Os Estados Unidos enfrentam agora 13 dias de perigo antes da partida de um comandante-chefe desequilibrado, capaz de enviar invasores para o Capitólio dos EUA em um ato de insurreição que destruiu uma tradição de mais de 220 anos de transições pacíficas de poder.
O comportamento golpista do presidente Donald Trump provocou uma crise total dentro de seu bunker da Casa Branca em seus últimos dias, após um rompimento com seu ultraleal vice-presidente Mike Pence, que se recusou a se juntar ao esforço fútil, mas destrutivo, para reverter o resultado da eleição.
Depois de orquestrar um dos dias mais notórios da história política dos Estados Unidos e arrasar a democracia ao se recusar por semanas a aceitar sua derrota, Trump repentinamente emitiu um comunicado de madrugada, prometendo uma transição ordenada de poder para o presidente eleito Joe Biden em 20 de janeiro.
Mas, como de costume, a mudança pareceu motivada por interesse próprio, em vez de um senso de dever, pois soou como uma tentativa de conter uma onda de demissões da Ala Oeste da Casa Branca, ao mesmo tempo em que se travavam conversas sobre um impeachment ou esforço do Gabinete para invocar a 25ª Emenda para forçá-lo a deixar o cargo.
Em cenas inacreditáveis na quarta-feira, bandidos saqueadores marcharam direto de um comício incendiário de Trump para invadir o Capitólio. O objetivo deles era impedir os legisladores de finalizar a vitória do presidente eleito Joe Biden antes da posse em 20 de janeiro. Mas a confusão, com arruaceiros quebrando janelas e sitiando legisladores, chegando até os plenários da Câmara e do Senado, teve o efeito oposto, apressando o momento de repúdio para o presidente e suas alegações infundadas de uma eleição roubada.
Uma série de republicanos do Senado que pretendia prolongar a façanha do presidente mostrou repulsa pela tomada do Capitólio, a casa da democracia, em uma culminação feia de uma presidência sem lei. Mas, apesar da indignação perpetrada pelos apoiadores de Trump, mais de 100 de seus aliados na Câmara – uma maioria de republicanos – ainda votaram para sustentar alegações totalmente falsas de fraude eleitoral.
Pouco antes das 4h da manhã da quinta-feira (7), horário do leste dos EUA, Pence leu a contagem final dos votos eleitorais – 306 a 232 a favor do presidente eleito – e então a Constituição e a vontade do povo triunfaram sobre a atordoante tentativa de golpe de Trump.
Leia também:
Trump perde espaço no partido após invasão do Capitólio, diz ex-embaixador
Araújo condena invasão de manifestantes ao Congresso dos EUA e pede investigação
Capitólio dos Estados Unidos já foi alvo de três ataques; conheça os detalhes
Pouco depois, o presidente emitiu uma declaração por escrito prometendo uma transição ordenada em 20 de janeiro, embora tenha dito que discordava do resultado da eleição, mais uma vez repetindo falsas afirmações sobre como os fatos estavam do seu lado.
“Embora isso represente o fim do maior primeiro mandato da história presidencial, é apenas o começo de nossa luta para Tornar a América Grande Novamente!”, Trump escreveu.
A violação do Capitólio pela primeira vez desde 1814 ofuscou resultados extremamente significativos de duas eleições de segundo turno na Geórgia que entregou aos democratas o controle do Senado. As vitórias do reverendo Raphael Warnock e de Jon Ossoff transformarão as perspectivas para a presidência de Biden. Mesmo assim, o governo vai começar com uma nação dividida em duas pelo comportamento sedicioso de Trump e consumida por uma pandemia assassina e crescente que produziu um novo recorde diário de mais de 3.800 mortes.
Mas, antes disso, há uma preocupação crescente com a estabilidade de um presidente que teve suas contas no Twitter e no Facebook suspensas por causa da incitação da violência, mas mantém o poder total da presidência e os códigos nucleares.
Dentro de seu bunker na Casa Branca na noite de quarta-feira, Trump teve reações explosivas sobre sua derrota e aquilo que ele vê como traição de Pence.
Algumas autoridades estavam considerando sua renúncia, incluindo o conselheiro de segurança nacional Robert O’Brien. Seu vice no conselho, Matt Pottinger, pediu demissão na tarde de quarta-feira, segundo fontes contaram à CNN. Uma fonte do Partido Republicano disse que alguns membros do Gabinete mantiveram discussões preliminares sobre invocar a 25ª Emenda para forçar a remoção de Trump do cargo, alegando que ele não está apto para servir. Houve exigências de alguns democratas da Câmara para desencadear um processo de impeachment imediato.
Após a resolução do tumulto, segue a perspectiva alarmante de um presidente incontrolável agindo com liberdade, acompanhado de uma cadeia de comando fragmentada na Casa Branca. Há graves implicações para a segurança nacional e a possibilidade de criar um vácuo que conduza a mais distúrbios.
