Estado de Minas
Em uma doce manhã de sol típica de inverno, a reportagem chega ao Hospital Sofia Feldman, referência em atendimento à maternidade e, na ala de partos normais, encontra a empresária Mírian Alves Ferreira, de 28 anos, plena e só sorrisos menos de 20min após dar à luz Alessa. Ainda na hora de ouro – período em que mãe e bebê vivem o primeiro contato pele a pele após o nascimento, antes mesmo de a criança passar por procedimentos médicos -, a cena chama a atenção pela tranquilidade e bem-estar da mulher após um trabalho de parto que durou cerca de 40 horas.
“Tive todo o apoio necessário para levar adiante o meu desejo de ter um parto natural, sem o uso de medicamentos e nenhuma outra intervenção médica. A dor existe, lógico, mas quando não há nenhuma complicação que indique cesárea, é natural que a mãe seja totalmente capaz de esperar o momento certo de a criança nascer. Estou muito, muito feliz com a minha escolha”, disse a empresária, exalando emoção com a menina aninhada nos seios ao lado do pai, o empresário Sandro Gomes, de 31.
No Brasil, país que lidera o ranking mundial de cesarianas – média de 57% dos nascimentos, percentual que sobe para 84,4% no setor suplementar de saúde -, histórias como a de Mírian ainda são minoria. No entanto, iniciativas públicas e privadas que envolvem comunidade médica e plural têm empreendido ações cujo objetivo é informar as gestantes, colocando a mulher como protagonista do parto – seja ele vaginal (normal e natural) ou de via cirúrgica. Sim, todos os partos podem receber cuidados que deixam a gestante à vontade para expor as próprias escolhas – o que tem sido chamado de parto humanizado. Integram os grupos médicos, entidades, mães, enfermeiras e outros especialistas em saúde. A seguir, conheça mães que se cercaram de informação a fim de passar pela experiência de planejar o nascimento dos filhos de acordo com os próprios ideais.
Quando a mulher escreve o roteiro – O chamado parto humanizado envolve assistência mais próxima à gestante, em que ela predetermina um plano em que detalha os desejos para a hora do nascimento do filho
“Escolhi uma luz especial, criei uma playlist para dançar durante o trabalho de parto, planejei em detalhes as indicações sobre o que gostaria em relação às intervenções clínicas no nascimento do meu filho, o que ajudou muito e me deu segurança para viver plenamente a chegada de Owen”, detalha Maria Elisa Lloyd, de 34 anos, especialista em gestão de risco, atendida em hospital da rede particular de Belo Horizonte.
No entanto, a possibilidade de escrever o script do nascimento do filho, modelo de assistência à parturiente conhecido por muitos como humanizado, não é praxe no país. “Fui surpreendida duas vezes. Primeiro pelo fato de o meu médico de uma vida não dar atenção a uma lista de dúvidas que tinha e indicar a cesária assim que comuniquei a gravidez. Meu marido, que é estrangeiro, já achava estranho o fato de haver mais cesarianas do que partos normais no Brasil… Fomos atrás de uma segunda opinião, mas também sem sucesso, pois entendemos que o médico não era a favor de a mulher fazer escolhas pessoais. Finalmente, e já com a gravidez avançada, encontrei médicos que integram o grupo Núcleo Bem Nascer e que me deram total apoio para ouvir nossas expectativas e desejos.”
Owen veio ao mundo em maio, após trabalho de parto que durou 24 horas e para o qual Maria Elisa havia se preparado durante toda a gestação por meio de acompanhamento com nutricionista, fisioterapeuta obstétrica, atividade física e acompanhamento de uma doula. “Na minha busca, percebi que aqui ainda é muito forte a cultura da cesárea, o medo do parto normal. Mas também que há um movimento que reconhece a mulher como protagonista do nascimento do filho, inclusive na rede pública. Busquei livros, documentários e muita informação sobre gestação e nascimento, fizemos cursos práticos e teóricos. Tanto que sabia tudo o que estava ocorrendo com meu corpo e brinquei de narrar o meu trabalho de parto.”
