Pessoas confinadas 24 horas por dia, separadas apenas por paredes finas. Esse tem sido o cenário perfeito para os barracos entre os vizinhos. É aquela obra que não acaba nunca, a criança que corre o dia inteiro e liga o brinquedo que troca de música toda hora, a dona de casa que arrasta os móveis ou aquele vizinho que resolveu fazer do apartamento a própria academia. Isso sem contar as brigas em família, que agora o condomínio inteiro escuta. Os exemplos são vários e se refletem em números.
De acordo com o advogado, sócio de uma empresa de síndicos profissionais, muitas dessas brigas tem se tornado ações judiciais. Segundo Gomes, entre os principais motivos dos conflitos na quarentena estão realização de obras não essenciais, barulho excessivo, insistência em usar áreas comum sem máscaras e denúncias de “furões” de quarentena.
“A vida em condomínio sempre foi um fator gerador de conflitos. Contudo, com a necessidade do isolamento, os atritos entre vizinhos aumentaram vertiginosamente. Algumas reclamações já são bastante conhecidas e permanecem, como barulho, animais e obras, mas outras são fruto da pandemia, como sapatos deixados no corredor e as lives, que têm se tornado um transtorno para muitos moradores. Muitos desses atritos têm ocorrido em virtude da ausência de regras de convivência claras e objetivas nesse período”, avalia o advogado.
Corroborando com a tese, um levantamento realizado pelo site SindicoNet também revelou que desde março 59,33% dos síndicos do país relataram aumento das reclamações entre os vizinhos. No último fim de semana, uma briga entre vizinhos sobre o uso do elevador terminou em troca de socos e dentes quebrados em Brasília. Segundo o boletim de ocorrência, um homem estava descendo pelo elevador quando um vizinho tentou entrar. O bate boca entre os dois durou alguns minutos até que o homem que estava do lado de fora entrou dentro do elevador e deu um empurrão no outro morador. A partir daí, foi troca de chute, socos e só terminou quando um dos homens cuspiu o dente quebrado durante a confusão. Em São Paulo, um homem foi detido após jogar gás de pimenta por baixo da porta do vizinho por conta do barulho.
“As pessoas começaram a passar mais tempo em casa. Antes, as pessoas saíam cedo e só voltavam à noite, agora a casa não é só o ambiente de descanso, mas também de trabalho e estudo. Perturbação de sossego sabemos que é contravenção penal e está previsto em lei, mas, agora, a gritaria, o cachorro latindo e o salto no andar de cima não atrapalha só o sossego, mas interfere na reunião e na aula do filho. Todos estão muito mais atentos, a tolerância está menor”, explica o advogado especialista em direito condominial e membro da Comissão de Direito Imobiliário e Condominial da Ordem dos Advogados do Brasil no Distrito Federal (OAB-DF), Márcio Zuba.
Exemplos.
Nas redes sociais, as reclamações entre os vizinhos são muitas. No Twitter, há até morador que relate ter flagrado o vizinho seminu no corredor para não entrar com a roupa suja em casa, por medo de contaminar os parentes.
Exemplos não faltam para as desavenças entre os vizinhos. A pedagoga Ive Ferreira, 31, já não sabe o que fazer com a obra do vizinho, que não tem dia nem hora para acabar. “Desde novembro eles estão em obra. Já pedi para darem uma maneirada, porque estou com um bebê de 10 meses, mas não adiantou. Eu cheguei à conclusão de que o jeito é me mudar, mas por conta da pandemia fui demitida e agora vou ter que esperar. A casa fica fechada o dia inteiro por conta do barulho. Meu filho é um bebê muito tranquilo, mas não tem como, acorda chorando e nervoso com a barulhada”, conta a pedagoga, que mora no Barreiro.
De acordo com o presidente do Sindicato dos Condomínios Comerciais e Residenciais de Minas Geras (Sindicon-MG), Carlos Eduardo Alves de Queiroz, as reclamações entre os vizinhos são várias, mas é preciso calma. A melhor solução, segundo ele, é o bom senso e o diálogo, até porque, apesar de não ser o mais sensato a se fazer no momento, a reforma no apartamento não é ilegal, desde que se respeitem os dias e os horários determinados pela convenção de condomínio e a Lei do Silêncio – que, vale lembrar, é válida para casos de construção civil entre as 10h e as 17h, com limite de 80 decibéis.
“O que sugerimos quando se tem uma reclamação é que se converse com o síndico primeiro para evitar mal-estar com outro condômino. Faça essa reclamação por escrito, grave o barulho, tenha provas. O síndico pode realizar uma advertência, multar a depender do caso e do regulamento interno”, explica o especialista, que lembra que a Lei do Silêncio apesar de permitir ruídos até às 22h, a empatia deve prevalecer. “O que sugerimos é que o condomínio crie regras durante esse período excepcional que estamos vivendo com dias e horários determinados para obras, por exemplo. Crie normas também para utilizar os espaços comuns. São determinações temporárias para o bem comum de todos””, ressalta Queiroz.
No caso do chefe de cozinha, José Carlos Rodrigues, 37, não adiantou o diálogo e o bom senso “Ele (o vizinho) já até foi notificado. É uma casa que parece que os moradores não têm hábitos mínimos de higiene para viver em sociedade. A rua inteira sente o cheiro de murrinha e das fezes dos cachorros que eles não limpam”, explica o cozinheiro. “Sei que é complicado essa questão de reclamação com vizinhos, porque eu mesmo já precisei me mudar uma vez porque um vizinho me infernizava e reclamava de um barulho que eu não fazia. Para não evitar confrontos com essa pessoa que já estava me denegrindo na internet, deixei uma casa montada e me mudei”, admite.
