enichi Kurosawa agarrou-se a uma árvore enquanto a água subia ao seu redor, inundando totalmente as ruas abaixo.
Em 11 de março de 2011, um terremoto que durou quase seis minutos, de magnitude 9,1 – o pior que já atingiu o Japão – aconteceu a 370 quilômetros a nordeste de Tóquio, desencadeando um enorme tsunami que atingiu Ishinomaki, a cidade costeira onde Kurosawa passou toda a sua vida.
Minutos antes das ondas de até 10 metros de altura chegarem, Kurosawa, então com 40 anos, escalou um pinheiro por 3 metros, enrolou as pernas em um galho e se segurou para salvar sua vida.
“Senti que o oceano estava ao meu redor. A água estava tão fria que me gelou até os ossos”, lembra.
Quando a água chegou até seus joelhos, Kurosawa viu pessoas em carros segurando seus volantes enquanto seus veículos eram arrastados pela estrada. Outros que estavam pendurados em árvores que foram derrubadas pelas ondas foram levados pela água. Por horas, Kurosawa suportou temperaturas abaixo de zero. Ele pensou em sua esposa – ele conseguiu falar com ela por 15 segundos enquanto estava na árvore, antes de a linha cair.
À medida que a noite se transformava em dia, o encanador ouviu alguém à distância pedindo ajuda com o que parecia ser seu último estoque de energia. Ele diz que não sabe o destino dessa pessoa – mas Kurosawa tinha acabado de sobreviver ao desastre natural mais mortal da história japonesa.
Mais de 20 mil pessoas morreram ou desapareceram no terremoto e no subsequente tsunami. Mas a devastação foi mais profunda do que a causada pelo desastre natural. A usina nuclear Fukushima Daiichi, nesta parte do Japão, tornou-se uma catástrofe à parte.
Cerca de 50 minutos após o primeiro terremoto, as ondas do tsunami atingiram um paredão de 10 metros destinado a proteger a usina nuclear. À medida que a água entrava, os mecanismos de resfriamento começaram a falhar, derretendo combustível em três reatores e lançando partículas radioativas mortais na área ao redor, que passaram a se dispersar e foram se decompondo em níveis menos perigosos com o passar do tempo.
Este ano, as cerimônias para marcar o décimo aniversário do desastre serão discretas e socialmente distantes em meio à pandemia do coronavírus. Em Tóquio, o primeiro-ministro, Yoshihide Suga, o imperador Naruhito e a imperatriz Masako comparecerão a um memorial, fazendo um momento de silêncio às 14h46, horário exato em que ocorreu o terremoto, há 10 anos.
Apesar da destruição provocada, muitos sobreviventes reconstruíram suas vidas e comunidades. Para muitos, porém, o legado do desastre permanecerá para sempre.
O poder de um tsunami
Ishinomaki, a segunda maior cidade da região de Miyagi, foi uma das comunidades mais atingidas pelo tsunami. As ondas cobriram quase 5 quilômetros quadrados (500 hectares) de terra e inundaram quase 15% da cidade, de acordo com o Centro Internacional de Informações sobre Tsunami.
A cataclismo destruiu mais de 50 mil casas e edifícios apenas em Ishinomaki, acabando com o vibrante centro da cidade, com a maior parte de seu porto marítimo e da infraestrutura local. Quase 3.100 pessoas na cidade perderam a vida.
Kurosawa, um encanador, estava trabalhando em uma cidade vizinha, a 12 quilômetros de sua cidade, quando ocorreu o terremoto. Ele ligou para sua esposa, que estava abrigada em um banco, e disse a ela para encontrá-lo em sua casa.
Minutos depois, um alerta de tsunami foi emitido. Ele tentou ligar para a esposa novamente, mas a linha telefônica estava muda. Preocupado com a segurança dela, Kurosawa pulou em seu carro e correu para casa para encontrá-la para que pudessem ir juntos a um lugar mais alto. Carros passaram correndo por ele na direção oposta, abrindo caminho para zonas de evacuação estabelecidas no país, que é vítima frequente de terremotos.