A dor – um bicho de sete cabeças para parturientes, existe, reconhece Elisa, mas o preparo e ferramentas de auxílio como bola de pilates, massagens, posições, imersão na água e outras ajudam a mulher a suportar o desconforto e aliviam a pressão das contrações. Amamentando o pequeno, que não para de crescer, a mamãe passa bem, totalmente recuperada e certa de que a escolha só trouxe benefícios para a família. “Claro que tive dor, cada vez mais forte, mas voltava para o pensamento de que ele estava chegando. E foi emocionante para mim, meu marido, minha irmã e minha mãe, a quem prestei uma homenagem com o parto natural, um desejo que todas as mulheres da família defendem.”
ESTATÍSTICAS X POLÊMICA
As indicações da Organização Mundial de Saúde (OMS) são contundentes em relação aos benefícios do parto vaginal (normal ou natural) para a mãe e para o bebê. Todavia, há casos em que os partos por cesárea são realmente necessários. A entidade estipula a média de 15% dessas intervenções num quadro de assistência ideal à gestante.
O problema é que a leitura e interpretação acerca do percentual gera polêmica entre quem defende um ou outro tipo de parto. Quem explica é o médico Carlos Henrique Mascarenhas Silva, presidente da Associação de Ginecologistas e Obstetras de Minas Gerais. “Há uma interpretação errônea da OMS, que fala de percentual mínimo e não de máximo. De fato, não existe uma taxa ideal de parto vaginal. O que a OMS fala é que nenhum país deve ter menos que 15% de parto cesáreo, que salva vidas e significa uma oferta adequada de assistência às gestantes.”
PARTO SEGURO
Na prática, o especialista informa que o objetivo do médico deve ser orientar a gestante. “É fato que a assistência de hoje é mais próxima no sentido de permitir que a parturiente ande, se alimente, utilize métodos não farmacológicos de alívio da dor. Mas o nome humanizado leva à desinformação. Não existe parto humanizado ou não humanizado, mas com qualidade ou sem qualidade, seja ele vaginal ou cesáreo. Ocorre que, com esse movimento todo, alguns grupos radicais acabam desqualificando as mulheres, que, devido a alguma complicação ou mesmo por desejo pessoal, não conseguem ou optam pelo parto vaginal.”
O especialista afirma que faz bem quem procura se cercar de informação, e, a partir daí, decide o modelo de assistência ao parto – cujo objetivo deve ser 100% amparado na segurança para a mãe e para o bebê. “O parto que nossa sociedade prega como coerente é o seguro, independentemente da via. Geralmente, uma gestação evoluirá para parto vaginal se ao longo do pré-natal não houver contraindicação para mãe e bebê. Mas, temos que entender que do mesmo jeito que existem mulheres que não querem de jeito nenhum a cesárea, há outras que só querem cesárea. Decerto, o parto normal é a via natural. No entanto, do ponto de vista bioético, o paciente é dono de sua decisão e não cabe a ninguém, nem médicos, impor a uma gestante fazer algo que ela não quer.”
Ressalva do médico é para a onda do parto domiciliar, “na moda” e divulgado por celebridades. “Na sociedade do século 21, é inadmissível parto domiciliar. A casa da gente não tem condições para uma emergência obstétrica, que deve ser solucionada em um prazo de 2min a 5min. Também não indicamos o parto na banheira, pois já há estudos que falam sobre riscos de contaminação para a mãe e para o bebê. Em síntese, a mulher deve ter conscientização, propriedade do seu corpo e para definir como passar pelo momento de parir o seu filho, além de cuidado para não passar da medida, ignorando a forma segura de fazer o parto. O que deve prevalecer é a cultura do parto seguro”, encerra.
