Quando a esperada cúpula terminou, as linhas vermelhas, as tensões e as acusações mútuas ainda existiam. Os presidentes Joe Biden, dos Estados Unidos, e Vladimir Putin, da Rússia, concordaram nesta quarta-feira em Genebra (Suíça) em devolver seus respectivos embaixadores, que haviam se retirado no auge das tensões, e iniciar consultas para estender o último pacto nuclear que compartilham. No entanto, pontos de atrito e desacordo permanecem. Em coletivas de imprensa separadas, os líderes insistiram em seus pontos cruciais. Putin, que falou primeiro, acusou Washington de financiar a oposição para enfraquecê-lo como adversário. Biden, que se concentrou nos ataques cibernéticos que seus serviços de inteligência atribuem a Moscou e na violação dos direitos humanos na Rússia, advertiu o Kremlin de que responderá às ameaças. “Acho que a última coisa que [a Rússia] deseja é uma nova guerra fria”, disse Biden em tom severo e institucional.
Uma reunião bilateral entre os velhos inimigos da Guerra Fria sempre tem sua dose de tensão, mas quando seus líderes se conhecem há tanto tempo e um deles, Biden, já chegou a acusar o outro de ser assassino e não ter alma, a incerteza atinge outro nível. A relação entre os dois países atravessa, além disso, seu pior momento desde a queda da União Soviética, em meio a uma escalada de sanções e expulsões de diplomatas como resultado das interferências eleitorais do Kremlin, dos ciberataques e da repressão contra opositores na Rússia, com a prisão de Alexei Navalny como símbolo.
Na conferência de imprensa, Putin definiu o dia como “construtivo” e garantiu que não houve “nenhuma hostilidade, pelo contrário”, embora o resto da entrevista coletiva tenha mostrado a distância entre os dois países. Navalny, disse ele, é “um cidadão” que voltou à Rússia “buscando ser preso”. O presidente russo se esquivou outras perguntas sobre direitos humanos com sua fórmula habitual, criticando os EUA pelas guerras no Iraque e no Afeganistão e pela prisão de Guantánamo. Também citou os protestos contra o racismo e os distúrbios do ano passado nos EUA, além do ataque de 6 de janeiro ao Capitólio.
Teve, por outro lado, palavras elogiosas para Biden, a quem qualificou de “equilibrado”, “profissional”, “muito experiente”. Putin disse que o líder americano lhe falou muito sobre sua família e sua mãe, o que “diz muito sobre seu nível moral”.
A dureza da agenda contrasta com o cenário espetacular, um palacete do século XVIII no alto de uma colina verde com vista para o lago Léman. Ao redor dessa paisagem idílica, a Suíça mobilizou mais de 4.000 policiais e militares. A cidade, principalmente o centro e os arredores da Vila La Grange, o nome da mansão, foram blindados.
Putin, que geralmente gosta de se fazer esperar, foi o primeiro a chegar à reunião, notavelmente pontual, reunião, seguido por Biden. Por volta das 13h30, os dois mandatários se cumprimentaram diante do anfitrião, o presidente suíço, Guy Parmelin, que os recebeu na entrada. “É sempre melhor se ver cara a cara”, disse o americano. O russo, que agradeceu a Parmelin pela iniciativa da cúpula, disse esperar que o dia fosse “produtivo”.
A reunião —na qual Putin ignorou a pergunta de um jornalista sobre se teme o opositor Navalny, que cumpre pena em uma prisão russa por um caso nebuloso— começou com um pequeno caos quando repórteres, câmeras e fotógrafos se amontoaram para entrar na sala onde ocorreram as saudações iniciais, criando um tumulto e um coro de gritos que os dois líderes observaram de dentro. A primeira rodada de conversações, em uma das bibliotecas, incluiu o secretário de Estado americano, Antony Blinken, e o chanceler russo, Serguei Lavrov. Durou cerca de duas horas.
Biden chegou na noite de terça-feira a Genebra, última etapa de uma viagem pela Europa, enquanto Putin, que geralmente evita passar noites fora, voou de Sochi na manhã desta quarta, para retornar ao final do dia, em sua primeira viagem internacional desde o início da pandemia. A Casa Branca e o Kremlin adiantaram que estavam previstas entre quatro e cinco horas de reunião, depois das quais cada um daria uma entrevista coletiva separada aos jornalistas de suas respectivas delegações.