Denúncia. Aqueles que não respeitarem as regras da boa convivência estão sujeitos a punições administrativas definidas por cada condomínio. Mas, nos casos que o diálogo não funcione, as denúncias também podem ser feitas pelo telefone 156 ou pelo 190.
Relembre
Um dos casos mais famosos envolvendo brigas de vizinhos foi o da subsíndica Maria Rita de Cássia de Oliveira Soares, 39, que gostava de ouvir músicas com volume alto e levou 43 facadas de um vizinho, o escriturário Marcos Marques, 34. O crime ocorreu em março de 1999, no bairro Luxemburgo, na região Centro-Sul de BH. Em 2002, Marques foi absolvido. Para o júri, ele defendeu a tranquilidade do lar, e o crime foi classificado como culposo, quando não há a intenção de matar. Mas o Ministério Público recorreu, e, em julho de 2008, Marques pegou 12 anos de prisão.
É tempo de empatia: quarentena aproxima vizinhos e cria rede de apoio
Em tempos difíceis imposto por conta do isolamento social nem só de caos tem vivido os vizinhos. Trabalhando em casa desde março, a jornalista Fernanda Lacotix, 27, finalmente conheceu a vizinha depois de dez anos morando no mesmo prédio. Em março, Fernanda ofereceu ajuda à alguns moradores mais velhos para ir ao mercado. Foi aí que ela conheceu a dona de casa Alzira Araújo, 84. Hoje, a aposentada até se arrisca a ir fazer as compras sozinhas, mas ela não abre mão do bate papo mesmo um pouco de longe, cada uma em sua porta. As duas são amigas até no whatsapp e trocam mensagens de bom dia.
“É uma questão de carinho, vejo que ela fica doida para conversar, porque fica sozinha o dia todo, os filhos só voltam à noite. Eu sou do interior, para mim é normal, sinto falta também de conversar com a minha vó, ver novela e fazer crochê com ela”, admite Fernanda
Para o sociólogo e professor da PUC Minas, Euclides Guimarães Neto, não conhecer o próprio vizinho é resultado de uma sociedade que ensina que o sentido da vida está no sucesso individual. Em 2017, um caso chocou o mundo por ser um exemplo extremo do fenômeno que assola a sociedade contemporânea: o distanciamento que o próprio ser humano se impõe ante aquele que, muitas vezes, mora ali, do lado, por conta da correria cotidiana ou até mesmo da aversão ao contato. Na época, a polícia espanhola encontrou um cadáver mumificado de uma mulher na cozinha de seu apartamento. A perícia inicial comprovou que o corpo da moradora do imóvel estava lá, pelo cálculo de vizinhos e pela correspondência acumulada na caixa de correio, há quatro ou cinco anos.
“Desde a criação da TV, as vizinhanças tem mudado, a proximidade física perde a importância, sendo substituída por outras formas de proximidade. Os amigos se tornam ‘desligáveis’. Minas Gerais tinha muito essa noção do vizinho amigo e família, varandas e bancos em praças, só que isso foi mudando, o formato de prédios mudou esse layout também. Hoje em dia, vizinho bom é não é aquele que é meu amigo, mas aquele me incomoda menos”, analisa.
Manual da boa vizinhança
Evite o som alto – O importante é agir com moderação e, principalmente, respeitando a Lei do Silêncio, depois das 22h. Os especialistas alertam que qualquer ruído que ultrapasse o indicador da ABNT (45 decibéis) vai atrapalhar o sossego dos vizinhos. Use também o bom senso no horário de ligar o aspirador, o liquidificador, a máquina de lavar e o secador de cabelo. O mesmo vale para as conversas na janela e na varanda. Latidos também incomodam, a gente sabe. Mas, além do mal-estar, ficar com o seu pet preso o deixa estressado. Saia e caminhe com ele. Ah, é óbvio, mas é bom lembrar, não é tempo para festas.
Evite pequenas obras ou reformas – Só faça em casos indispensáveis e, claro, sempre respeitando as normas de dias e horários permitidos pelo condomínio. Se não tiver como deixar para depois, avise o síndico antes. Diante da necessidade do isolamento social, não é hora para barulhos de furadeira e martelo.
Atividade física com moderação e sem barulho – Os especialistas recomendam fazer exercícios físicos regularmente, então, não deixe de fazer mesmo em casa, mas cuidado para não correr e pular demais. Use tapetes que possam abafar o som. Combine entre os familiares o melhor horário para a atividade física ou para usar aquele brinquedo que muda de música sem parar.
Cuidado durante o uso das áreas comuns – O uso do playground e da piscina deve ser evitado. Respeite o agendamento e o horário permitido por cada condômino para usar os espaços sem gerar aglomeração e sem atrapalhar os vizinhos que podem estar de home office. E lembre-se: use máscara nas dependências comuns do prédio: elevador, corredores, garagem.
Sapatos no corredor? Não! Busque o seu delivery – Cada família tem tomado seus cuidados de proteção e higiene para a proteção contra o novo coronavírus, mas não vá deixar seus sapatos e roupas no corredor. Respeite os limites do seu apartamento. Se o seu prédio não tem porteiro, além da questão da segurança, busque o seu lanche na portaria. Isso ajuda a evitar maior circulação de pessoas dentro do condomínio, protegendo todos.