu” para a personagem e, na sequência, a persegue pela cidade até levar uma martelada na cabeça. O público fica claramente feliz quando o lobo é atacado.
“A maior parte da imaginação ou criação de Avery vinha da observação de tendências sociais”, explica Floquet.
“Ele pegava as coisas e modificava, brincava com elas. Nos anos 1930, com os padrões morais da época, um homem mulherengo não era boa coisa. Apenas gradualmente passou a ter uma imagem mais positiva”.
A mudança é claramente percebida em A Ardente Chapeuzinho Vermelho, de 1943, desenho animado que remete ao clássico conto de fadas. O lobo agora é um cavalheiro da cidade de terno e cartola, que vai a uma boate onde vê Chapeuzinho cantando. Ela é tão sexy – preocupantemente, essa é a única palavra possível – que o lobo enlouquece. Ele assobia para ela. Pega uma máquina que faz “fiu-fiu” por ele. Grita. Bate na mesa. Sua língua sai da boca. Seus olhos saltam do rosto. Ele até começa a bater com um martelo na cabeça, como se estivesse tentando perder os sentidos.
É tão ridiculamente exagerado, e tão bem feito, que não surpreende que a cena tenha sido reproduzida diversas vezes desde então. Você pode encontrar paródias dela em filmes como O Máscara e Uma Cilada para Roger Rabbit, por exemplo.
A animação foi considerada tão sexual que supostamente teve problemas com os censores da época. E provavelmente só foi autorizada a ser exibida porque a Segunda Guerra Mundial ainda estava em curso, e os militares dos EUA queriam desenhos como esse.
“Se você aumentasse a libido dos soldados com um desenho animado, eles ficariam frustrados. E se ficassem frustrados, ficariam agressivos e seriam melhores soldados”, explica Floquet.
“Eu não estou brincando! Era mais ou menos isso que os comissários do Exército diriam que esperavam com os desenhos”.
A animação teria sido assistida por quase todos os soldados – e pela maioria dos garotos americanos. Se eles não faziam “fiu-fiu” até aquele momento, logo começaram. E parece que imediatamente após a exibição do desenho, o assobio estava por toda parte.
De acordo com o Dicionário de Oxford, a primeira menção ao termo wolf-whistle em um jornal veio em 1944. E a prática passa a ser retratada não só em Uma Aventura na Martinica, mas em inúmeros outros filmes, incluindo o drama noir Alma em Suplício.
Diversão inocente?
Logo após a guerra, você podia até comprar o The Original Hollywood Wolf Whistle, um dispositivo que se conectava ao carro e fazia “fiu-fiu” para quem passava na rua.
A participação mais notória do assobio na história, porém, acontece uma década depois. Em 28 de agosto de 1955, Emmett Till, um afro-americano de 14 anos, foi linchado no Mississippi alguns dias após supostamente ter feito “fiu-fiu” para uma mulher branca em uma mercearia.
Ele foi sequestrado, espancado até ficar desfigurado e baleado. Seu corpo foi jogado em um rio, com uma lâmina de ventilador amarrada em volta do pescoço com arame farpado para puxá-lo ao fundo.
A mãe do jovem insistiu em deixar o caixão aberto no velório, para que o mundo pudesse ver exatamente o horror que havia acontecido. A morte de Emmett se tornou um grito de guerra para o movimento pelos direitos civis nos EUA.
A popularidade do assobio não durou muito.
A ascensão do feminismo começou a miná-lo na década de 1970. Segundo Lucas, as pessoas perceberam que era “humilhante e bastante desagradável”.
“Minha esposa ouviu um ‘fiu-fiu’ de um operário em uma obra (uma vez). Ela foi até ele e perguntou que diabos estava fazendo.”
No fim dos anos 1970, Lucas foi nomeado professor de inglês na Universidade de Loughborough, na Inglaterra. E conta que algumas de suas alunas gritavam com homens que assobiavam para elas: “Meu ursinho de pelúcia pode assobiar mais alto que isso!”.
Assim que começou a entrar em decadência na sociedade, o “fiu-fiu” também perdeu força no cinema, embora ainda apareça de vez em quando na telona. Em Grease – Nos Tempos da Brilhantina, o assobio ajuda a criar o clima sexy da década de 1950; em Legalmente Loira, é usado para fazer uma piada rápida (“Me sinto à vontade usando jargão jurídico na vida cotidiana. [Homem faz fiu-fiu]. Objeção!”).
Mas o atual debate em torno do movimento #metoo pode jogar de vez uma pá de cal na prática. Se o assobio for retratado em filmes a partir de agora, deve ser apenas com sentido negativo.
Se você é daqueles que celebra sua derrocada ou acredita que “os politicamente corretos enlouqueceram”, talvez dependa um pouco da geração a que você pertence. Quem foi criado nos anos 1950 ou 1960, quando o “fiu-fiu” era considerado uma diversão inocente, pode se esforçar para ver de outra forma. Mas se você cresceu enxergando o assobio como assédio, é difícil não encará-lo como tal.
Uma pessoa que está triste com sua aposentadoria é Sheila Harrod, de 74 anos, ex-campeã mundial de assobios. Ela pode assobiar como uma cantora de ópera ou imitar cantos de pássaros – e já se apresentou em redes de rádio e televisão para milhares de pessoas em todo o mundo.
“Eu aprendi a assobiar fazendo isso na rua”, conta.
“O único que eu sabia fazer era o “fiu-fiu”. Eu costumava colocar dois dedos na boca e assobiar. Quanto mais alto, melhor.”
Se não fosse pelo “fiu-fiu”, Harrod jamais teria viajado o mundo assobiando.
“Você não ouve mais porque as pessoas têm medo de serem acusadas de assédio sexual”, avalia.
“É uma vergonha. Eu sempre pensei nisso como uma ousadia para alegrar o dia. Se faziam comigo, eu costumava assobiar duas vezes mais alto. Sempre acabava com uma risada.”
“E não me importaria de ouvir um “fiu-fiu” agora na minha idade”, finaliza.