Terra
A polícia de São Paulo investiga mais um líder religioso acusado de abusos sexuais. Três supostas vítimas depuseram ao Ministério Público de São Paulo em 2016 sobre Antônio Alves Marques Júnior, conhecido como Gê Marques, de 62 anos.
Ele é dirigente da igreja Reino do Sol, em São Paulo. O grupo religioso, hoje com sede em Mairiporã, na Grande São Paulo, mistura a doutrina do Santo Daime com umbanda.
O Ministério Público pediu a abertura de um inquérito, que foi instaurado no 14º DP da capital, em 2017, e está sob sigilo. A promotora e o delegado responsáveis não quiseram dar entrevista. Segundo o advogado de Gê Marques, o líder religioso ainda não foi intimado a depor.
Além das três mulheres, cujos depoimentos fazem parte da investigação, outras 12 afirmaram à BBC News Brasil que teriam sido vítimas de abuso sexual sem, no entanto, terem levado denúncias à Justiça.
Os supostos crimes teriam acontecido entre 2005 e 2015. Teriam ocorrido, segundo o relato das entrevistadas, em diferentes lugares: na sede da igreja, na casa do líder religioso e em motéis para onde algumas mulheres que faziam parte de rituais religiosos relataram ter sido levadas sem aviso prévio.
A BBC News Brasil entrevistou 11 mulheres, incluindo as três que depuseram ao Ministério Público, e recebeu relatos escritos de mais quatro. Todos os nomes nessa reportagem são fictícios.
A reportagem não trará detalhes de todas as alegações que foram ouvidas nem publicará na íntegra as entrevistas e depoimentos recebidos por escrito. Apenas três casos, que trazem elementos comuns à maioria das denúncias, serão reportados.
Entre as histórias narradas estão supostos casos de assédio sexual e até de supostos estupros. A maioria das mulheres acusa Marques de ter praticado os crimes enquanto elas estavam sob efeito de ayahuasca, uma bebida alucinógena, dentro de um contexto religioso, ou de drogas como LSD e ecstasy.
Gê Marques nega as acusações. Por telefone, ele se recusou a dar entrevista e enviou o contato de seu advogado. Para dar ampla chance de resposta, a BBC News Brasil listou em e-mail o conteúdo dos relatos.
Por meio de nota, seu advogado, Luís Eduardo Kuntz, afirmou que, caso essa reportagem fosse veiculada “nos termos da narrativa e perguntas encaminhadas”, “estará calcada em distorções absolutamente equivocadas e de má-fé, construindo cenários que nunca ocorreram” e que “impressiona a desfaçatez e leviandade como os relatos foram construídos, alterando completamente a verdade, para enxovalhar, com o máximo de dano possível, sua honra e reputação”.
Ainda segundo a nota do advogado de Gê Marques, “foram mantidas relações de amizade e proximidade com todas (sic) os frequentadores do Reino do Sol, relações estas sempre pautadas pelo respeito e urbanidade”. “Os fatos, se necessário e oportunamente, serão completamente esclarecidos perante as autoridades competentes.”
Afirmou, por fim, que “todos os envolvidos nesta grave e irresponsável acusação serão oportunamente responsabilizados civil e criminalmente”. Segundo o advogado, Marques está “à disposição” para depor no inquérito, do qual está ciente.
Por meio de nota, a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo afirmou que a Polícia Civil “encaminhou o inquérito de violação sexual mediante fraude à Justiça, solicitando prorrogação de prazo”. “Foi expedida carta precatória para ouvir o suspeito e diligências estão em andamento para localizá-lo. Vítimas foram ouvidas e a autoridade policial aguarda o retorno do inquérito para prosseguir com as investigações.”
‘Umbandaime’
O Reino do Sol foi fundado por Gê Marques em 2002. No auge da popularidade, dizem os ex-membros, a igreja chegou a ter um fluxo de 300 pessoas que iam participar de trabalhos espirituais e rituais. Membros fixos, como agora, eram ao redor de 100, que pagavam uma contribuição mensal de cerca de R$ 100.
Os membros têm um perfil predominantemente jovem, de classe média, muitos deles artistas e intelectuais moradores da zona oeste de São Paulo.
“Umbandaime”, religião do Reino do Sol, é uma mistura entre doutrinas: a umbanda já é ela própria uma mistura entre religiões africanas e cristãs, e o Santo Daime, fundado por um seringueiro na região amazônica nas primeiras décadas do século 20, bebe nas tradições espírita e xamânica, de consumo da ayahuasca.
O ritual, portanto, mescla elementos das duas religiões, e funciona resumidamente assim: os participantes ingerem ayahuasca ou, como dizem, consagram o Daime e, vestindo roupas brancas em fileiras ao redor de uma mesa em forma de estrela de seis pontas, cantam e fazem orações.
Então, sob influência da ayahuasca – permitida no Brasil em contextos religiosos e sem fins lucrativos – médiuns incorporam entidades da umbanda. O ritual costuma começar à noite e se estender até a madrugada.
O Reino do Sol é uma igreja independente e não faz parte de outros grupos religiosos maiores.
