Não é pássaro, tampouco avião: a criação do roteirista Jerry Siegel e do ilustrador Joe Shuster foi o protótipo do que hoje conhecemos como super-herói. Celebrando os 80 anos da primeira publicação do Superman na edição nº 1 da revista Action Comics, chega ao Brasil ‘A História de Joe Shuster: O Homem por Trás do Superman’ (editora Aleph), biografia em quadrinhos do artista que criou um ícone da cultura pop, que conta com roteiro do autor alemão. [pro_ad_display_adzone id=”44899″ align=”right”]
Julian Voloj e ilustrações do quadrinista italiano Thomas Campi.
“Sem Superman, não teríamos todos os super-heróis que temos hoje. Tenho certeza disso”, afirma Campi em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo. “Não é só porque foi o primeiro super-herói, mas porque era o início da indústria de quadrinhos na América. Se não fosse por esse personagem, creio que esse tipo de história não existiria hoje”, acrescenta o ilustrador.
A ideia original do roteiro de Voloj era contar a criação do Superman pelo ponto de vista tanto de Siegel quanto de Shuster, mas ele teve acesso às correspondência do artista no acervo da Columbia University e ficou fascinado com sua história. “Essas cartas falavam sobre sua situação de pobreza, o que me fez decidir torná-lo o narrador dessa história. Normalmente você não escuta falar de Joe Shuster, porque Jerry Siegel era a força motriz da dupla. Mas foi Joe quem realmente criou o imaginário do super-herói”, conta o roteirista.
Campi utiliza um estilo quase aquarelado que lembra pinturas de Edward Hopper para contar a história. Ao mostrar tirinhas antigas durante a graphic novel, o ilustrador reproduz o traço de quadrinistas clássicos como Winsor McCay, Will Eisner e do próprio Shuster com perfeição.
Filho de imigrantes judeus – sua mãe, cansada dos pogroms (perseguição deliberada de um grupo étnico ou religioso) na Rússia, foi para a América tentar a vida com o marido, que ela conheceu na Holanda -, Shuster passava os dias de infância no cinema em que seu tio trabalhava como projecionista, o que o fez ser cinéfilo desde criança.
Na época, lia quadrinhos clássicos como Os Sobrinhos do Capitão, Boob McNutt e Little Nemo. Joe compartilhava com o amigo de infância e colega de escola Jerry Siegel as paixões por cultura pop, literatura pulp e filmes. Não por acaso, uma de suas maiores influências visuais era Frank Paul, ilustrador das capas da revista Amazing Stories, do lendário editor Hugo Gernsback – que apresentou ao mundo autores como Isaac Asimov, Robert Heinlein e Arthur C. Clarke e hoje dá nome ao mais prestigiado prêmio da ficção científica.
A ideia original de um personagem que usava seus poderes sobre-humanos para combater o crime foi concebida por Siegel aos 19 anos, em 1933. No entanto, A História de Joe Shuster mostra que o caminho até a publicação, cinco anos mais tarde, foi bastante tortuoso.
O ilustrador Joe Shuster e o roteirista Jerry Siegel eram ainda muito jovens quando começaram a receber as primeiras respostas negativas das editoras a respeito do Superman, como retrata a graphic novel A História de Joe Shuster, de Julian Voloj e Thomas Campi. A inexperiência dos rapazes aliada ao anseio de ver sua criação publicada fez os dois venderem os direitos do personagem por meros 130 dólares, em 1938 – em 2012, num leilão realizado pelo site ComicConnect, o cheque que eles receberam da editora foi arrematado por 160 mil dólares.
O resto é história: 130 mil exemplares da primeira Action Comics vendidos e, até o final de 1939, 60 jornais publicavam tiras diárias ou dominicais do herói. Até então, as tirinhas de aventura se passavam em outros planetas, selvas afastadas ou épocas futuristas, deixando o ambiente realista para histórias detetivescas. O êxito do Superman foi justamente levar temáticas irreais para o cenário urbano. A graphic novel mostra, porém, como Shuster e Siegel se arrependeram do contrato firmado com sua editora. Quando foram demitidos, amargaram a pobreza e tiveram de travar uma batalha judicial para serem creditados por sua criação.
Tanto Campi quanto Voloj admitem não serem leitores assíduos de super-heróis. “Estou interessado em histórias sobre pessoas normais”, diz o ilustrador. “É por isso que eu quis tanto contar a vida de Joe Shuster e Jerry Siegel, pois é sobre amizade, paixão pela arte, ganância, sonhos”, completa Campi.
As origens judaicas do Superman, como as comparações com o mito de Moisés e a ideia de um imigrante na Terra, não são muito exploradas na HQ. “Essas interpretações são válidas, mas foram posteriores”, explica Voloj. “Mesmo sabendo que Siegel e Shuster vinham de famílias de imigrantes judeus, esse traço não me parece ser uma motivação consciente na concepção do Superman. Ele é mais uma encarnação da América do que um herói judeu.”
Relevância
Ivan Freitas, curador da exposição Quadrinhos – em cartaz no Museu da Imagem e do Som a partir de 14 de novembro -, comenta a importância do personagem para a história dessa mídia: “A Action Comics número 1 foi um ponto de virada porque introduziu uma série de elementos que acabaram virando a base da indústria de quadrinhos e da forma como os super-heróis são representados. O collant, a cueca por cima da calça, o símbolo no peito, a capa eram uma repaginação de uma série de coisas que já existiam e culminaram naquela forma que eles criaram e que virou padrão”.
O Superman lutou contra os nazistas antes mesmo dos EUA entrarem na 2ª Guerra – em uma tirinha de 27 de fevereiro de 1940, antecipando a icônica capa da Marvel com o Capitão América desferindo um soco no rosto de Hitler no ano seguinte. Mas Ivan Freitas acredita que o personagem não conseguiu manter, ao longo das décadas, a mesma relevância. “O mundo é mais cínico, ele talvez seja bonzinho demais para os dias de hoje. Mas foi fundamental.”
Já Ivan Reis, o atual ilustrador do Superman na DC Comics, discorda: “Ele nunca foi tão relevante quanto neste momento. O mundo é muito cíclico e está voltando a ser preto e branco, está se polarizando novamente. Ter uma figura como o Superman para representar uma ideia de justiça é fundamental nos dias de hoje”. Para Reis, o herói se tornou muito mais do que um mero personagem. “É um símbolo. Não importa quem o carregue. Em um mundo onde todo mundo precisa de representação, não há uma figura única que represente todos. O foco hoje do Superman é representar todos, e ele só consegue isso por ter virado a ideia do que é certo, da compaixão.”
Em ‘A História de Joe Shuster’, Voloj e Campi mostram também como os criadores do herói foram privados do reconhecimento que mereciam por sua criação – Shuster chegou a dormir na rua após perder o emprego como ilustrador. Foi apenas às vésperas do lançamento do filme do personagem, já nos anos 1970, que a situação financeira de Shuster e Siegel se tornou pública e a Warner Bros. decidiu pagar uma pensão vitalícia aos criadores. Como em uma boa história do Superman, triunfaram a verdade e a justiça.
A HISTÓRIA DE JOE SHUSTER
Autores: Julian Voloj e Thomas Campi
Tradução: Marcia Men
Editora: Aleph (192 págs., R$ 59,90)