Terra
Apresentadora de um canal com 4.257.198 seguidores no Youtube, a estudante Julia Silva, de 13 anos, está se sentindo exposta pela primeira vez. A menina que faz sucesso na internet abrindo bonecas novas em frente à câmera, mostrando o próprio quarto ou compartilhando passeios com a família foi alvo de uma série de notícias nesta semana após o Ministério Público de São Paulo (MPE) pedir à Justiça que o Google derrube 102 vídeos dela e de outros seis youtubers mirins.
Para a promotoria, eles estariam sendo usados por empresas para driblar a lei e fazer propaganda infantil abusiva. Nos vídeos, os jovens influenciadores digitais aparecem desembrulhando brinquedos e mostrando detalhes, modalidade conhecida por “unboxing”. Também exibem material escolar, falam de novidades no cinema ou programas na TV – segundo o MPE, formas de propaganda disfarçada e ilegal.
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Para o MPE, a estratégia da fabricante serviria para estimular o consumo por parte das crianças, grupo considerado vulnerável. “A informação de que se trata de promoção paga e de que o patrocínio da campanha era daquela empresa aparecem de forma não destacada”, grifou na petição o promotor Eduardo Dias de Souza Ferreira. “Ambos podem passar despercebidos para um adulto, quanto mais por uma criança.”
Já a família de Julia alega que a campanha é uma “publicidade clara” – e não velada – e representaria menos de 10% do conteúdo do canal. Também diz ter comprado todos os brinquedos exibidos no Youtube, mesmo os da Mattel. “Os outros vídeos são conteúdos editoriais. A intenção sempre foi mostrar o que Julia gosta de fazer. Nunca foi estimular o consumo”, afirma a mãe e advogada Paula Queiroz, de 40 anos.
Os pais argumentam que o material publicitário não foi veiculado na plataforma Youtube Kids, estaria sinalizado com “todas as ferramentas” disponíveis na rede social e tinha mecanismos para evitar que crianças conseguissem participar sem anuência dos pais. “O concurso exigia que o responsável preenchesse um formulário com dados, inclusive CPF”, diz Paula.
Segundo a família, a série alvo do MPE foi gravada em São José dos Campos (SP), onde eles moravam na época. “Tudo foi acompanhado por um promotor local e havia um alvará da Justiça permitindo que Julia fizesse a publicidade”, diz Silva. “Foi um contrato profissional.”
Há cerca de dois anos, a youtuber mirim mora em Quebec, no Canadá, onde estuda em tempo integral. Ela cursa o equivalente ao 9.º ano do sistema brasileiro e foi premiada por manter média global acima de 90%. É fluente em inglês e francês e publicou três livros – um deles em Portugal. “O canal no Youtube não atrapalha, ela grava de duas a três vezes por semana, quando tem tempo, mas o estudo é prioridade”, diz a mãe.
Para os pais, falta clareza à regulamentação e restrições legais sobre publicidade infantil no Brasil. “Acho justo abrir um debate sobre o tema, o que não é correto é perseguir uma criança”, afirma Silva. “Se algum vídeo estiver ferindo a legislação, não vamos ter problema nenhum em tirar do ar.”
Criança é alvo de anúncio disfarçado, diz MPE
A ação civil pública movida pelo Ministério Público Estadual (MPE) cita sete youtubers mirins e 15 empresas. Entre elas, estão o canal de TV a cabo Cartoon Network e a Arcos Dourados, maior operadora da rede de restaurantes McDonald’s.
O MPE recorre ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e a normas do Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar) e do Código de Defesa do Consumidor (CDC) para fundamentar a petição. No pedido de liminar, requer à Justiça que o Google, responsável pelo Youtube, remova os vídeos e adote medidas que impeça a “monetização de vídeos violadores de direitos infantojuvenil”, além de pagar “danos morais”.
Segundo o documento, é “inegável” o prejuízo da prática ao público, que se torna “receptor de publicidade disfarçada de programação de entretenimento”, o que configura “comunicação mercadológica abusiva”.
Para o Instituo Alana, a publicidade é abusiva por se aproveitar da ingenuidade das crianças. “Pelo fato de a maioria das crianças acreditar no que ouve e vê, ela também acredita que o serviço anunciado vai realmente proporcionar-lhe os benefícios e os prazeres que a publicidade promete, mesmo que se trate de algo absolutamente irreal e impossível”, diz, em nota.
Segundo o instituto, crianças em torno dos 4 anos não seriam capazes de entender quando há a interrupção do programa e entra um intervalo comercial. E só aos 12 anos teriam condição de compreender o caráter persuasivo da publicidade.
Cerco
Ex-presidente da Comissão de Direito InfantoJuvenil da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Ricardo Cabezón diz que esta é a maior ação sobre o tema que já tomou conhecimento. “Como estratégia, o Ministério Público precisa mirar no Youtube porque, muitas vezes, os canais não têm contato dos responsáveis”, afirma. “A questão é que, por problemas de regulamentação, esses processos sofrem questionamentos técnicos na Justiça.”
Em nota, o Google e a Mattel disseram que não iriam se pronunciar. O McDonald’s afirma que “não trabalha com youtubers mirins” e que não faz anúncios em canais cuja audiência é de maioria infantil. O Cartoon Network não respondeu.
3 perguntas para Pedro Luiz Santi, professor da ESPM e psicanalista
1. É possível mensurar o impacto de publicidade por youtubers mirins?
A imitação é o principal mecanismo de aprendizado da criança, então tudo que for veiculado influencia. Na publicidade infantil, há dois planos de identificação. Um é o do “ideal”, por exemplo quando há um super-herói. O outro, mais forte, é o plano do “igual”. Se o influenciador é também uma criança, o impacto é maior.
2. A publicidade infantil deve ser totalmente restrita?
A completa restrição deixa a criança muito frágil. O ideal é apresentá-la progressivamente à publicidade, de acordo com a idade. Ou corre o risco de, quando for um adulto, virar presa fácil e surtar no dia que entrar em um shopping.
3. O que fazer?
O próprio governo tem buscado criar classificações indicativas. Chamar a sociedade civil para discutir quando cada elemento pode ser apresentado é muito importante.