Um tratamento com anticorpos projetado para proteger contra o coronavírus poderá estar disponível ainda neste ano – mas apenas para uma fração dos milhões de norte-americanos poderiam se beneficiar da iniciativa.
As empresas já estão testando terapias de anticorpos monoclonais – criados em laboratório para atacar a Covid-19 – em humanos. Os testes estão determinando se os anticorpos podem evitar a infecção e coibir os piores sintomas do coronavírus quando um paciente é infectado.
Não há garantia de que funcionarão.
Se forem comprovadamente eficazes, poderão estar disponíveis para os norte-americanos meses antes de uma vacina estar pronta.
No entanto, de acordo com fabricantes de medicamentos, a distribuição inicial provavelmente ficará a cargo do governo federal, cujo histórico de má gestão na aplicação de testes em larga escala, na distribuição de equipamento de proteção pessoal e na administração de outros medicamentos, como o remdesivir, para combater o coronavírus, já dispara alarmes.
“Esse será um teste real para a distribuição de vacinas”, disse o deputado Bill Foster, um democrata de Illinois que pediu ao Government Accountability Office, órgão responsável por essa gestão, uma supervisão acurada e atualizações regulares sobre o desenvolvimento do tratamento. “A corrida por anticorpos monoclonais pode acontecer daqui a dois meses ou até antes.”
Não está claro quem vai definir quais pessoas receberão as doses iniciais de anticorpos. E o histórico do governo Donald Trump está repleto de alegações de distribuição injusta e favoritismo político.
Membro do subcomitê de coronavírus da Câmara, o deputado Foster imagina um cenário de pesadelo potencial em que “pessoas pobres estarão morrendo em hospitais superlotados porque não conseguem as doses adequadas do tratamento com anticorpos curativos, enquanto os ricos recebem doses preventivas ao reservarem uma semana de estada na suíte presidencial de Mar-a-Lago”, afirmou.
“Há realmente muito pouca confiança pública em Jared Kushner [genro e conselheiro de Trump], em Donald Trump e na Casa Branca para fazer uma alocação justa de tratamentos médicos de emergência.”
Os fabricantes de medicamentos insistem que estão comprometidos em garantir que seus produtos cheguem aos pacientes que mais precisam. As autoridades governamentais, entretanto, dizem que ainda estão elaborando seus planos de fabricação e distribuição.
Profissional de saúde colhe amostra para teste de detecção da Covid-19 em Berlim, na Alemanha
Foto: Fabrizio Bensch/Reuters (5.ago.2020)
Demanda enorme
Os representantes da indústria farmacêutica e os legisladores vislumbram uma imensa demanda por tratamentos com anticorpos, que podem impedir a disseminação do coronavírus entre funcionários e pacientes de casas de repouso, onde as taxas de mortalidade são devastadoras.
Também podem limitar os piores efeitos do vírus, antes que os pacientes sejam colocados nos respiradores, e ser usados preventivamente por trabalhadores da linha de frente ou até mesmo pelos familiares de funcionários expostos a alguém com coronavírus.
Mas, mesmo na melhor das hipóteses – caso o tratamento com anticorpos se mostre eficaz – provavelmente haverá apenas algumas centenas de milhares de doses inicialmente disponíveis.
Espera-se que o suprimento inicial fique muito aquém das dezenas de milhões de norte-americanos que poderiam se beneficiar com o tratamento.
Um estudo de pesquisadores da Universidade Duke determinou que os EUA precisariam de mais de 60 milhões de doses de terapias de anticorpos durante o próximo ano para tratar todos os norte-americanos hospitalizados com coronavírus ou combatendo a infecção em casa.
“Não teremos capacidade para fazer o suficiente. Portanto, em última análise, uma vacina tem que ser a solução mais ampla para todo o público”, analisou o doutor Len Schleifer, presidente da Regeneron, uma das empresas que no momento fazem testes em humanos de anticorpos monoclonais e uma das poucas com contrato com o governo dos EUA para esse tipo de terapia.
“Teremos de direcionar esses anticorpos para onde pudermos fazer o melhor, assumindo que funcionam.”
Diferentes tipos de coronavírus, que causam resfriados brandos, podem ter participação na imunidade contra a Covid-19
Foto: Pixabay
Sob a Operação Warp Speed, a parceria público-privada que trabalha para produzir vacinas, medicamentos e testes para combater o coronavírus, o governo federal já formalizou a compra antecipada de futuras vacinas e suprimentos.
