Uma vez olheiro, sempre olheiro. Mesmo sem querer, Miguel Crispim anda pelas ruas tentando enxergar potenciais modelos, mas só aborda as pessoas quando tem muita convicção. Como agente internacional, este mineiro de Itabira, que estudou em Belo Horizonte e hoje vive em Nova York, chegou a um ponto da carreira em que se dá ao luxo de escolher com quem quer trabalhar. “Quero ser muito seleto para fazer o meu melhor trabalho”, avisa. Miguel está na casa dos pais, em Itabira, desde janeiro (fazia dois anos que não vinha ao Brasil). O plano era voltar em março, mas a pandemia chegou e deixou todo o mercado em stand-by. Assim que as atividades retomarem, o agente vai organizar sua mudança para Los Angeles, onde ele acredita que vão estar grandes oportunidades nos próximos anos.
O que faz um agente internacional?
Podemos comparar a um empresário de jogador de futebol. Como agente internacional, apresento os modelos para as agências do exterior e, quando eles são contratados, organizo todos os processos, de passaporte, visto até a estada. Acompanho todos os passos durante o trabalho e continuo trabalhando depois que o modelo já não está mais lá. Se a campanha era para ficar durante um mês no outdoor e estão usando há mais de um ano, tenho que ir atrás da agência.
De onde vem o seu interesse pela moda?
Sempre fui envolvido com moda. A minha mãe é costureira e cresci olhando revistas, vendo os clientes chegando ao ateliê dela e isso me despertou um interesse muito grande. Com 16, 17 anos, surgiu o sonho de ser modelo. Era obeso, mas muito determinado, então perdi mais de 20kg para seguir o meu sonho. Não vou falar que era por causa do glamour, uma tia tinha sido manequim nos anos 1980 e 1990 e sempre pesquisava sobre esse mercado. Era uma admiração pela moda e um desejo de trabalhar com moda. Hoje vejo que talvez fosse uma confusão da minha cabeça. Queria estar envolvido com moda, não necessariamente ser modelo. Mas comecei a investir nisso, perdi peso, fiz book, cursos, ia uma vez por semana a BH para fazer curso de passarela. Sempre coloquei muito esforço nisso, cheguei a fazer desfiles e campanhas, mas infelizmente o mercado de BH era muito pequeno e muito complicado em termos de aceitação, ainda mais para um homem negro.
“Hoje você não precisa ter necessariamente uma beleza clássica, precisa ter algo a mais. Às vezes, um rostinho bonito pode ser negado”
Como você entrou para uma agência?
Fiz vestibular de moda na Fumec e, durante o período da faculdade, fui aprendendo e me ligando a pessoas da área. Todo este processo foi muito importante para chegar aonde estou hoje, mas dentro da faculdade sentia falta de estar envolvido com modelos. Não queria trabalhar 100% com roupa, então procurei a minha agência e consegui um trabalho de olheiro. Olheiro é quem busca pessoas interessantes, que seguem as medidas – altura, corpo magro, longilíneo e beleza, conversa com as pessoas e as convida para ir à agência. Fiquei tão empolgado com a proposta que comecei a sair desesperadamente descobrindo modelos. Nesse período, fiz quatro descobertas que foram de muito sucesso. Como estava mostrando um resultado legal, fui chamado para ser assistente de booker. É quem acompanha e dá suporte para os modelos durante os trabalhos. Logo virei assistente do departamento internacional. Fazia reuniões com os modelos, providenciava passaporte e toda a documentação para viajar e organizava as viagens. Quando estava finalizando a faculdade, virei agente internacional. Durante a aula, o telefone tocava, era uma agência de Nova York querendo falar naquele momento, ou de madrugada me ligavam da Austrália. Fusos totalmente diferentes e você tem que estar de prontidão. É um trabalho que requer muita dedicação.
Em que momento você decidiu pela carreira solo?
