Estado de Minas
Desde 1º de janeiro, a obra de Monteiro Lobato (1882-1948), considerado o pai da literatura infantil no Brasil, caiu em domínio público. Isso significa que direitos autorais sobre seus livros e artigos não são mais protegidos. Está dispensada a autorização para utilizá-los. A proteção aos direitos autorais perdura por 70 anos, desde o primeiro dia do ano seguinte ao da morte do autor. Na prática, qualquer editora poderá publicar as histórias de Lobato – tanto reedições quanto adaptações que remetem a ele e a seus personagens.
“Não deixa de ser uma forma de democratizar, tornando o autor mais acessível. No Brasil, têm ocorrido muitos problemas com a administração de direitos por conta de herdeiros. Um aspecto interessante é que como Lobato era uma figura muito rica e complexa, (a liberação) permite a divulgação de perfil mais amplo de sua obra, principalmente por meio da disponibilização de arquivos pessoais, como cartas”, afirma Maria Cristina Soares, professora titular da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (Fale/UFMG).
Com a novidade, vários lançamentos estão previstos para este ano. A Globo Livros, que detinha desde 2007 os direitos exclusivos sobre a obra do criador de Pedrinho, Dona Benta e Tia Nastácia, deve colocar no mercado edições especiais de A chave do tamanho e O Picapau Amarelo. Em fevereiro, a Companhia das Letras lança nova edição de Reinações de Narizinho, além da biografia juvenil de Monteiro Lobato preparada por Marisa Lajolo, especialista na obra do autor, em parceria com a historiadora Lilia Schwarcz.
Pedro Bandeira, outro grande nome de nossa literatura infantil, está adaptando obras de Lobato para as crianças do século 21. Narizinho, a menina mais querida do Brasil será publicado em breve pela Editora Moderna.
A jornalista e escritora mineira Marcia Camargos, biógrafa do escritor e coautora de Monteiro Lobato: Furacão na Botocúndia (Edições Senac), vai lançar uma versão para o público jovem do livro de contos Urupês, que completou 100 anos em 2018 e tornou famoso o personagem Jeca Tatu.
EXPOSIÇÃO Na quarta-feira (16), a Biblioteca Nacional, com sede no Rio de Janeiro, abrirá exposição dedicada a Lobato. O público poderá ver exemplares de primeiras edições de livros dele, cartas trocadas com Lima Barreto, de quem foi editor e amigo, e vários manuscritos.
A instituição guarda cerca de 1 mil itens relativos ao escritor paulista, entre livros, manuscritos e cartas. “Nosso acervo sempre esteve disponível para a consulta do público. Uma parte dele, inclusive, está acessível digitalmente no nosso site. Agora, com o domínio público, haverá maior interesse das pessoas e das próprias editoras e autores sobre o legado dele, sem contar que aumenta a divulgação. Isso é importantíssimo”, destaca Ana Merege, curadora da Divisão de Manuscritos da Biblioteca Nacional.
EDITOR José Bento Monteiro Lobato nasceu em Taubaté, interior de São Paulo, em 18 de abril de 1882. Formou-se em direito na Faculdade do Largo São Francisco, na capital paulista, mas abandonou a profissão. Foi escritor, jornalista, tradutor, editor, empresário e fazendeiro. Fundou sua própria editora, publicando dezenas de livros para adultos e crianças.
Em 1920, Lobato lançou seu primeiro livro infantil, A menina do narizinho arrebitado, com grande sucesso. A partir daí, surgiram as histórias do Sítio do Picapau Amarelo, com aventuras bem brasileiras, recuperando costumes do interior, além de lendas do folclore como o saci. O autor usou também elementos da literatura universal, da mitologia grega, dos quadrinhos e do cinema. Além de tudo isso, tornou-se pioneiro da literatura paradidática.
Essa personalidade multifacetada é um dos aspectos que mais chamam a atenção da biógrafa Marcia Camargos. “Ele se envolveu em quase todos os setores da vida nacional. Da culinária ao movimento sem-terra, passando pelo petróleo, automóvel e até espiritismo, quando perdeu seus filhos. Depois da biografia (parceria dela com Carmen Lúcia de Azevedo e Vladimir Sacchetta), passamos a escrever artigos sobre os mais variados assuntos”, comenta.