Também encarregou painéis de cientistas e especialistas médicos de decidir quais norte-americanos devem ser vacinados primeiro.
Mas o governo federal não está comprando drogas potenciais da mesma forma como está pré-encomendando vacinas, em parte porque é mais difícil estocar medicamentos quando há tantos ainda em teste.
“A compra antecipada de remédios será mais lenta”, comentou a doutora Janet Woodcock, funcionária da FDA, a agência responsável por drogas e alimentos no país, que lidera o desenvolvimento de terapias para a Operação Warp Speed. “Temos que selecionar os mais promissores. Não podemos simplesmente fazer compras antecipadas de 600 agentes diferentes”.
Os especialistas em saúde dos Estados Unidos estão particularmente otimistas quanto às chances de eficácia dos tratamentos com anticorpos monoclonais, em parte porque a indústria da saúde já usa essas terapias para tratar doenças como HIV, asma, ebola e alguns tipos de câncer.
“Se eu tivesse que escolher um tratamento, acho que os coquetéis de anticorpos monoclonais têm muito a seu favor, porque sabemos que funcionam para o ebola”, opinou o diretor do Instituto Nacional de Saúde, doutor Francis Collins, em audiência no Capitólio no mês passado.
“Existem todos os tipos de razões para pensar que este é o tipo de vírus para o qual deveria funcionar também”.
Os cientistas estudaram os primeiros pacientes com coronavírus para determinar que tipo de anticorpos eles produziram para combater o vírus. Em seguida, fizeram uma imitação desses anticorpos em um ambiente de laboratório para criar tratamentos monoclonais.
A terapia não é tão duradoura quanto as vacinas e, potencialmente, desaparece depois de um ou dois meses. Mas os anticorpos entram em vigor rapidamente e são úteis para proteger temporariamente populações vulneráveis ou ajudar pacientes doentes a evitar o pior do vírus.
Como distribuir isso?
Empresas como Regeneron e Eli Lilly já começaram a aumentar a produção na esperança de que seus tratamentos com anticorpos sejam eficazes.
Elas também estão conversando com outros na indústria sobre a combinação de recursos de fabricação, caso um ou mais tratamentos se mostrem eficazes e sejam autorizados pelo governo.
Mas não é pouca coisa aumentar a produção – e o governo federal não investiu em capacidade de fabricação de medicamentos como o fez com as vacinas.
“Obviamente, estamos tentando obter o maior número possível de doses para o maior número possível de pessoas”, disse a doutora Woodcock, da FDA, em uma entrevista coletiva em julho, observando que em todo o mundo há capacidade limitada para fabricar tratamentos com anticorpos monoclonais.
“Temos especialistas em fabricação na Operação Warp Speed que estão de fato observando todo o campo e vendo o que podemos fazer.”
Um desafio adicional ao abastecimento é estabelecer a dose que funcionará melhor para combater o vírus e a que será eficaz na prevenção da infecção. Os pacientes já infectados provavelmente precisarão de uma dosagem mais alta do que as pessoas que tentam prevenir a infecção.
A Regeneron acredita que pode fabricar dezenas de milhares de doses de tratamento por mês ou centenas de milhares de doses preventivas. A Eli Lilly espera produzir cerca de 100 mil doses este ano.
Para onde vão essas doses é uma questão que provavelmente caberá ao governo federal.
“O grande desafio nesse ponto será garantir que a droga seja distribuída com cuidado e usada de maneira que possamos fazer o melhor uso possível da sua oferta limitada”, afirmou Adam Kroetsch, coautor do estudo Duke, que estima a necessidade de dezenas de milhões de doses.
Marta Wosinska, outra coautora do estudo na Duke, observou que hospitais seriam tentados a abocanhar mais remédios do que precisam, apenas para garantir que não acabem.
“Sera que é preciso ter alguém para dizer o que é realmente necessário e como distribuir?”, Wosinska perguntou. “Todo mundo tem um incentivo para apenas estocar”.
A Operação Warp Speed “está focada no desenvolvimento, fabricação e distribuição de vacinas e terapêuticas seguras e eficazes aprovadas pela FDA, não em política”, explicou Woodcock em uma resposta por escrito a perguntas da CNN.
“A alocação de qualquer medicamento de combate à COVID-19 que esteja em falta será uma decisão política feita por especialistas no assunto que recebem contribuições de colaboradores externos, inclusive sobre ética médica”.
