Promulgada em setembro do ano passado, após ter sido foco de tensão entre o Executivo e o Congresso Nacional, a lei do abuso de autoridade entrou em vigor e provoca mudanças importantes no curso de processos penais e investigações pelo país. A medida gera impacto imediato na conduta de juízes, do Ministério Público e da polícia. Os principais pontos da nova lei se baseiam em experiências que resultaram de ações da operação Lava-Jato, e embora não deva afetar os processos que já foram julgados, tem potencial para mudar decisões judiciais tomadas a partir de agora.
Em seus principais trechos, a legislação prevê punição para magistrados que decretarem prisões sem fundamento legal e impede o bloqueio de bens e valores “exorbitantemente” acima do que o criminoso pode ter desviado. Somada ao pacote anticrime, que introduz outras alterações no processo penal e começa a valer no final deste mês, a lei do abuso de autoridade faz parte de uma série de mudanças na lei penal aprovadas pelo Legislativo.
O artigo 9 da nova lei prevê prisão de um a quatro anos para o juiz que “decretar medida de privação da liberdade em manifesta desconformidade com as hipóteses legais”. A mesma pena está prevista para o juíz que deixar de “deferir liminar ou ordem de habeas corpus, quando manifestamente cabível”. Ou seja, poderá ir para a cadeia o magistrado que não conceder a liberdade para o preso que tiver esse direito.
Grande parte dos artigos prevê garantias que já existiam no ordenamento jurídico brasileiro, mas não eram plenamente respeitadas. Esse é o caso de prerrogativas de advogados. De acordo com a nova legislação, será considerado abuso de autoridade o ato que impede o preso, o réu solto ou o investigado de conversar de forma reservada com seu defensor.
A punição também será aplicada se o agente público impedir o réu de se sentar ao lado do advogado durante a audiência, com exceção para depoimentos prestados por meio de videoconferência. Um dos artigos foi incluído devido à forte influência do caso do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. A lei pune quem “decretar a condução coercitiva de testemunha ou investigado manifestamente descabida ou sem prévia intimação de comparecimento ao juízo”.
Lula, que foi conduzido pela Polícia Federal para depor no âmbito da Lava-Jato, reclamou que foi vítima de abuso e perseguição política. Em 2017, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que é ilegal a condução coercitiva especificamente para que o depoimento do investigado seja colhido. Mesmo assim, os parlamentares decidiram incluir esse dispositivo no texto.
Condutas O professor Conrado Gontijo, doutor em direito penal pela Universidade de São Paulo (USP), afirma que a mudança na legislação não trará prejuízos a investigações e ao trabalho de juízes, policiais e procuradores que atuam dentro da lei. “Essa lei efetivamente pune, não o agente do Judiciário, do Ministério Público ou policial que atue de forma legítima de suas profissões. A lei, na verdade, discrimina condutas que são inaceitáveis”, afirma.
A nova lei recebeu apoio de muitos advogados e instituições, como a Ordem dos Advogados do Brasil. No entanto, por outro lado, esbarra na resistência de juízes, integrantes do Ministério Público e entidades de classe, a exemplo da Associação dos Delegados da Polícia Federal (ADPF), que entrou com ação no Supremo Tribunal Federal (STF) para anular partes da lei.
Para o deputado Capitão Augusto (PR-SP), presidente da Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado e coordenador da Frente Parlamentar Mista da Segurança Pública, também conhecida como bancada da bala, a lei de abuso de autoridade é um retrocesso no combate à criminalidade e à corrupção.
“Lamentavelmente, o Congresso deu um péssimo recado à sociedade. E o pior é que a aprovação dessa lei foi uma retaliação do Parlamento contra as investigações da operação Lava-Jato. É uma posição que vai em sentido totalmente contrário a todo o esforço que fizemos contra a corrupção. A partir de agora, policiais, promotores e juízes ficarão inibidos, temerosos em desempenhar suas funções, porque as punições da nova lei são muito rigorosas. Em suma, trata-se de um grande retrocesso”, disse Capitão Augusto.
O projeto que originou a nova lei de abuso de autoridade fez parte do 2º Pacto Republicano, de 2009, proposto pelo ministro Gilmar Mendes, do Supremo, que ocupava a presidência da Corte, e pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.