Gê Marques é referência em umbandaime. Formado em jornalismo pela USP, fez mestrado em Ciências da Religião na PUC de São Paulo justamente com foco na inserção da umbanda no Santo Daime. Conduz rituais também fora do Brasil.
As mulheres e outros ex-integrantes do Reino do Sol, entrevistados pela BBC News Brasil, são unânimes ao descrevê-lo: é, segundo dizem, extremamente inteligente e articulado, com grande capacidade de oratória, admirado pelos frequentadores e com muito conhecimento sobre umbanda e daime.
Os relatos
A acusação de Helena é uma das 15 relatadas à BBC News Brasil. Ela conta ter ido para uma sessão de descarrego em 2005. O ritual para livrá-la de energias ruins aconteceria, segundo seu relato, numa sala pequena, com duas cadeiras e uma maca, sem ervas, só com Gê Marques, sem a presença de outros médiuns, o que, segundo ela, seria incomum.
Marques ofereceu ayahuasca, diz ela. Quando a bebida “bateu”, ela teria começado a chorar. Ele tentou acalmá-la, fez uma massagem e propôs que cantassem, diz.
“Mas até aí, para mim, estava tudo dentro do que poderia ser normal. Eu estava com o dirigente espiritual que eu admirava, confiava. Estava entregue, buscando minha cura, buscando ajuda”, conta. A sessão de descarrego havia sido marcada dias antes porque o próprio médium, enquanto estaria incorporando uma entidade, havia lhe dito que ela precisava daquilo, diz.
Então, conta, ele teria proposto uma “dinâmica energética” na salinha, comum em outros rituais seus. Um deveria colocar a mão na parte do corpo do outro que estava “precisando de energia”.
Helena relata que colocou a mão no coração dele. Ela diz que Marques, então, teria movido a mão dela e colocado em seu órgão genital. Helena conta que se assustou, recolheu imediatamente sua mão e pediu para deixar a sala, que ela disse estar trancada. “Ele pediu para eu me acalmar e me deitar ao lado dele”, o que ela diz ter feito e, depois de um tempo chorando, insistiu para sair e ir embora.
Helena diz ter se convencido de teria ocorrido ali um incidente isolado, e continuou a frequentar o grupo religioso, um pouco mais ressabiada, mas ainda sem deixar de admirar o líder.
Em 2015 diz ter descoberto, no entanto, que outras mulheres relatavam experiências semelhantes.
“Como imaginava que seu ‘deslize’ havia acontecido apenas comigo, me deixei convencer que falar poderia ser mais destrutivo para todos do que me calar”, disse uma das mulheres.
“Ele fazia aparecer que aquilo tinha acontecido por acaso. Uma coisa é convidar de maneira explícita, mas, não, ele vai te conduzindo, te deixando encurralada. Se ele tivesse tido a coragem de deixar claras as suas intenções, eu teria tido a chance de escolher se queria ou não passar por aquilo. O método dele é manipulador”, disse outra suposta vítima.
“Naqueles flashes de segundos, você fica meio que paralisada. Pensa: ‘será que isso é uma prática energética?’ Hoje, fico indignada comigo mesma por tamanha ingenuidade. Só percebi anos depois que não houve propósito espiritual nenhum e que fui abusada”, relatou outra das supostas vítimas.
Massagens e terapias
As “vivências espirituais” no Reino do Sol iam além da prática tradicional do Daime, diz uma ex-participante, e envolviam massagens, alongamentos, exercícios corporais parecidos com aula de teatro ou Tai Chi Chuan, às vezes em uma casa alugada onde havia piscina.
Segundo as mulheres que conversaram com a reportagem, alguns convites para massagens terminaram em abuso. É o que alega, por exemplo, Roberta. Em seu caso, ela disse que aconteceu sem uso de ayahuasca ou algum outro psicoativo.
Ela diz que Marques a convidou para um “atendimento” em sua casa depois de uma sessão terapêutica na Escola da Rainha, uma casa de terapias do Reino do Sol que funcionou até 2008 na Vila Madalena, zona oeste de São Paulo.
“Ele me levou até o quarto. Ali já estava preparado no chão do quarto uma canga com velas, pedras e um vidro de óleo.” No começo, diz ela, foi mesmo uma massagem. Ela diz que ficou “por muito tempo acreditando que aquilo ali era reiki [tipo de massagem ‘energética’].”
No meio da massagem, conta, ele começou a tirar sua roupa e pediu que ela dissesse o nome de um animal e de uma cor. “Enquanto ele estava me massageando até de frente, sem sutiã, eu ainda estava em dúvida: ‘O que será que está acontecendo aqui? Será que é normal?’ Eu era nova, tinha 20 anos. Tinha aquela dúvida de ser imatura, de não querer parecer inexperiente, desinformada. E tinha muita confiança nele.” Roberta conta ter interrompido a sessão após Marques tirar a calça e se deitar sobre ela.
“Que essa reflexão sobre o que significa o consentimento seja feita em maior escala e profundidade. Porque não existe consentimento quando um homem utiliza a posição poder que ocupa, o momento de fragilidade da mulher à procura de apoio espiritual e o uso de drogas para cometer abuso sexual”, refletiu uma das supostas vítimas.