MODERNO A professora Maria Cristina Soares ressalta a faceta do paulista não só como autor, sobretudo de livros infantis, mas como editor. Em parceria com Eliane Marta Teixeira Lopes, ela organizou a coletânea Lendo e escrevendo Lobato, que reúne textos de vários especialistas.
“Em parte, ele foi responsável pela modernização do mercado editorial brasileiro. Há um episódio muito curioso. A gente mal tinha livrarias naquela época. Certa vez, ele escreveu uma carta para todos os estabelecimentos comerciais do Brasil, com exceção dos açougues, oferecendo, de maneira irônica, um objeto chamado livro”, conta.
Sem dúvida, a faceta mais difundida de Lobato é sua importância para a literatura infantil. Marcia Camargos afirma não ter dúvida de que ele é o Hans Christian Andersen do Brasil. Esse dinamarquês escreveu os clássicos A pequena sereia e O patinho feio.
Monteiro Lobato se dedicou às crianças por não encontrar livros com temática brasileira para ler para os filhos. “Ele já escrevia para adultos e percebeu que as historinhas infantis não tinham nada a ver conosco. Lobato foi – e ainda é – um autor popular que defendia a literatura como instrumento da transformação da realidade, da formação de cidadãos. Uma literatura acessível ao grande público”, enfatiza.
Maria Cristina Soares destaca que esse autor revolucionário jamais infantilizou as crianças. “Ele trata da complexidade do pensamento delas, mas lidando com imaginação. Sua obra tem uma qualidade e uma relevância literária impressionantes. Sem contar a perspectiva didática interessante, pois aborda temas como mitologia e ciências. Até hoje Monteiro Lobato é lido, pois é atemporal, sem contar que sua obra ganhou outras leituras que ajudaram a disseminá-lo, como a própria televisão”, conclui.
PIONEIRO E POLÊMICO
Monteiro Lobato é alvo de polêmicas que voltarão à cena agora, quando sua obra cai em domínio público. Em 2010, um de seus livros mais importantes, Caçadas de Pedrinho (1933), foi acusado de “teor racista” pelo Conselho Nacional de Educação (CNE), que recomendou ao governo não distribuí-lo a escolas públicas. Posteriormente, a relatora do caso voltou atrás e decidiu que cada professor deveria dar explicações aos alunos sobre o preconceito presente no livro.
A discriminação estaria presente no tratamento conferido à personagem Tia Nastácia e a animais como o macaco e o urubu, entre outras passagens. Uma das frases escritas por Lobato é: “Tia Nastácia, esquecida dos seus numerosos reumatismos, trepou, que nem uma macaca de carvão”.
“Monteiro Lobato é um autor que não só reflete uma visão que muitos consideram racista, mas também tinha traços de uma desqualificação do negro mais significativa do que outros escritores. Sem dúvida, ele se alinha com uma perspectiva racial muito complicada”, observa Maria Cristina Soares, organizadora da coletânea Lendo e escrevendo Lobato.
Há pouco tempo, lembra a professora, comentou-se a ligação do criador de Emília, Tia Nastácia e Narizinho com a Ku Klux Klan, organização racista norte-americana. A revista Bravo! chegou a publicar cartas inéditas do escritor paulista se referindo a isso. “Um dia se fará justiça ao Ku Klux Klan; tivéssemos uma defesa dessa ordem, que mantém o negro no seu lugar, e estaríamos livres da peste da imprensa carioca – mulatinho fazendo o jogo do galego, e sempre demolidor porque a mestiçagem do negro destrói a capacidade construtiva”, escreveu Lobato, em 1938.
No entanto, a professora Maria Cristina Soares chama a atenção para o contexto em que Monteiro Lobato se formou. Nascido em 1882, seis anos antes da abolição da escravatura, e fazendeiro (recebeu terras como herança do avô), ele era uma homem de seu tempo, apesar de considerado visionário.
