A comunidade científica norte-americana reagiu com incredulidade e estupor às recomendações feitas pelo presidente Donald Trump, na quinta-feira, aos portadores de Covid-19. Em entrevista coletiva na Casa Branca, o republicano sugeriu a injeção de desinfetante e a exposição à luz ultravioleta como armas contra o novo coronavírus. “Eu vejo que o desinfetante nocauteia (o coronavírus) em um minuto. Um minuto. Existe uma maneira de fazer algo assim com uma injeção interna, ou quase como uma limpeza?”, questionou. “Como vocês podem ver, isso entra nos pulmões e tem um efeito enorme, por isso seria interessante verificar. Teríamos que chamar médicos para isso, mas parece interessante para mim. Então, vamos ver. Mas todo o conceito da luz, a maneira como ela mata o novo coronavírus em um minuto, é algo muito poderoso.”
Ante a imensa repercussão das declarações de Trump, a Casa Branca acusou a mídia de tirá-las de contexto, enquanto o próprio presidente disse que fazia uma pergunta “sarcástica” aos jornalistas. “Eu questionava, sarcasticamente, os repórteres para ver o que ocorreria”, tentou justificar Trump. Potencial adversário na eleição de 3 de novembro, o democrata Joe Biden reagiu ao episódio com ironia. “Não acredito que tenha de dizer isso, mas, por favor, não bebam água sanitária”, escreveu no Twitter. Presidente da Câmara dos Representantes e colega de partido de Biden, Nancy Pelosi disse que a recomendação de Trump sobre os desinfetantes é “consistente com todas as suas outras declarações, que não têm relação com a ciência, com fatos, evidências e dados”.
Cofundador do Instituto de Virologia Humana da Faculdade de Medicina da Universidade de Maryland e da Rede Global de Vírus, e um dos cientistas que isolaram o HIV na década de 1980, Robert C. Gallo disse ao Correio que o republicano foi “imprudente” ao fazer a ilação sobre desinfetante injetável. “Suspeito que, às vezes, Trump não escuta seus conselheiros científicos. Eu me pergunto se o mesmo ocorre com todos os líderes políticos. Todos eles, a maioria, ou alguns, seguem conselhos de especialistas? E, se são leigos, como sabem quem é realmente expert?”
Ray Marino, professor da Divisão de Toxicologia Médica da University Hospitals Cleveland (em Ohio), explicou à reportagem que as mensagens emitidas por Trump são perigosas. “Tais sugestões podem provocar graves lesões nas pessoas. O presidente mostrou dissimulação ao afirmar que os conselhos dados durante a entrevista na Casa Branca foram ‘sarcasmo’, quando, claramente, não foram apresentados de maneira sarcástica. O conselho médico dado por Trump já machucou pessoas, e estou com muito receio de que ele provoque danos a mais norte-americanos”, comentou. Segundo o médico, apesar de contar com os conselhos de especialistas, incluindo Anthony Fauci (principal consultor médico da Casa Branca para a crise da Covid-19), o magnata rotineiramente escolhe desconsiderá-los. “Muitas vezes, ele faz declarações contrárias à prática médica baseada em evidências. Trump não tem licença para praticar a medicina”, disparou.
O fabricante dos desinfetantes Lysol e Dettol, bastante consumidos nos Estados Unidos, chegou a pedir aos consumidores que não façam uso errado dos produtos. “Enquanto líder em produtos para saúde e higiene, precisamos ser claros que, sob nenhuma circunstância, nossos produtos desinfetantes devem ser administrados no corpo humano (por meio de injeção, ingestão ou qualquer outra forma)”, afirma a Reckitt Benckiser (RBGLY). Na segunda-feira passada, o Centro para Controle e Prevenção de Doenças dos EUA anunciou que as intoxicações por desinfetantes e outros produtos de limpeza aumentou mais de 20% no primeiro trimestre.
Além da polêmica, Trump se viu às voltas ontem com uma derrota pessoal. A FDA — agência de controle de medicamentos e alimentos dos Estados Unidos — alertou contra o uso das drogas cloroquina e hidroxicloroquina no tratamento da Covid-19 fora do ambiente hospitalar. De acordo com o órgão, os dois compostos podem causar “graves problemas cardíacos” em pacientes, entre eles, taquicardia ventricular.
China
Os Estados Unidos indicaram que a China pode ter tomado ciência dos primeiros casos de infecção do novo coronavírus em novembro, um mês antes que o alegado pelas autoridades de Pequim. “Você se lembrarão que os primeiros casos foram conhecidos pelo governo chinês talvez desde novembro e, sem dúvida, desde meados de dezembro, e levaram tempo para avisar o resto do mundo, incluindo a Organização Mundial da Saúde (OMS)”, declarou o secretário de Estado americano, Mike Pompeo, a uma rádio local de Washington. Até o fechamento desta edição, a China contabilizava 83.885 casos de Covid-19 e 4.636 mortes, segundo o Centro de Pesquisa sobre o Coronavírus da Universidade Johns Hopkins, em Baltimore, no estado de Maryland.