Pelo menos 50 mil processos fraudulentos ou abusivos chegaram ao Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) nos últimos cinco anos. A prática irregular envolve problemas fictícios criados por advogados e é adotada principalmente em ações envolvendo pedidos de indenização por dano moral ou material em que o “cliente” nem sabe da existência do processo, graças a procurações forjadas, guias e documentos falsos. Também há casos de demandas repetitivas. As ações são basicamente contra operadoras de telefonia móvel e instituições bancárias. Na seção mineira da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), entre 5 mil e 6 mil profissionais respondem a processos por má conduta.
O que os advogados lucram com a prática? O valor das indenizações que supostamente seriam repassadas a seus clientes. Depois que entram com a ação usando dados e documentos sem o consentimento do autor, os profissionais procuram os “réus” em busca de acordos extrajudiciais sem a participação da parte prejudicada – amparados por procurações falsas. A partir desses acordos, as ações são extintas. “Muitos processos não chegam nem a ter uma primeira audiência”, diz a juíza Lívia Oliveira Borba, presidente do Núcleo de Monitoramento do Perfil de Demandas da Corregedoria-Geral de Justiça de Minas Gerais (Numopede).
Em um esquema fraudulento, esses advogados conseguem acessar – irregularmente – dados pessoais dos clientes de uma operadora de telefonia ou banco, até mesmo a assinatura digital deles, o que permite que falsifiquem as procurações. Um forte indício deixado é um volume grande de ações contra uma mesma instituição por parte dos mesmos advogados. São as chamadas demandas repetitivas. O Numopede encontrou o caso de um contrato que foi alvo de mais de 30 processos em diferentes comarcas.
O núcleo foi criado em Minas Gerais por uma portaria da Corregedoria-Geral de Justiça em agosto do ano passado, justamente para monitorar o uso abusivo da Justiça e acompanhar a proliferação de demandas fraudulentas ou predatórias. Estão no primeiro grupo práticas que inflam o acervo processual de um tribunal, como quando um advogado entra com dezenas de ações para discutir temas de um mesmo contrato. Já a fraude ou ato predatório é aquele em que há o uso de um documento falso.
O trabalho do Numopede é feito a partir de rotinas de investigação e compartilhamento de informações. “É até difícil falar isso, a maior parte dos advogados age de forma ética e leal com o processo civil, patrocinam interesses legítimos. Mas existe uma minoria que usa mal a Justiça”, lamenta Lívia Borba. Ela lembra que cada ação que chega ao Judiciário demanda dinheiro público e tempo de um servidor, oficial de Justiça, escrivão, juiz. Isso num universo em que há carência de profissionais e a reclamada lentidão na tramitação dos processos.
PROVIDÊNCIAS O Numopede já oficiou a seção mineira da Ordem dos Advogados do Brasil para acompanhar o trabalho do TJ e tomar as medidas cabíveis em relação aos advogados. A apuração das denúncias envolvendo os profissionais inscritos na entidade fica a cargo da Comissão de Admissibilidade e Instrução de Processos. O grupo tem hoje em mãos cerca de 12 mil casos, mas acredita-se que entre 5 mil e 6 mil envolvam efetivamente uma infração disciplinar praticada pelo advogado.
“Temos casos de clientes que representam contra um advogado porque o processo está demorando”, justifica o vice-presidente da comissão, Fábio Henri Siqueira. A OAB tem hoje 195 mil inscritos em todo o estado – dos quais entre 80 mil e 90 mil estão em atividade. De acordo com Siqueira, geralmente os casos enviados pela Justiça à OAB já estão sendo investigados por autoridades policiais ou Ministério Público. “A OAB vai então fiscalizar o advogado e aplicar a penalidade conforme a gravidade da conduta do advogado”, explica Fábio Siqueira. As sanções previstas no Código de Ética e Disciplina da OAB vão desde censura até suspensão, exclusão e multa. “Casos mais graves, que prejudicam o erário para beneficiar um grupo, já começam com a suspensão do advogado”, diz.
Relator dos processos que tramitam na ordem, o vice-presidente da Comissão de Admissibilidade e Instrução de Processos conta que diante da constatação de uma infração de natureza grave a ponto de ultrapassar a esfera da Lei do Advogado, a OAB encaminha ofício à polícia e ao Ministério Público para apuração e possível ajuizamento de ação criminal.
Lei assegura impunidade
A prática de ajuizar processos fraudulentos pode ser enquadrada no mínimo como litigância de má-fé – mas, paradoxalmente, o advogado não pode ser penalizado por ela. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) já estabeleceu que, para fins de responsabilização por dano processual, devem ser considerados o autor, o réu ou o interveniente, excluindo do rol os advogados que os representam.
Pelo fato de advocacia ser uma função essencial à Justiça, prevista constitucionalmente, a legislação assegura ao profissional prerrogativas para o exercício de suas funções, como a imunidade judicial, prevista no artigo 7º do Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Ou seja, para piorar a situação, a pessoa que teve o seu nome usado por um advogado para fraudar a Justiça, é que poderá sofrer as sanções pela prática irregular, geralmente o pagamento de multa.
É dor de cabeça na certa. Na pior das hipóteses, o suposto autor da ação terá que provar na Justiça que teve seu nome e dados usados irregularmente. O que demanda um grande transtorno, tempo e dinheiro para pagar um advogado. “Daí a necessidade de o juiz estar atento, nos informar diante de qualquer suspeita de fraude, se tem alguma conduta estranha por parte do advogado”, alerta a juíza presidente do Núcleo de Monitoramento do Perfil de Demandas (Numopede), Lívia Borba.
Mas isso não significa que o advogado não será penalizado criminalmente pela má conduta. Um exemplo emblemático apontado pelo Numopede envolveu três advogados de Varginha, presos em abril do ano passado pela Operação AD Judicia. Os profissionais foram investigados por dois anos e acusados de enganar clientes – o que os enquadrou nos crimes de apropriação indébita, falsificação de documentos e organização criminosa.
Os golpes eram aplicados em Varginha, Elói Mendes e Perdões, no Sul de Minas Gerais. De acordo com as investigações do Ministério Público, os advogados procuravam vítimas de cobranças indevidas e prometiam tirar os nomes delas dos serviços de proteção ao crédito. As ações envolviam basicamente empresas de telefonia. Para delegar a tarefa aos advogados, eles assinavam procurações e recibos em branco. Com os documentos, os advogados processavam as empresas e ficavam com as indenizações.