[pro_ad_display_adzone id=”44899″ align=”left”]Prepare-se para receber a cegonha – O que deve nortear a gestante é a cultura do parto seguro. Veja, a seguir, o que dizem especialistas:
» A experiência do outro é do outro, seja boa ou ruim. Viva a sua experiência e não tome decisões baseada no que dizem as redes sociais
» O pré-natal é o momento para a gestante viver sua experiência, fazer seu caminho até a hora do parto. Converse com o médico e se prepare de acordo com seus anseios
» O parto vaginal é mais fisiológico, com recuperação mais rápida e interação mãe e filho maior, mas a mulher deve priorizar o parto seguro
» A analgesia pode alongar o trabalho de parto em 40min a 50min, mas não o impede; ou seja, a decisão é uma escolha da gestante
» O mundo contraindica o parto domiciliar, em queda em países como Holanda e Inglaterra
» A satisfação de um parto normal é importante, mas mães que o defendem não podem diminuir a que não conseguiu. Evite radicalismos
Fonte: Carlos Henrique Mascarenhas Silva, presidente da Associação de Ginecologistas e Obstetras de Minas Gerais
A evolução da assistência à gestante
» O pré-natal foi criado em 1916, nos EUA, e entrou para a história como a primeira forma de organização da assistência obstétrica no mundo
» A partir das décadas de 1950/60, também nos EUA, o parto foi levado para os hospitais e a assistência à gestante foi, aos poucos, sistematizada
» No Brasil, até a década de 1970, a população ainda era muito rural e a maioria dos partos domiciliares, o que resultou em inúmeras perdas de mães e bebês
» Hoje, a assistência hospitalar é ampla tanto na rede pública quanto na particular, mas o país lidera o ranking mundial de cesarianas, com a marca de 57% do total de partos realizados em geral, e com 84,4% no setor suplementar de saúde
A favor da saúde – Médico cria aplicativo gratuito que orienta gestantes e derruba mitos em torno da hora do nascimento, como o que prega a inviabilidade de parto normal após uma cesárea
Apesar de a primeira gravidez evoluir para cesariana, Ana Flavia Jacques, de 36 anos, jornalista, não sucumbiu à ideia de que na segunda haveria contraindicação para um parto normal. “Encontrei um médico da linha vaginal e comecei a planejar. A minha primeira menina, Maria Fernanda, nasceu há cinco anos e, quando engravidei novamente, percebi uma grande evolução nesse intervalo em relação à circulação de informação, até mesmo com a popularização de grupos nas redes sociais. Li diversos livros, assisti a documentários e fui atrás de mais informação para me empoderar para uma nova oportunidade”, descreve.
Mãe de segunda viagem, Ana encontrou um novo cenário. “Existe muito terrorismo em torno do parto normal, mas descobri que é possível e interessante até mesmo ressignificar essa ideia da dor, que pode se tornar prazerosa. Não se trata de uma partolândia, mas é fato que a mulher entra em transe, entrega o corpo para aquele momento. Assim, fiquei 48 horas maravilhosas em trabalho de parto, com acompanhamento de uma doula e de equipe de enfermeiros obstetras, em que testei minha resistência, minha força, engrandeci, num processo que inclusive facilita a amamentação e o início do nosso vínculo. Hormônio do amor, importante. Optei por não usar analgesia, valendo-me de recursos naturais para aliviar as dores”, conta.
No prazo-limite, ela precisou recorrer à cesárea, mas, como havia antecipado também essa possibilidade no plano de parto, a assistência ocorreu como gostaria. “Independentemente da cesárea anterior, a bolsa se rompeu muito cedo e não foi possível esperar mais. Ainda assim, fiquei satisfeita com a experiência e com a assistência que recebi, pois respeitaram totalmente meu plano de parto e Elisa chegou ao mundo amparada em cuidados.”
Ana insiste no termo parto humanizado para designar o tipo de assistência que recebeu e que defende. “Acredito no conceito, que existe mesmo na cesariana realizada com carinho. Conforme havia pedido, abaixaram o campo para que eu visse a Elisa, pedi para ela vir para o meu colo, para respeitarem a hora de ouro, para dar o peito. Os procedimentos médicos só foram feitos depois e em momento nenhum ela foi levada de perto da gente”, descreve.