“Lobato nasceu no século 19, mas tinha pensamentos do século 19 e do século 20. Essa polêmica (do racismo) foi importante para trazer o outro lado dele, mas temos que entendê-lo em toda a sua complexidade. Ninguém nega que Lobato comungava desses ideários segregadores. Porém, não dá para desqualificar sua literatura por conta disso. Temos de situar o leitor naquele contexto em que o negro tinha um outro valor, infelizmente. Deve-se entender aquele momento histórico”, pondera a professora da Universidade Federal de Minas Gerais.
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A biógrafa Marcia Camargos não vê Lobato propriamente como racista, mas como um reflexo das ideias da época em que viveu. A jornalista reconhece, porém, que o escritor era defensor da eugenia. Essa teoria defende o aprimoramento da raça humana por meio da seleção de características hereditárias e genéticas consideradas “superiores” que seriam próprias dos brancos, por exemplo, em detrimento de negros e asiáticos.
“Ele se entusiasmou com isso, tinha tais arroubos porque queria achar soluções para o país, acreditando que a miscigenação era um fator prejudicial na formação do povo brasileiro. Ele namorou todas essas teorias, mas depois caiu em si”, garante Marcia Camargos.
De acordo com a especialista, a prova de que Lobato não desprezava os negros está no fato de ter escrito Negrinha (1920), eleito um dos 100 melhores contos brasileiros do século 20. O texto (veja trecho nesta página) retrata a coisificação e a animalização de uma órfã de 4 anos.
“Negrinha é um libelo contra o racismo, contra o espírito escravocrata, contra a hipocrisia da Igreja. Só essa obra anula todas as outras que poderiam ter algum caráter racista. As pessoas devem compreender que Monteiro Lobato tinha a mentalidade da época, embora fosse um homem à frente do seu tempo. Em sua casa ainda havia resquícios da escravidão. Não teria como Tia Nastácia ser a Dona Benta, proprietária de um sítio. Isso não refletia a realidade, pois o negro ainda era tratado como objeto”, afirma a autora de Furacão na Botocúndia.
No entanto, Marcia considera fundamental questionar a obra do escritor paulista. “Entendo que há pessoas que leram e se sentiram incomodadas – e é bom que se sintam assim, justamente para questionar. Monteiro Lobato sempre considerou a criança um ser independente, cujo senso crítico deve ser desenvolvido. Ela não pode ser colocada numa bolha. Principalmente no caso da criança negra, ela tem de questionar mesmo, caso se sinta ofendida. Só assim vai se formar um adulto crítico”, defende a biógrafa de Lobato.
PETRÓLEO
Monteiro Lobato era ferrenho nacionalista. Em 1936, ele lançou O escândalo do petróleo, defendendo a exploração do combustível apenas por empresas brasileiras. A campanha mobilizou o Brasil a partir de 1947, com o fim da 2ª Guerra Mundial e a derrubada do Estado Novo, ditadura comandada por Getúlio Vargas.
Lobato foi um dos líderes da campanha O Petróleo é Nosso. Defendia que a independência econômica deveria ser complemento da liberdade política decorrente da democracia. De acordo com ele, isso só seria possível com a exploração do combustível pelos brasileiros.
No período em que morou nos Estados Unidos, onde atuou como adido comercial, o escritor tomou conhecimento de conquistas tecnológicas e industriais ligadas à exploração do petróleo e do ferro. De volta ao país, ajudou a implantar a Companhia Petróleos do Brasil. Graças à grande facilidade com que foram subscritas as ações, Monteiro Lobato fundou empresas de perfuração de petróleo, como a Companhia Petróleo Nacional, a Companhia Petrolífera Brasileira e a Companhia de Petróleo Cruzeiro do Sul.
A maior delas, fundada em julho de 1938, era a Companhia Mato-grossense de Petróleo, que buscava o “ouro negro” perto da fronteira com a Bolívia.
“Ele sempre achou que tínhamos condições de ser autossuficientes com relação ao petróleo. Naquela época, nem se imaginava a extração no mar. Vemos em toda a trajetória dele o desejo de que o Brasil fosse um país desenvolvido, com distribuição de renda. Era até uma visão meio positivista. Lobato chegou a bater de frente com várias pessoas, inclusive do governo. Sem dúvida, foi questionador e inquieto, vivia se reinventando. Ele queria o melhor para o país”, conclui a biógrafa Marcia Camargos.