Quando modelos começaram a me procurar. Teve uma situação de um modelo que saiu do Chile para fazer reunião comigo em BH porque queria que eu cuidasse da carreira internacional dele. Aí comecei a trabalhar como agente internacional independente. Tinha sido convidado para trabalhar em Nova York, numa agência que estava iniciando, mas não deu certo. Nisso, me apaixonei pela cidade e resolvi ficar. Morei um período na Cidade do México, tinha muitos modelos trabalhando lá, e fui me fortalecendo. Quando você trabalha em agência, às vezes nem vê tanto potencial em um modelo, mas tem que vender o “produto”. Trabalhando de forma independente, tenho liberdade de escolher com quem quero trabalhar. Recebo milhões de mensagens e vejo muita gente interessante na rua, mas quero ser muito seleto para fazer o meu melhor trabalho. Hoje tenho um time de 33 modelos. Se comparar com qualquer outro agente ou agência, é um numero pequeno, mas gosto de trabalhar assim, porque posso dar atenção a todos. Acabo virando pai, mãe, tio, amigo, psicólogo e conselheiro. Seleciono também por afinidade. Já representei meninas incríveis, que hoje são superfamosas, mas não bateu aquela afinidade. Vejo o relacionamento de modelo e agente como uma amizade verdadeira, porque precisa haver cumplicidade e confiança.
Fale sobre alguns modelos que agencia.
A Amira Pinheiro, do Maranhão, acabou de fazer uma capa da Vogue. A Samara de Oliveira, de Minas, é recordista da São Paulo Fashion Week (SPFW) – foram 17 desfiles na penúltima edição. Tenho um caso interessante, do irlandês Ferdia Gallagher, que me escreveu pelo Instagram falando que queria ser modelo e perguntando se teria chance. Um mês depois, consegui fechar com uma agência em Paris e no mês seguinte um desfile exclusivo da Celine. Logo depois ele fez capa de revista, foi para o Japão e fez campanha na Irlanda. De estrangeiro também tenho o Bernardo Belmar, que é chileno. Outra história incrível é a da Marcella Thomé, de São Paulo, que acabou de fazer uma campanha da Pantene. Ela é a primeira modelo trans a fazer uma campanha de cabelo. Já fez também campanha de óculos na Itália, campanha da Hering e vários desfiles internacionais. Tem o Márcio Souza, que nasceu em São Paulo, mas foi criado em Minas, que já fez a campanha mundial da marca de chás Lipton. Represento também o Andre Ziehe, do Rio de Janeiro, que hoje é considerado um dos modelos ícones, ficou na lista dos 50 melhores do mundo. De BH, represento a Tamiris Freitas, que já fez Victoria’s Secret e ficou muito famosa nos Estados Unidos, e a Carolina Brandão, que já fotografou para a Crest, marca de pasta de dente dos Estados Unidos. A Celina Locks, de Curitiba, acabou de fotografar para a capa da revista L’Officiel.
Qual modelo você descobriu mais recentemente?
A Thais Martins é uma menina que descobri com 15 anos, agora ela está com 17. Fiquei um ano preparando-a para a viagem. Ela foi sozinha para Paris e lá fez uma campanha de maquiagem da Givenchy, seu primeiro trabalho. Lembro-me de que ela já estava para voltar para o Brasil, a agência de Paris me avisou que ela estava chorando muito, saía para fazer casting com os olhos inchados, quando a Givenchy confirmou a campanha. Agora é outra pessoa.
O momento da descoberta ainda tem que ser na adolescência?
Não precisa mais, o mercado mudou muito. Só em Paris que ainda existe a exigência de idade. Para fazer a semana de moda eles preferem pegar uma modelo com 16 anos e investir, mas isso não quer dizer que uma com mais de 20 não vai conseguir trabalho. Por exemplo, a Danielle Pontes, na época com 27. Eu a apresentei para uma agência de Nova York, uma das maiores do mundo, e todo mundo sabia a idade dela, não era segredo pra ninguém, e ela fez Victoria Beckham, Jean Paul Gaultier, Armani. Idade não pesa, na verdade, é mais uma questão visual. Quando o modelo entra ali para o cliente decidir se vai confirmá-lo ou não no desfile ou na campanha, o que importa é o que ele vê, não é peso nem idade.
O que você diria para quem só enxerga glamour em vida de modelo?
Óbvio que ser modelo te dá muitas oportunidades, jantares incríveis, festas com celebridades, ganhar roupas e viagens, trabalhar em lugares diferentes, mas no dia a dia não existe glamour, é um trabalho como qualquer outro. Dormir no avião, nem ter tempo de descansar e ir direto para o trabalho, ainda tem a saudade da família. Hoje você está na Espanha, amanhã na Alemanha, depois na França e não sabe quando vai voltar pra casa.
Como o mercado internacional enxerga os modelos brasileiros?