Frasco com potencial vacina contra Covid-19 testada pela Imperial College de Londres, no Reino Unido
Foto: Thomas Angus/Imperial College London (10.jun.2020)
A especialista disse que a FDA aprendeu lições com sua distribuição de remdesivir no início deste ano, o que deixou alguns hospitais sem doses e outros com muitas.
“Todos os esforços serão feitos para garantir a máxima transparência”, disse Woodcock, acrescentando que os Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDCS) e o Departamento de Defesa estão trabalhando em planos para distribuir vacinas e tratamentos.
Embora os fabricantes de remédios não tenham certeza de como o governo poderia distribuir seus produtos, os executivos insistem que estão comprometidos em garantir que a distribuição seja justa e direcionada às populações mais vulneráveis.
“Não acho que teremos um mercado de leilões onde as pessoas que podem pagar mais terão acesso”, opinou Schleifer, da Regeneron.
Skovronsky, da Eli Lilly, disse: “Estamos comprometidos com a distribuição equitativa de medicamentos. E isso não deve envolver a capacidade de pagamento do paciente nem seu status na sociedade ou suas conexões políticas. Deve ser determinado apenas pela necessidade médica”.
Skovronsky disse esperar que o governo tenha aprendido algumas lições com seus erros de distribuição anteriores.
“Nós assistimos, eu acho, a distribuição de outras coisas durante esta pandemia, como testes, EPI, máscaras, respiradores. Tudo isso gerou polêmica “, disse ele.
Mas, mesmo deixando de lado o medo de que os tratamentos cheguem às pessoas que pagam mais ou tenham conexões políticas, ainda haverá compensações iniciais ao decidir quais dos norte-americanos mais vulneráveis merecem as primeiras doses.
“Como dividimos a distribuição entre as pessoas em lares de idosos que correm um risco tremendo e os atendentes de serviços de emergência que correm um risco pessoal imenso e são potenciais propagadores desta doença?”, questionou o deputado Foster.
“Ambos os grupos têm um apelo moral extremamente forte nas primeiras doses de tratamentos ou vacinas.”
Esperança para casas de repouso
Administrar tratamentos com anticorpos também é um desafio. Os fabricantes de medicamentos procuram injetar os medicamentos por via intravenosa ou, no caso de doses preventivas, possivelmente por seringas, semelhante a uma injeção de insulina.
Isso é fácil de fazer em um ambiente hospitalar. Mas os lares de idosos, que foram devastados por altas taxas de infecção e mortalidade durante a pandemia, estão mal equipados. Não têm farmácias, nem muitos medicamentos intravenosos, nem funcionários suficientes para medicar todos os pacientes.
Paciente com Covid-19 em tratamento
Foto: Callaghan O’Hare/Reuters (29.jun.2020)
Para fazer um ensaio clínico nas instalações da Symphony Care Network em todo o Meio-Oeste dos EUA, a Eli Lilly precisou de reforços.
A empresa montou motorhomes que estão sendo equipados como farmácias móveis e enviou caminhões cheios de equipamentos para aplicações intravenosas. Além disso, forneceu equipe para iniciar os tratamentos, administrar as infusões e acompanhar os pacientes.
“Todos esses elementos logísticos precisarão ser resolvidos”, comentou o doutor Alexander Stemer, especialista em doenças infecciosas e um dos responsáveis pela força-tarefa Covid-19 da Symphony, uma rede de lares de idosos de Chicago.
Esta semana, a Symphony identificou seu primeiro surto e começou a informar os pacientes e funcionários sobre os detalhes do ensaio clínico. Várias pessoas já se inscreveram.
“Se a Covid-19 é um livro de mil páginas, estamos na página cinco. Todos esses elementos logísticos precisarão ser resolvidos”, comentou o médico Alexander Stemer, especialista em doenças infecciosas da força-tarefa Covid-19 da Symphony.
“O aspecto positivo desse estudo é que ele dá aos pacientes e à equipe a esperança de que possam estar recebendo um tratamento que pode ajudar”.
Houve um consenso, entre especialistas, farmacêuticos e legisladores, de que um tratamento eficaz com anticorpos poderia ser uma dádiva divina para as casas de repouso.
“A sensação de destruição, medo e morte que está acontecendo nesses lugares é de partir o coração. Então, se pudermos mudar isso, ótimo”, disse Skovronksy, da Eli Lilly. “E depois então seguiremos para outros grupos de pessoas que também são vulneráveis e trabalharemos para diminuir os efeitos da Cocid-19”.