Ao se aproximar de sua casa, ele avistou, à distância, o que parecia ser uma barreira contra o tsunami. Quando ele se aproximou, percebeu que eram carros – varridos pelas ondas, balançando para cima e para baixo.
Enquanto ele fazia uma meia-volta desesperada, ele vislumbrou um homem a pé tentando escapar da água. “Puxei-o para dentro do carro pela janela e fugimos da água. Mas a essa altura, o tsunami também estava à nossa frente”, disse Kurosawa.
Presos pelas ondas, os dois abandonaram o carro e correram para encontrar abrigo.
Quando Kurosawa escalou a árvore, um galho quebrou e ele caiu no chão. Kurosawa lançou-se de volta para cima da árvore assim que as ondas começaram a se aproximar. O homem que ele resgatou fez o mesmo. “Quase pensei que não conseguiria”, diz ele.
“É difícil imaginar o poder de um tsunami a menos que você tenha passado por isso – é uma força destrutiva que engole e destrói tudo em seu caminho.”
Desastre nuclear
À medida que o tsunami atingia o interior, na vizinha prefeitura de Fukushima, a usina nuclear Daiichi estava derretendo.
O Japão declarou uma emergência nuclear em 11 de março de 2011, dia que ficou marcado pelo pior desastre nuclear desde o incidente de 1986, em Chernobyl. Mais de 300 mil pessoas que vivem perto da usina nuclear Daiichi foram forçadas a sair temporariamente, de acordo com a Cruz Vermelha. Outras 50 mil pessoas saíram voluntariamente das áreas atingidas pela radiação.
Nos meses e anos seguintes, várias áreas ao redor de Fukushima se tornaram cidades fantasmas, visitadas apenas por funcionários da Tokyo Electric Power Company (TEPCO) e por inspetores de segurança e turistas em busca de aventuras um tanto sombrias. Desde o desastre, a TEPCO tem bombeado centenas de toneladas de água na usina nuclear para resfriar os reatores e interromper o fluxo de radiação.
A limpeza do desastre deve levar décadas e custar bilhões de dólares. Depois de 10 anos, mais de 35 mil pessoas que moravam na região permanecem fora dali, de acordo com as autoridades de Fukushima.
Hajime Matsukubo, porta-voz do Citizens’ Nuclear Information Center, em Tóquio, uma organização de interesse público que se coloca contra a energia nuclear, disse que a maioria das regiões atingidas pelo terremoto e tsunami foram reabilitadas. No entanto, o trabalho de recuperação em torno da usina nuclear de Fukushima Daiichi permaneceu paralisado desde o colapso, pois apesar da grande quantidade de dinheiro gasto, a população ao redor da área caiu pela metade. “Após 10 anos, o que aprendemos é que uma vez que ocorre um acidente nuclear, a limpeza é tremendamente difícil “, disse ele.
Atualmente, a TEPCO está armazenando em enormes tanques mais de um milhão de toneladas de água que foram usadas no resfriamento dos reatores. Mas o espaço de armazenamento está se esgotando rapidamente e as autoridades, incluindo o ministro do Meio Ambiente do país, indicaram que a única solução é liberar essa água no oceano, um plano que enfrenta a oposição de ativistas ambientais e representantes da indústria pesqueira.
Em 2014, o governo japonês começou a suspender as ordens de evacuação para zonas com doses anuais de radiação abaixo de 20 milisieverts (unidade que mede o impacto da radiação em seres humanos). Essa medida é a exposição máxima recomendada por autoridades internacionais e equivalente a duas tomografias de corpo inteiro.
Em março de 2020, apenas 2,4% da área permaneciam inabitáveis, mesmo com partes dessa área acessíveis para visitas curtas, de acordo com o Ministério do Meio Ambiente do Japão.