Não está claro se os esforços para retirar o presidente consigam de fato fazê-lo. Mas eles refletem extrema preocupação até mesmo de autoridades e republicanos que apaziguaram seus impulsos selvagens e abusos de poder por quatro anos turbulentos.
Afinal, um presidente que já sofreu impeachment uma vez, que foi gravado tentando roubar a eleição na Geórgia no fim de semana passado e que nunca reconheceu os limites de seu cargo está agindo de uma forma que sugere que ele pensa que não tem nada para perder.
“Ele está fora de si”, disse uma fonte que mantém contato frequente com Trump para Jim Acosta, da CNN.
O historiador presidencial Douglas Brinkley expressou preocupação com os danos que um presidente sem amarras e furioso poderia causar nas próximas duas semanas.
“Qualquer pessoa em qualquer agência federal tem que ficar de olho em Donald Trump porque ele está agindo e pensando de maneira irracional”, aconselhou Brinkley.
Um momento surreal
A verdade mais terrível revelada pelo ataque ao Capitólio não foi o ato em si. Foi a loucura de um presidente que voltou seus insurgentes contra o legislativo do país e que aprofundou ainda mais as divergências políticas que se agravarão muito depois de ele deixar o cargo.
O espetáculo de desordeiros, agitando bandeiras com o nome de Trump e usando bonés “Make America Great Again” (Tornar a América Grande Novamente) subindo os degraus abaixo da cúpula que brilha como um farol de autogoverno era surreal demais para se acreditar. Mas, embora chocantes, as cenas sem precedentes de uma horda norte-americana violenta andando pelos corredores do Congresso, de armas de policiais sendo sacadas no plenário e de desordeiros quebrando janelas não podem ser consideradas uma surpresa.
Foram, na verdade, o clímax lógico de uma presidência impregnada de demagogia, teorias da conspiração, incitação à violência e o desprezo de um homem forte pela Constituição. Eles foram o resultado inevitável de anos de desinformação e instigação de Trump, seus assessores e seus propagandistas mentirosos na mídia que deixaram milhões de norte-americanos acreditando em suas falsas alegações de uma eleição fraudulenta.
A vergonha de um dia sombrio na história dos EUA é compartilhada por todos aqueles que zombaram das advertências de que a traição política de Trump estava fermentando uma explosão, incluindo legisladores republicanos, que foram cúmplices de suas alegações ridículas de fraude eleitoral depois de apoiar sua maligna presidência.
“Vamos descer… para o Capitólio”, disse Trump no comício perto da Casa Branca, preferindo a frase que acendeu a chama para um dia de confusão no momento em que o Congresso se reunia para finalizar a vitória eleitoral de Biden.
“Você nunca vai recuperar nosso país com fraqueza, você tem que mostrar força, você tem que ser forte”.
As cenas terríveis horrorizaram o mundo, incrédulo diante de imagens que lembravam as revoltas e rebeliões palacianas das instáveis “repúblicas das bananas”, em vez dos rituais majestosos da suposta última melhor esperança para a democracia na Terra.
“Isto não é a América”, disse Josep Borrell, uma alta autoridade da União Europeia, no Twitter.
Infelizmente, e pelo contrário, estes são os Estados Unidos forjados pelo presidente mais vingativo do país, cujos abomináveis quatro anos no poder alimentaram uma “carnificina americana” mais perigosa do que a crise econômica que ele condenou em seu discurso inaugural proferido há quase quatro anos – nas mesmas escadarias invadidas pelos seus capangas.
Destaques do CNN Brasil Business:
Magazine Luiza: Veja a lista dos produtos com até 80% de desconto no saldão
Elon Musk ultrapassa Jeff Bezos como a pessoa mais rica do mundo
Hard Seltzer: bebida que rouba mercado da cerveja nos EUA cresce no Brasil
Na verdade, o dia de infâmia começou com o FBI abrindo uma investigação sobre uma ameaça aparentemente falsa, transmitida nas frequências de controle de tráfego aéreo, dizendo que um avião seguia na direção do Capitólio para vingar a morte de um importante general iraniano pelos EUA no ano passado. O perigo do dia não veio de fora, mas de dentro, já que a turba de Trump deu início a um evento que só aconteceu uma vez na história, há mais de 200 anos, quando exércitos invadiram o Capitólio em 1814.
Houve um debate recente entre os jornalistas sobre como se referir à tentativa de Trump de roubar a eleição livre e justa que ele perdeu, sua recusa em honrar uma transição pacífica de poder e seu incitamento de apoiadores furiosos para interromper o processo constitucional.