Com total admiração. Nós brasileiros somos vistos como um povo alegre, divertido, com senso de humor e disponibilidade para trabalhar. Eles dizem que os modelos levam isso para o trabalho, estão lá trocando de roupa e dançando, a impressão é de querem fazer o dia mais feliz. Dava o exemplo da Gisele Bündchen. Percebia em todas as entrevistas dela o ânimo e a vontade de trabalhar.
Ainda existe um padrão de beleza na moda?
O mercado mudou um pouco. Antes era exigido que modelo tivesse uma beleza clássica, de campanha de cosmético, mas hoje as marcas aceitam perfis diferentes. Para fazer semana de moda, principalmente Londres, Paris e Nova York, você precisa se encaixar nas medidas, porém eles também estão de olho em modelos que não tenham as medidas exatas. Percebo que as marcas buscam uma característica que seja forte, pode ser um olhar marcante, o nariz, a boca, dentes separados, o cabelo pode chamar a atenção. Às vezes, o rosto pode nao ser incrível, mas a modelo anda incrivelmente. A Daiane Conterato é um exemplo, tem uma das passarelas mais incríveis, parece que a roupa está grudada no corpo dela. Percebo que a personalidade também é importante para o mercado. Antes as agências pediam para modelo ir de calça, blusa e sapato e bolsa pretos, cabelo partido ao meio, era uma fila de modelos de roupa preta. Hoje em dia cliente nao quer ver isso, quer ver se modelo tem estilo e atitude. O conselho hoje em dia é ir vestido do seu jeito. Por isso, é preciso conversar com o modelo para que ele descubra sua atitude, o que gosta de fazer, como vai agir na frente do cliente, se é mais tímida ou mais falante. Hoje você não precisa ter necessariamente uma beleza clássica, precisa ter algo a mais. Às vezes, um rostinho bonito pode ser negado. Fora a questão de que o mercado está absorvendo todos os perfis. A Muriel Segovia é uma modelo plus size. Tive que ter uma conversa com ela para engordar um pouco mais, os clientes estavam achando que ela estava no meio-termo. Muriel é bem conhecida, já fez campanha da Adidas, comerciais de TV, SPFW, e virou uma inspiração para as gordinhas que querem ser modelo.
Quais são as habilidades mais importantes para um agente internacional?
Jogo de cintura e muito paciência, porque você lida com pessoas e existe muito ego neste mercado, do modelo, das agências, dos clientes. Você está no meio disso tudo e tem que intermediar as conversas. Precisa também ter muita agilidade para resolver os problemas. Por exemplo, se receber um e-mail, é agora que precisa resolver, não tem como deixar para mais tarde. Além disso, amar o que faz. Já tentei me ver em outros trabalhos, mas amo muito o que faço, entrego com vontade e carinho.
Onde existem hoje mais oportunidades para modelos?
Nova York é o centro da moda considerando as oportunidades. Lá tem clientes muito importantes e muito trabalho, mas para mim o centro da moda é Paris. Paris tem um peso diferente, um trabalho lá fica marcado para sempre na carreira do modelo. Mas todos os países que consomem muito são mercados bons. Além de Londres e Milão, tem México, Japão, Austrália, Grégia, Cingapura e Argentina. China é um mercado bom, mas não gosto de mandar modelos, porque são trabalhos em massa, que não vão agregar na carreira. Dubai é um mercado que está crescendo, mas precisa se profissionalizar mais. Eu, como agente internacional, tenho que estar muito atento. Às vezes, pode dar um boom em determinado país e pode ser que precisem de modelo.
Como você imagina que o coronavírus vai impactar o mercado da moda?
Tenho receio sobre as semanas de moda, acho que os números de desfile vão diminuir, mas em relação às campanhas, não. Acredito que as marcas vão continuar fotografando porque precisam vender.
Quais são os seus próximos passos?
Estou de mudança para Los Angeles, que é um mercado em expansão. Tenho projetos de mandar modelos para trabalhar lá e quero estar presente para fazer acontecer, dar todo o suporte que precisam, fazer contatos e reuniões. Lá não tem semana de moda, são mais comerciais de TV, campanhas de moda e catálogos. É um mercado que está sendo descoberto, tem muita marca nova chegando lá e muita marca conceituada que fotografa lá. A Mira, por exemplo, fotografou uma campanha do Tom Ford em Los Angeles. Quero estar presente e ver o mercado crescer.