Zin Ko Ko Zaw, de 22 anos, morto por uma bala na cabeça. Ma “Angel” Kyal Sin, de 19 anos, vítima de um tiro mortal na cabeça. Nay Myo Aung, de 16 anos, morto por uma bala que perfurou seu pulmão. Essas são apenas três das mais de 54 pessoas que se acredita terem sido mortas pela junta militar de Mianmar desde o início dos protestos em todo o país contra o golpe de 1º de fevereiro.
Os ferimentos letais e as marcas de bala que perfuram os corpos dos jovens, como podem ser vistos em fotos e detalhados em conversas com familiares, fazem parte de um crescente conjunto de evidências que indicam que as forças de segurança da junta atiraram para matar.
Soldados carregam corpo de manifestante baleado durante protesto em MianmarFoto: Reuters
“Tudo indica que as tropas adotaram táticas de atirar para matar para reprimir os protestos e, com o silêncio da administração militar, há um consenso crescente de que isso foi autorizado pelo governo”, disse o vice-diretor regional de pesquisa da Anistia Internacional, Emerlynne Gil, na quinta-feira (4).
Quarta foi o dia mais sangrento em quatro semanas de protestos, quando as forças de segurança abriram fogo contra multidões em todo o país, matando pelo menos 38 pessoas. Imagens e vídeos, capturados por populares e jornalistas, mostraram corpos caídos nas ruas cercados por poças de sangue enquanto os manifestantes corriam para se proteger.
Outras filmagens mostram a polícia espancando manifestantes detidos e, em uma delas, as forças de segurança foram vistas atacando três trabalhadores de instituições médicas de caridade com armas e cassetetes.
A Anistia disse que “as cenas assustadoras que agora se desenrolam em Myanmar mostram provas crescentes de mais brutalidade” sob o comando do líder do golpe, General Min Aung Hlaing.
“Estamos vendo um aumento nas mortes ilegais, incluindo aparentes execuções extrajudiciais, sem nenhuma tentativa visível de conter o uso da força letal”, disse Gil em um comunicado. “No mínimo, as forças de segurança parecem mais audaciosas no uso de armas letais a cada dia que passa.”
Zin Ko Ko Zaw
Na cidade de Myinchan, perto de Mandalay, na quarta-feira, Zin Ko Ko Zaw estava protestando com sua família. O vídeo daquele dia mostra pessoas batendo em potes e frigideiras perto de uma linha de manifestantes e forças de segurança, antes de os tiros serem disparados e a multidão se espalhar.
No corpo a corpo, Zin Ko Ko Zaw levou um tiro na cabeça. Seu irmão o carregou para uma ambulância, mas era tarde demais. “Tive que arrastar o corpo e ele faleceu em minhas mãos”, disse o irmão Than Zaw Oo. O sangue escorria de sua boca e cabeça.
Zin Ko Ko Zaw faria 23 anos no próximo mês. Os pais dizem que ele era o principal mantenedor da família e trabalhava em um mercado local. Eles estavam todos juntos no protesto, mas foram separados quando o tiroteio começou.
“Estamos arriscando nossas vidas para reivindicar a vitória. Não temos armas, mas eles estão totalmente armados. Tudo o que podemos fazer é protestar. Eles estão atirando em nós com balas reais, por favor nos ajude”, disse Daw Htar, mãe de Zin Ko Ko Zaw.
A CNN entrou em contato com o regime militar governante por e-mail, mas ainda não recebeu uma resposta. A junta militar anteriormente alegou atuar com moderação em relação ao que chamou de “multidões anárquicas”. O site estatal Global New Light Of Myanmar disse que “ações severas serão inevitavelmente tomadas” contra “manifestantes rebeldes”.
Na sexta-feira (5), a Força Policial de Mianmar disse no Global New Light que “manifestantes armados com duas armas que se acredita serem granadas de fumaça” foram encontrados durante os protestos na quarta-feira. “Os manifestantes não estavam mais na fase pacífica do protesto, mas estavam armados com artefatos explosivos e recorreram à violência”, disse o relatório, sem fornecer mais provas.
Milhares de pessoas de todos os setores da sociedade de Mianmar se juntaram aos protestos e movimentos com o objetivo de desestabilizar o novo regime militar. Em grande parte, as manifestações não têm lideranças. No entanto, muitas são organizadas por jovens que atingiram a maioridade depois que os militares deixaram o governo em 2011, após meio século, permitindo eleições e reformas democráticas.
Esses jovens agora sentem como se tivessem o futuro tirado. Usando máscaras e capacetes de plástico frágeis, eles estão na linha de frente dos protestos, construindo barricadas, encarando as forças de segurança e sofrendo as consequências.
O grupo de ativistas Associação de Assistência para Prisioneiros Políticos identificou 48 pessoas que morreram devido à violenta repressão aos manifestantes. Desses, metade tinha menos de 25 anos, sendo 17 pessoas com menos de 20 anos. O mais jovem tinha apenas 14 anos, relatou o grupo.
Na quinta-feira (4), o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) disse que pelo menos cinco adolescentes – todos meninos com idades entre 14 e 17 anos –, bem como vários jovens e adultos, foram mortos e pelo menos outros quatro adolescentes ficaram gravemente feridas. O grupo condenou “nos termos mais veementes possíveis o uso da força contra os jovens, incluindo o uso de munição real e a detenção arbitrária de adolescentes”.
