No princípio, éramos nós e eles. Os humanos e os outros seres vivos. À medida que a ciência avançou, eles passaram a ser mais conhecidos e compreendidos. E foi em uma toada cientificista que, no século 18, o botânico, zoólogo e médico sueco Carl Linnaeus (1707-1778) inventou um método para classificar os seres vivos. É como eles são identificados até hoje e, por isso, Linnaeus é reconhecido como o “pai da taxonomia moderna”.
Os cientistas da natureza se depararam com enormidades nesse exercício de recolher, analisar e catalogar. Perceberam que, dos seres microscópicos aos gigantescos, são muitas as criaturas que habitam o planeta: até o momento, a lista já está na casa de 1,5 milhão. E estimativas recentes apontam para um fosso abissal de desconhecimento — no total, a Terra seria habitada por 8,7 milhões de espécies diferentes.
Se a missão de muitos pesquisadores hoje é seguir nesse trabalho de formiguinha de encontrar espécies novas e classificá-las, uma dupla de pesquisadores resolveu mirar além: utilizando como amostragem apenas os animais vertebrados terrestres — uma gama de 32 mil espécies –, eles cravaram onde estão esses seres vivos ainda desconhecidos. E quais os tipos deles. Todas as conclusões foram obtidas a partir da concepção de modelos matemáticos.
“Esses modelos permitiram mapear as regiões da Terra com maiores quantidades de espécies formalmente desconhecidas, fornecendo uma previsão para cada pedaço do nosso mapa”, afirma o biólogo e ecólogo brasileiro Mario Ribeiro de Moura, professor da Universidade Federal da Paraíba. Ele desenvolveu o estudo em parceria com o supervisor de seu pós-doutorado na Universidade de Yale, nos Estados Unidos, o também biólogo e ecólogo Walter Jetz. A pesquisa foi publicada em março no periódico científico Nature Ecology and Evolution.
A conclusão principal é que as florestas tropicais são o principal celeiro desses vertebrados ainda não catalogados. Metade dessas espécies são desse tipo de bioma. E 25% delas estão concentradas em quatro países — Brasil, Indonésia, Madagascar e Colômbia. O estudo permite ainda tipificar as futuras descobertas: 48% serão de répteis, como lagartixas, serpentes e lagartos; 30%, de anfíbios, como sapos, pererecas e rãs; 15% de mamíferos, principalmente roedores e morcegos; e 6% de aves, na maior parte as canoras.
O maior número dessas potenciais descobertas está no Brasil. “Se somarmos as previsões computadas ao longo de todo o território brasileiro, verificamos que elas representam 10% do total de espécies desconhecidas estimadas para o planeta”, resume Moura.
Ignorância ambiental e necessidade de preservação
Com o desmatamento e todas as agressões ambientais, os pesquisadores temem que muitas dessas espécies sejam extintas antes mesmo de serem descobertas oficialmente. “[Seriam] para sempre perdidas”, frisa o ecólogo. “Permaneceremos ignorantes sobre os possíveis valores ecológicos, serviços ecossistêmicos e até mesmo relevância econômica que essa espécie pudesse vir a apresentar”, completa.
O mundo já enfrenta esse problema, na realidade. Estudos indicam que de 15% a 59% das extinções que vêm ocorrendo são de espécies que ainda não foram catalogadas cientificamente.
Especialistas e ativistas procurados pela CNN Brasil avaliaram a importância dessa pesquisa recém-publicada. Em comum, a tônica de suas preocupações converge para a necessidade de preservação ambiental. Vale ressaltar que, de acordo com dados recentes do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), apenas em 2020 a chamada Amazônia Legal ficou 11 mil quilômetros quadrados menor por causa do desmatamento desenfreado. Em 2009, o governo brasileiro apresentou à Convenção do Clima, em conferência realizada em Copenhague, na Dinamarca, a meta de se manter dentro de um limite de cerca de 3 mil quilômetros quadrados em 2020.
O biólogo e ecólogo Lucas Navarro Paolucci, professor da Universidade Federal de Viçosa (MG), ressalta que o trabalho demonstra os esforços da comunidade científica para preencher as lacunas taxonômicas. Além disso, o material serve de subsídio para compreender outras dimensões da biodiversidade, como as interações ecológicas das quais essas espécies participam, como por exemplo a dispersão de sementes e predação de herbívoros.
“Esses resultados reforçam a necessidade de termos políticas sérias de conservação ambiental dos nossos ecossistemas, sob risco de não apenas deixarmos de conhecer novas espécies, mas também de negligenciarmos uma série de serviços ecossistêmicos essenciais promovidos pela biodiversidade”, aponta Paolucci.
Para a bióloga e ecóloga Paula Hanna Valdujo, especialista em conservação da organização WWF Brasil, duas mudanças são necessárias para garantir a conservação das espécies ainda não descritas pela ciência. “Reduzir o desmatamento e a degradação dos ambientes naturais do Brasil e aumentar os investimentos na ciência brasileira”, enumera. “O fortalecimento da carreira científica na área da taxonomia, responsável por revisões e descrições de espécies, será decisivo para impulsionar o conhecimento sobre nossa rica e exuberante biodiversidade”, completa Paula.
A bióloga e ecóloga Joice Nunes Ferreira, pesquisadora na Embrapa Amazônia Oriental, ressalta que ainda temos muito a avançar na descrição de espécies e na sistematização dos dados em ecossistemas como os da Amazônia. “Alguns avanços recentes foram plataformas governamentais para a sistematização dos dados.”
Ela lembra que o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), entidade ligada ao Ministério da Ciência, criou recentemente o Centro de Sínteses em Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos.
Atualmente, ela coordena o projeto Synergize, dentro desse centro, com várias instituições do Brasil e do exterior. “O foco desse projeto é sintetizar o conhecimento existente para grupos da fauna e da flora. Estudos como esse [de Moura e Jetz] nos ajudam a mostrar a ‘big picture’ e a direcionar nossos estudos regionais”, afirma.
Morosidade científica
Há ainda o fato de que a ciência tem seu próprio tempo para sedimentar o conhecimento. Uma pesquisa anterior conduzida pelo próprio ecólogo Moura constatou que há casos em que exemplares de nova espécie, depois de coletados na natureza e depositados em coleções científicas, podem demorar mais de 150 anos “engavetados” até serem formalizados como uma descoberta. “Ou seja, mesmo após a coleta da natureza, ainda demoramos muito para ‘redigir’ as páginas do catálogo da vida”, admite o cientista.
Isso ocorre porque muitas vezes são necessários estudos mais aprofundados para concluir que se trata, sim, de uma espécie ainda desconhecida. Na outra ponta desse gargalo estão as condições muitas vezes precárias do dia a dia de cientistas pelo mundo — e o Brasil, longe de ser exceção, configura um exemplo disso.
“Faltam investimentos em pesquisas de biodiversidade tanto para atividades de campo como para atividades em laboratório, incluindo aqui questões de infraestrutura e recursos humanos”, aponta Moura. “O Brasil tem profissionais qualificados e perfeitamente capazes de catalogar nossa surpreendente biodiversidade, mas esses profissionais não recebem apoio e incentivo suficientes de modo a facilitar a catalogação das espécies desconhecidas”, completa.
Fonte: CNN BRASIL