“Não frequento mais nenhuma igreja. Fala para mim que é mestre religioso, não quero nem saber”, disse outra mulher.
Crise na igreja
Segundo as mulheres, o poder exercido por Marques e a admiração que sentiam por ele fizeram com que não se dessem conta de que teriam sido abusadas dentro de circunstâncias supostamente similares. Elas dizem que isso ficou evidente para elas quando, naquele ano, pelo menos três alegações, que posteriormente chegariam ao Ministério Público, vieram à tona.
Entre eles, o de Carolina. Ela entrou na igreja com a família quando tinha 15 anos em 2006, orientada por seu padrasto.
Ela disse que Marques teria oferecido sessões gratuitas de terapia em sua própria casa para ela, com 16 anos na época.
Ao final da segunda sessão, ela diz, ele se aproximou dela no corredor. “Antes de abrir a porta, me beijou.” “Foi uma coisa muito ruim. Lembro de entrar no elevador pasma, totalmente confusa, e pensar: ‘nossa, será que ele está gostando de mim?’ Escondi da minha mãe, senti muita vergonha”, disse.
Carolina afirma ter sido abusada por ele em outras situações, incluindo uma em que ocorreu, após uma massagem, uma relação sexual com a qual ela diz não ter tido capacidade de consentir por estar sob efeito efeito de álcool e pela ascendência que ele exercia sobre a adolescente, então, com 17 anos.
“Para mim foi difícil porque ele não apontou arma nenhuma para ela. Como é que fala que foi abuso sexual? Ele poderia ser o avô dela. Depois entendi como ele usava o lugar de poder dele. As meninas eram enganadas, achavam que tinham feito algo de errado. Até hoje ela sofre com isso”, disse à BBC News Brasil o padrasto de Carolina.
Confrontado pelas alegações de alguns membros do grupo, o dirigente se afastou da igreja por um período aproximado de nove meses entre dezembro de 2015 e setembro de 2016. Em 1º de dezembro de 2015 ele mandou o seguinte email: “Aos meus irmãos do Reino do Sol, com luto na alma lhes dirijo estas palavras. Essa Casa viu seus alicerces serem abalados, e disso sou o único responsável. Tanta dor provocou a minha ignorância, e disso espero um dia me perdoar. Antes de tudo espero que estes tantos irmãos a quem faltei com a minha luz um dia possam me perdoar. A todas as mulheres, aos seus companheiros e familiares”.
“Vou atrás de entender as profundezas de meu ser, correr atrás de clarear os vícios da minha alma e meus enganos, garimpar a minha cura aonde no fundo da alma há o que iluminar. Vou buscar ajuda onde a Luz me apontar. Estou profundamente abalado e envergonhado. (…) Parto em busca de minha regeneração, procurando não perder a fé de que mesmo ao menor dos seres sejam concedidos o perdão (…).”
Procurado para comentar o e-mail, o advogado de Marques, Kuntz, diz que “os pedidos de perdão estão devidamente esclarecidos no contexto de e-mail antigo”. Ele se refere a um enviado por Marques antes disso, em 22 de novembro daquele ano, em que ele também comentava os relatos que já circulavam no Reino do Sol.
“Seja como for, sei que o que o escuro promove hoje tem como foco derrubar o Reino do Sol, através da minha pessoa”, diz o e-mail. Ele diz ter sido “obrigado a reavaliar” seu lugar de dirigente “de uma coletividade espiritual, que mesmo se pretendendo libertária, está imersa também nas sombras moralistas de nossa cultura”.
“Tenho vida afetiva e sexual normal. Nunca fiz papel de guru acético, ou de celibatário. Mas tentar me imputar a pecha de mal intencionado é infame. De mim a mais absoluta certeza de que, mesmo com meus enganos, sempre respeitei profundamente as mulheres (…) Mas o que se busca hoje é me fixar chavões da sombra moral, como assediador, abusador – com que a massa de linchadores se compraz.”
Para seu advogado, os pedidos de perdão são “o retrato de uma pessoa responsável e fiel à sua coletividade”. Nos e-mails trocados naquela época, outros membros defenderam o dirigente espiritual.
Marques voltou em setembro de 2016 e permanecia até dezembro à frente do espaço em Mairiporã. No final de 2018, depois que a BBC News Brasil entrou em contato com Marques e enviou perguntas a seu advogado, o líder espiritual anunciou que se afastaria novamente do Reino do Sol, segundo integrantes da igreja. Procurado para comentar, seu advogado disse não estar ciente de tal decisão.
Uma participante atual do Reino do Sol que não quis ser identificada o defende: “Não tenho nada contra ele. É minha casa do coração. Aquela situação já está resolvida”. Outra diz que o que teria acontecido “não tira o crédito do trabalho que ele fez por muitos anos”, e que Marques “sempre foi muito competente”, um dos poucos sabiam “muito bem administrar” ayahuasca aos frequentadores da casa. “É uma das pessoas que mais cuidado tem, é um cara superbacana.”