“Isso é o mais próximo de uma tentativa de golpe que este país já viu”, disse o ex-chefe da polícia de Washington, Charles Ramsey, à CNN.
Timothy Naftali, historiador presidencial da CNN e professor da Universidade de Nova York, disse que Trump quebrou uma sequência dourada da democracia que sustentou a liberdade norte-americana.
“Hoje foi a primeira vez em nossa história que um presidente se opôs a uma transição pacífica de poder”, afirmou Naftali.
Um episódio “vergonhoso”
A questão agora é se a indignação de quarta-feira será uma erupção única, que uma vez reprimida, se tornará uma terrível memória de uma presidência que dividiu o país.
Os sentimentos amargos desencadeados por Trump, porém, não estão confinados às dezenas de milhares de apoiadores que se reuniram em Washington. O presidente e seus truques de mídia semearam uma perniciosa desconfiança da democracia em vastas áreas do país. A maioria dos eleitores de Trump não é violenta. Mas milhões deles acreditam em suas mentiras sobre a eleição ter sido roubada – e acham que seu país está sendo tirado deles. Isso levanta a possibilidade de que a agitação de quarta-feira (6) vá além dos estertores violentos de uma presidência fracassada, e seja uma força venenosa que não só frustrará as esperanças de Biden de curar as divisões corrosivas, mas se agravará assim que Trump deixar o cargo e lhe oferecer uma plataforma para o extremismo continuado.
O senador republicano de Utah Mitt Romney disse que a melhor maneira de mostrar respeito pelos eleitores que estão chateados com o resultado da eleição não é perpetuar as mentiras de Trump, mas dizer-lhes a verdade.
“Aqueles que escolherem continuar a apoiar sua jogada perigosa, objetando aos resultados de uma eleição legítima e democrática, serão vistos para sempre como cúmplices de um ataque sem precedentes contra nossa democracia”.
Vários senadores republicanos ficaram irritados com os eventos de quarta-feira, muitos deles os mesmos que aprovaram a impunidade pelos abusos de poder anteriores de Trump, votando para absolvê-lo em seu julgamento de impeachment, e forjaram um casamento de conveniência com Trump para perseguir objetivos comuns, entre eles confirmar juízes conservadores.
“Trump e eu tivemos uma jornada infernal. Eu odeio terminar assim. Ah, meu Deus, eu odeio isso”, disse o senador da Carolina do Sul Lindsey Graham. “Tudo o que posso dizer é contem comigo. Basta”, disse Graham.
Líder da maioria no Senado, Mitch McConnell condenou a violência e reforçou sua oposição aos esforços para barrar a vitória de Biden.
“Não seremos mantidos fora desta câmara por bandidos, turbas ou ameaças”, disse McConnell. “Certificaremos o vencedor da eleição presidencial de 2020”.
Pedidos de demissão de última hora e reconhecimentos da vitória de Biden, no entanto, dificilmente são perfis de coragem após a indulgência concedida pelos republicanos à conduta antidemocrática de Trump e semanas apaziguando sua negação da vitória de Biden.
Trump em silêncio no caos
Enquanto os membros do Congresso se protegiam sob seus assentos e seus apoiadores vagavam pelos escritórios dos líderes do legislativo, Trump não fez nada – a não ser assistir a desordem que ele havia provocado se desdobrar pela TV.
Uma fonte disse a Kaitlin Collins da CNN que Trump estava mais preocupado com o que ele vê como deserção política de Pence depois que o vice-presidente anunciou que não iria tentar interromper a certificação da vitória de Biden – um passo que, de qualquer forma, ele não tinha poder de tomar. Por fim, Trump divulgou um vídeo dizendo aos manifestantes para irem para casa, mas agravou a situação ao fazer mais acusações vergonhosas e falsas sobre uma eleição roubada.
O silêncio do presidente quando a violência real grassava contrastava com suas alegações pré-eleitorais incessantes e falsas de que hordas esquerdistas estavam correndo desenfreadamente pelas cidades dos Estados Unidos e seus apelos pela restauração da “Lei e Ordem”.
E as aparentemente escassas forças da Polícia do Capitólio dos EUA que foram oprimidas no Congresso contrastaram fortemente com as falanges fortemente armadas das forças de segurança de Trump despejadas nas ruas cheias durante os protestos Black Lives Matter no meio do ano passado. Naquela ocasião notória, o Departamento de Justiça enviou tropas federais à Lafayette Square com gás lacrimogêneo para afastar os manifestantes antes de uma absurda foto presidencial.
Sobra para Biden – que assumirá o cargo em um país que se quebrou pela divisão de Trump e por uma pandemia que agora está ceifando mais de 3.000 vidas por dia no país – oferecer a mão firme da liderança.
“Isso não é dissidência. É desordem. É o caos. É quase uma insubordinação”, disse Biden em um discurso em Delaware.