Um filme de terror nordestino chega às salas de cinema de todo o Brasil nesta quinta-feira (3). O clube dos canibais, do cearense Guto Parente, acompanha a trajetória Otávio (Tavinho Teixeira), dono de uma empresa de segurança privada, e sua esposa Gilda (Ana Luiza Rios). O casal da alta sociedade tem o hábito de assassinar e comer seus empregados. Eles integram o grupo citado no título, composto por personalidades da elite cearense e que tem como líder o deputado Borges (Pedro Domingues), um influente político da região. Durante a trama, Gilda descobre um segredo do deputado e agora o casal protagonista, que sempre assassinou pessoas a sangue frio, corre risco de vida. No Recife, o filme está em cartaz no Cinema São Luiz, Centro da capital.
A produção foi inteiramente filmada no Ceará, entre Fortaleza e a praia de Guajiru. A ideia para o tema surgiu de uma história real ocorrida em Porto Alegre (RS) entre 1864 e 1865 e relatada no livro O maior crime da terra, do historiador Décio Freitas. A publicação discorre sobre um casal que seduzia as vítimas para uma casa, as matava, esquartejava e produzida linguiças de carne humana – algo semelhante às empadas dos canibais de Garanhuns, caso que causou choque e revolta em Pernambuco. As vítimas eram sempre homens seduzidos pela mulher, criando um jogo sexual perverso e mórbido que encabeça O clube dos canibais.
O título e a sinopse dão a impressão de que esse é um filme de terror que trabalha com tortura, mortes e sangue. De fato, existe certa influência do subgênero gore, caracterizado pela presença de cenas extremamente violentas e muito sangue, mas a principal mensagem é bem mais social. É como se o ato do canibalismo fosse como uma metáfora de uma elite que não enxerga indivíduos de classes sociais inferiores como humanos, explorando-os e devorando-os para expor questões de classe e poder. Assim, o filme entra na mesma linha do terror social de O animal cordial (2017), de Gabriela Amaral Almeida, e As boas maneiras (2017), de Juliana Rojas e Marco Dutra, por exemplo.
Diferentemente dos longas citados, O clube dos animais não traz incômodos nas entrelinhas. É tudo muito escrachado, dicotômico e quase satírico. Isso fica claro em cenas como um diálogo sobre a superioridade do primeiro mundo, um desejo de morte a flanelinhas e uma campanha de publicidade criada para a empresa de Otávio. O ápice desse teor social é quando, durante um jantar do Clube, um discurso do deputado Borges atenta sobre uma suposta ameaça aos valores da elite. “Nossos inimigos querem transformar esse país em um país de miseráveis, delinquentes, pederastas e toda uma escória social que deveria estar esmagada sob nossos pés. Mas nós não vamos cair nunca, porque somos muitos e somos fortes”.
“O clube dos canibais é como uma investigação do mal. São os limites do cinismo e da hipocrisia postos em cena”, explicou o diretor e roteirista Guto Parente, durante debate na pré-estreia do filme no Cinema São Luiz na última terça-feira. “Eu já tinha vontade de falar sobre essa elite e estava pirado em cinema de terror, sendo atravessado por ideias canibais”, continua o artista, que começou a escrever o roteiro em 2013, aplicou o projeto em edital em 2014 e acabou montando um filme em meio ao turbilhão do Brasil nesta década.
“O filme ia ter um teor político menor, ia ser mais psicológico, mas fui sendo atravessado por essas questões sociais. Quando estreou no Festival de Rotterdam, na Holanda, um amigo me perguntou se o discurso do deputado era uma colagem de coisas que foram ditas na sessão do impeachment de Dilma Rousseff na Câmara. Isso me deixou arrasado, pois eu queria que esse filme fosse muito mais distante da realidade do que ele está. O filme aborda um terror no cotidiano, mas acho que estamos vivendo também um momento de literalidade. As leituras das coisas acabam caindo em uma literalidade muito grande”, pontua Guto.
Outro mérito de O clube dos canibais é explorar o cinema de gênero em um contexto diferente das produções anglófonas ou do Sudeste do Brasil. Vários filmes da atualidade estão se apropriando das tradições cinematográficas norte-americanas para realizar produções na nossa realidade. “Bacurau é um divisor de águas nesse sentido”, diz o diretor. “Acho que o nosso cinema está se provando ser a ponta de lança do Brasil. Talvez porque também não funcionamos tanto na lógica do grande mercado”, opina.
O clube dos canibais já foi exibido em mais de 30 festivais internacionais ao longo de 2018 como Bafici, BFI London FF, Scream Singapore, Fantasy Filmfest, Strasbourg European Fantastic FF, entre outros. O filme já foi vendido para diversos territórios, com distribuição garantida em países como EUA, Alemanha, Japão, Inglaterra, Suécia, Noruega, Dinamarca. A semana de estreia do Brasil terá que competir com o norte-americano Coringa, que ocupa quase 80% das salas do país. “Vai ser difícil, mas até eu quero ver, porque gosto muito do Joaquin Phoenix”, brinca Guto. (Uai)