Não tire conclusões precipitadas ao ver um colega de trabalho com fones de ouvido. Pode não ser alienação ou falta de postura no ambiente corporativo. Mesmo sem saber disso, ao ouvir música enquanto realiza as tarefas que lhe são exigidas ele pode obter mais concentração e, assim, ganho de produtividade.
É o que sugere pesquisa feita por uma empresa norte-americana de streaming. O levantamento mostra que 78% dos colaboradores que ouvem música enquanto trabalham consideram-se mais eficientes nas tarefas.
Especialista em neurologia da cognição e do comportamento, membro titular da Academia Brasileira de Neurologia, Fabiano Moulin atesta os benefícios do hábito. Diz que a música funciona como uma “pílula de bom humor”, espécie de recompensa, que ativa no cérebro sensação semelhante à que experimentamos ao comer chocolate. “Literalmente, estimula o prazer”.
O efeito, a partir daí, ocorre em cascata: mais humor, mais atenção, mais competência e produtividade, diz o especialista, professor titular na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Segundo o neurologista, embora promovam benefícios, as composições devem ser adequadas e compatíveis com a atividade executada – tanto em relação ao ritmo escolhido quanto à intensidade, capazes de blindar o ouvinte dos ruídos externos.
“É super importante sincronizar música e tarefa. Meditação com heavy metal provavelmente não dará certo, mas correr com uma música de alta frequência vai ajudar a combinar o ritmo das pernas com o do coração” – Fabiano Moulin, neurologista especialista em cognição e comportamento
Lucas Prates
VÍCIO BOM – Há 20 anos, Cinthya trabalha com o radinho ligado: “Às vezes, ligo antes mesmo de apertar o botão do computador. Gosto de músicas calmas, que tiram o estresse do dia a dia e me ajudam a concentrar”
Barulho de fora
Não por acaso, 30% dos entrevistados no levantamento disseram que os fones de ouvido eram mais do que uma maneira confortável de escutar a própria trilha sem incomodar o colega ao lado, estratégia também para ocultar e se desvencilhar dos barulhos externos.
“Quando o som é programado e regular, neste caso, a música, torna-se um estímulo positivo. O mesmo vale para o som de um passarinho ou o barulho do ar condicionado. O contrário, por sua vez, acontece com a conversa dos outros, pela qual acabamos seduzidos. Naturalmente, focamos nela e deixamos de prestar atenção no que interessa”.
Há 20 anos
A administradora Cinthya Chrystiane Fonseca, de 38 anos, sabe bem disso. Há pelo menos 20 anos considera-se viciada em trabalhar com o radinho ligado, embora não faça questão dos fones. “Se por algum motivo ele desconecta do computador e a música para, fico desnorteada, parece que falta algo”, revela a moça, que prefere músicas “calmas”.
O cirurgião-dentista Gilberto Eustáquio dos Santos também não dispensa uma trilha sonora quando está em consultório ou sala de cirurgia. Já ficou até conhecido pelo hábito entre os colegas de bloco cirúrgico. Conta, que, antigamente, quando ainda não existiam apps de streaming, revezava entre fitas K7 e o bom e velho rádio.
“O ambiente fica leve e todo mundo relaxa – do paciente, que, vem estressado de uma noite mal dormida, à equipe de enfermagem. Sem música, fica todo mundo sério e o tempo demora a passar até transcorrer toda a cirurgia”, justifica o profissional, que é fã de músicas instrumentais.
Playlist ‘perfeita’ deve ser baseada em preferências pessoais
Embora seja uma ferramenta comprovadamente eficaz para relaxar, concentrar e até melhorar a eficiência no trabalho, a música certa para cada momento não existe, é uma escolha individual. “Cada pessoa terá uma consideração sobre o que mais lhe agrada em determinado contexto”, justifica a psicóloga e musicoterapeuta Simone Presotti. Para ela, não há “farmacopeia musical”.
A profissional explica que as composições instrumentais costumam ser mais apreciadas no ambiente de trabalho por não competirem com a atenção necessária em outras tarefas. “Pensar na letra recruta atenção. A música instrumental, que só traz um eixo melódico e harmônico, não induz a compreensão, exigindo, portanto, menos recursos neurológicos”, observa, lembrando que treinos de memorização, por sua vez, devem ser feitos com músicas com letras.
Seres primordialmente auditivos, os humanos são, desde que o mundo é mundo, movidos por músicas das mais diversas naturezas. Basta lembrar dos cantos entoados pelos camponeses ou dos sons dos tambores dos navegantes nas grandes expedições. “A diferença de ‘função’ está na batida sonora, que pode estimular um movimento, colocar todos num mesmo compasso, ou simplesmente incentivar a concentração, do que trata a pesquisa”, conclui a musicoterapeuta. Maurício Vieira
BOM PARA TODOS – Gilberto é fã de música instrumental, que ouve no consultório e até em cirurgia
Conjunto de fatores
Músico profissional há mais de 40 anos, diretor da Melody Maker Escola de Música, em Belo Horizonte, Flávio Mannuel reforça que o ideal, no local de trabalho, é que a música, além de sem letra, seja desconhecida por quem ouve, minimamente suave e sem grandes mudanças de intensidade.
“Posso pegar uma canção do AC/DC e fazer um arranjo adaptado para criar uma situação de relaxamento. Basta mudar o tipo de instrumentação – evitando guitarras e sopro, que são mais agressivos –, a velocidade da música e a intensidade e evidenciar a suavidade com violinos e flauta, cujos sons são mais doces”, afirma.