No entanto, apesar dos esforços de descontaminação, uma pesquisa de 2020 conduzida pela Universidade Kwansei Gakuin descobriu que 65% dos evacuados não queriam mais retornar a Fukushima – 46% disseram temer contaminação residual do meio ambiente e 45% disseram que haviam se estabelecido em outro lugar.
Fukushima também abalou o compromisso de longa data do Japão com a energia nuclear. Antes do desastre, os cerca de 50 reatores do país forneciam mais de 30% de sua energia, de acordo com a Associação Nuclear Mundial.
Isso terminou em 5 de maio de 2012, quando o último reator em operação do país, em Hokkaido, foi desligado para inspeção, deixando o Japão sem energia nuclear pela primeira vez em mais de 45 anos. (Duas unidades da usina nuclear Oi foram reiniciadas brevemente em 2012, mas desativadas novamente um ano depois.)
Após o colapso nuclear, países como a Alemanha prometeram desativas todos os reatores nucleares até 2022. Mas, 10 anos depois, especialistas no Japão estão divididos sobre o uso da tecnologia, que é melhor para o meio ambiente do que queimar combustíveis fósseis. Além disso, as manifestações contrárias à energia nuclear diminuíram progressivamente desde o acidente.
Em agosto de 2015, um reator foi reiniciado em Sendai, na província de Kagoshima, no sul da ilha de Kyushu.
Tempos depois…
Na manhã de 12 de março, Kurosawa saltou do pinheiro. Parecia que uma bomba havia destruído sua cidade.
Enquanto voltava para casa, ele desviava dos escombros, evitando partes dos barcos naufragados que haviam chegado à costa. Prédios meio desabados estavam submersos, e ele lutou para respirar o ar carregado de fumaça.
A esposa de Kurosawa estava viva, tendo sido evacuada para uma escola em um terreno mais alto. Mas, durante o desastre, eles perderam amigos e todas as coisas que faziam parte das suas vidas.
Nos seis meses seguintes, Kurosawa e sua esposa viveram em casas alugadas e nos escritórios de amigos. Em agosto de 2011, eles se mudaram para um alojamento temporário para desastres, um prédio pré-fabricado que eles chamaram de casa por mais de três anos. Kurosawa colocou suas habilidades de encanador em prática, oferecendo-se para ajudar sua comunidade local com trabalhos variados. Ele ainda mora em Ishinomaki.
“Passei de uma rotina normal para uma rotina anormal que se tornou a nova norma. Um ano, dois anos se passaram – a realidade anormal tornou-se a realidade normal”, diz Kurosawa. Por cinco anos ele sonhou que ainda estava andando pelos destroços da sua cidade natal.
Hoje, em Ishinomaki, Kurosawa diz que os sentimentos das pessoas em relação à energia nuclear na região estão confusos e variam conforme a experiência de cada um com o desastre.
“As pessoas me perguntam como me sinto agora que já se passaram 10 anos. Ainda sinto que estou vivendo a continuação daquele momento, e dando o meu melhor”, diz ele.
Ao longo dos anos, Kurosawa lutou para reconstruir sua vida, negócios e comunidade. Hoje, aterros costeiros de quase 10 metros de altura se estendem por cerca de 56 quilômetros ao longo da costa para proteger sua cidade do oceano. Novas residências surgiram na periferia da cidade, enquanto outras ainda estão sendo reconstruídas.
Kurosawa diz que os traumas levam tanto tempo para cicatrizar quanto o ambiente para ser reconstruído. Mas, diz ele, não adianta viver no passado. Hoje, Kurosawa segue em frente e desempenha um papel ativo de ensinar outras pessoas a estarem preparadas para desastres.
“Uma coisa que aprendi com esse desastre é que as pessoas precisam viver umas com as outras. Acho que a esperança está em nós”, diz ele.
Às vezes, ele passa de carro pela árvore que salvou sua vida. Ele até tentou uma vez subir nela novamente.
James Griffiths, Angus Watson e Chie Kobayashi, da CNN, contribuíram para esta reportagem de Hong Kong e Tóquio.
Fonte: CNN BRASIL