“As pernas de nossos filhos estão quebradas, cabeças foram feridas, eles levam tiros no peito. Não podemos mais suportar isso, eles estão intencionalmente visando os jovens com um futuro brilhante”, disse a mãe de Zin Ko Ko Zaw, Daw Htar.
John Quinley, Especialista Sênior em Direitos Humanos da Fortify Rights, explica por que muitos dos protestantes são jovens na casa dos 20 e 30 anos.
“Essa é a próxima geração de Mianmar, que deseja que o país seja liderado e governado democraticamente. E eles querem que seus líderes defendam os princípios dos direitos humanos”, disse Quinley. “E essas são as pessoas que estão morrendo nas ruas.”
Nay Myo Aung
Um dos mais jovens mortos é Nay Myo Aung, de 16 anos. Ele estava protestando com o primo em Mandalay na quarta-feira, quando a polícia e os militares dispersaram a multidão usando gás lacrimogêneo. Conforme os manifestantes construíam as barricadas, a polícia começou a atirar com balas de borracha e também com munição real, disse seu primo.
“Eu fui baleado com duas balas de borracha e então caí. Meu primo tentou me levantar e foi atingido com uma bala de verdade”, disse Hein Htet Aung, de 17 anos. Ele acrescentou que os manifestantes gritavam contra as forças de segurança e faziam um protesto pacífico naquele dia.
Nay Myo Aung foi levado às pressas para o hospital, mas morreu poucas horas depois, devido aos ferimentos. A bala atingiu o braço esquerdo e perfurou o pulmão, disseram os médicos à família.
Seu irmão Ko Ko Lin Maung, de 21 anos, disse que ele era um “bom menino” que cuidava da avó após a morte dos pais.
“Ele morreu pelo país, então isso é algo de que podemos nos orgulhar, mas eu só tenho um irmão mais novo, então me sinto muito triste por isso”, disse Ko Ko Lin Maung.
Ma Kyal Sin
Outra vítima do derramamento de sangue de quarta-feira foi Ma Kyal Sin, conhecida pelo nome de Angel. Vestindo uma camiseta com os dizeres “tudo ficará bem”, Angel participava de protestos de luta pela democracia com frequência, de acordo com amigos entrevistados pela agência Reuters. Ela foi baleada na cabeça pelas forças de segurança durante um protesto anti-golpe naquele dia.
Antes de sair para protestar, a dançarina e campeã de taekwondo postou nas redes sociais detalhes de seu tipo sanguíneo, número de contato e um pedido para doar seus órgãos em caso de morte, informou a Reuters.
O vídeo de seus momentos finais a mostra agachada na rua com outros manifestantes, reunindo a multidão em Mandalay antes que o gás lacrimogêneo fosse lançado. Em seguida, vieram as balas.
O funeral de Angel, na quinta-feira (4), atraiu centenas de pessoas em luto, com multidões alinhando-se ao longo do percurso da procissão em Mandalay, segurando a saudação de três dedos dos filmes Jogos Vorazes, que foi adotada pelos manifestantes como um símbolo de resistência.
“Ela era uma menina feliz, amava a família e o pai a amava muito também”, disse Myat Thu, amiga da vítima, à Reuters. “Não estamos em uma guerra. Não há razão para usar balas letais nas pessoas. Se eles forem humanos, não o farão.”
A Força Policial de Mianmar divulgou um comunicado na sexta-feira no Global New Light dizendo que está investigando a morte de Ma Kyal Sin. O relato diz que a polícia analisou uma foto do ferimento da jovem e concluiu que “não foi um ferimento causado por uma arma de choque”.
Segundo a declaração, se seu ferimento tivesse sido causado por uma “arma de choque ou munição real” não seria possível “que a cabeça da pessoa falecida estivesse em boas condições”.
Grupos de direitos humanos disseram que o nível de coordenação e uso da força pela junta militar em protestos recentes indica que eles não pretendem mais apenas dispersar os manifestantes como uma forma de controle da multidão.
“O uso semelhante de força excessiva e letal pelas forças de segurança em vilas e cidades em todo o país demonstra a coordenação entre as unidades e uma estratégia nacional abrangente”, disse o grupo de direitos humanos Fortify Rights na quinta-feira.
“Essa não é uma tática não letal para dispersar os manifestantes. É um ataque a manifestantes pacíficos em todo o país”, disse Quinley. “E essas não são técnicas de controle de multidão, é um ataque a civis e pessoas que protestam contra a tomada militar”.
O relator especial das Nações Unidas para os direitos humanos em Mianmar, Tom Andrews, disse estar vendo “ordens para que policiais e soldados militares atirem em pessoas a sangue frio”.
“Eles estão usando espingardas calibre 12, estão usando revólveres calibre 38, estão usando fuzis semiautomáticos contra pessoas pacíficas que não representam ameaça para eles”, disse.
Apesar dos perigos, os manifestantes continuam voltando às ruas. Na sexta-feira, a polícia abriu fogo contra um grupo em Mandalay matando um jovem, segundo a Reuters. Em Yangon, manifestantes estavam reconstruindo barricadas e em Lashio, no estado de Shan, multidões cantavam canções e faziam o tributo com três dedos.
Fonte: CNN BRASIL