Satisfeita com a forma como Elisa veio ao mundo, a mãe acredita que “toda mulher deve ser respeitada nas escolhas durante a gestação e o parto”. E vai além: “É muito importante buscar informação porque no Brasil a cultura da cesárea é muito forte e, de fato, poucas indicações são reais. Se a mulher tiver mais informação, constatará que o trabalho de parto não é um bicho de sete cabeças, que a natureza do corpo está aí para mostrar que ela pode passar por isso de forma mais tranquila, num caminho que traz muito mais benefícios do que se imagina”.
AJUDA NO APP
Médico de família há mais de 15 anos, Gustavo Landsberg se viu desafiado a melhorar a assistência a gestantes e parturientes no país. Veio daí a ideia de criar o Canguru gravidez, aplicativo gratuito que funciona como um canal de comunicação direta com a gestante, lista o percurso que ela pode fazer do pré-natal ao parto, responde a dúvidas, explica exames, sintomas, plano de parto.
Com pouco mais de quatro anos de existência, o app já conta com 320 mil cadastros em 1.085 cidades e cerca de 2 mil novos downloads por dia, é indicado por programas de assistência à gestante, como o projeto Parto Adequado, desenvolvido pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), o Hospital Israelita Albert Einstein (HIAE) e o Institute for Healthcare Improvement (IHI), com o apoio do Ministério da Saúde, e traz taxa de parto vaginal entre as assinantes bem superior à média nacional: 60,8% (contra 44,4% da média brasileira). “Temos uma equipe multidisciplinar formada por médicos, enfermeiras, doulas, odontólogos e psicoterapeutas, entre outros profissionais. Entendemos que o acesso a informações confiáveis é a chave para que a mulher possa fazer as melhores escolhas durante a gestação e o parto. Nosso objetivo é aumentar os índices de parto normal no país”, conta.
Entusiasta confesso do parto normal, o médico afirma que somente a informação é capaz de devolver à mulher o protagonismo da gestação e do parto. “Imagine que uma gestação pode durar até 42 semanas, mas é praxe no país agendarem a cesariana na 39ª ou 40ª, o que não recomendo, pois acredito que o bebê tem a hora certa de nascer. Então, é preciso levar informação segura e de qualidade para que a mulher decida, independentemente de razões mercadológicas que, muitas vezes, elegem uma cesárea por ser mais conveniente para o médico”, alfineta. Entusiasta confesso do parto normal, o médico afirma que somente a informação é capaz de devolver à mulher o protagonismo da gestação e do parto. “Imagine que uma gestação pode durar até 42 semanas, mas é praxe no país agendarem a cesariana na 39ª ou 40ª, o que não recomendo, pois acredito que o bebê tem a hora certa de nascer. Então, é preciso levar informação segura e de qualidade para que a mulher decida, independentemente de razões mercadológicas que, muitas vezes, elegem uma cesárea por ser mais conveniente para o médico”, alfineta.
Projetos e programas de assistência à gestante
Projeto Parto Adequado – http://www.ans.gov.br/gestao-em-saude/projeto-parto-adequado
Rede Cegonha – http://dab.saude.gov.br/portaldab/ape_redecegonha.php
Grupos de apoio
Ishtar – http://ishtarbh.blogspot.com/
Nascer Sorrindo – https://pt-br.facebook.com/nascersorrindocontagem/
Nascer Materna – https://pt-br.facebook.com/nascermaterna/
Núcleo Bem Nascer – http://www.nucleobemnascer.com/
Portal Canguru – http://www.canguru.life/
Para ler e assistir
– Parto ativo: Guia prático para o parto natural – A história e a filosofia de uma revolução
Janet Balaskas, Editora Ground
– A maternidade e o encontro com a própria sombra
Laura Gutman, Editora BestSeller
– O Renascimento do parto 2ª edição
Michel Odent, Editora Saint Germain
– Parto natural mesmo após uma cesárea
Hélène Vadeboncoeur, Editora M.Books
– Parto com amor
Luciana Benatti e Marcelo Min, Editora Panda Books
– Documentário: O renascimento do parto, volumes 1 e 2