Genebra foi cenário de reuniões cruciais entre Washington e Moscou. Em novembro de 1985, nos últimos compassos da Guerra Fria, reuniram-se nessa cidade Ronald Reagan e Mikhail Gorbachov, último presidente da antiga URSS. Na primeira fase do conflito, em 1955, Dwight Eisenhower e Nikita Kruchov também se reuniram em Genebra, dentro da chamada “cúpula dos quatro grandes” (incluindo a França e o Reino Unido).
Mas desta vez a discussão não girou tanto em torno de ogivas nucleares, como ocorreu há 70 anos, e sim sobre uma nova era de hostilidades: a cibersegurança. A invasão e o ataque a sistemas de informática de governos, por um lado, e os crimes de grupos que sequestram dados de empresas e pedem resgates milionários, por outro.
Washington acusa Moscou não só da grande operação de ingerência eleitoral de 2016, mas também de invadir as entranhas do Governo americano, incluindo os computadores do Departamento do Tesouro, como ocorreu com o caso Solarwinds no ano passado. Quanto a ciberataques de grande repercussão, como o que forçou a paralisação do grande oleoduto Colonial na Costa Leste, um dos maiores dos Estados Unidos, Biden não estabelece vínculos com o Kremlin, mas acredita que esses grupos operam da Rússia e que, portanto, Putin deveria ajudar a detê-los. Seis anos depois da invasão da Ucrânia, o Kremlin mantém a anexação ilegal de Crimeia e, embora não tenha ido mais longe, nada indica que esta cúpula trará alguma mudança substancial neste conflito.
De forma deliberada, a Administração dos Estados Unidos evitou especificar objetivos da reunião, além de lançar as bases de uma “previsibilidade e racionalidade” na relação com a Rússia, e procurou reduzir as expectativas.
Os países têm margem de manobra quanto ao armamento nuclear. Eles renovaram o tratado de não proliferação New Start pouco depois da chegada de Biden à Casa Branca e poderiam tentar ampliá-lo. Também compartilham interesse em reduzir as sanções que afetam diplomatas e prejudicam também o dia-a-dia dos dois governos e seus cidadãos. Washington obrigou Moscou a fechar os consulados de Seattle e San Francisco, acusados de espionagem, assim como a missão comercial na capital americana, como resultado da ingerência de 2016. Em resposta, o Kremlin forçou o fechamento de representações diplomáticas dos Estados Unidos na Rússia.
Esta foi a primeira reunião entre os líderes dos dois países desde a realizada em julho de 2018 por Putin e o então presidente Donald Trump, que deixou os Estados Unidos —e grande parte do mundo— boquiabertos com a cordialidade mostrada pelo americano, dadas as graves acusações de interferência de que tratavam. Aquela sintonia, entretanto, não se traduziu em mudanças reais nem em uma redução das sanções contra a Rússia.
Para Putin, a cúpula também é importante para a política interna. Ele volta a aparecer como um jogador no tabuleiro geopolítico global depois de mais de um ano apagado, com poucas reuniões pessoais e nenhuma viagem para fora da Rússia, segundo o Kremlin. A realização da cúpula, por si só, já faz Putin ganhar pontos, segundo os analistas russos. Com sua popularidade em baixa, números de covid-19 na Rússia cada vez mais altas —embora a vacinação já esteja ocorrendo desde janeiro— e descontentamento social em ascensão devido à frágil situação econômica, a forma como ele “vender” os resultados da reunião desta quarta-feira pode ser um empurrão para as eleições parlamentares de setembro, às quais o Rússia Unida, o partido apoiado pelo Kremlin, chega com baixos índices de aprovação.
Dentro da Villa La Grange, as autoridades suíças prepararam tudo com os mínimos detalhes para a cúpula: a temperatura da sala onde os membros das delegações conversaram juntamente com os presidentes, com piso de madeira, tapetes e grossas cortinas douradas, foi fixada em 18 graus centígrados, uma exigência dos Estados Unidos, como informou a TV russa. No momento do encontro, fazia 30 graus em Genebra. Na mesa de trabalho, com toalha branca, recipientes circulares de desinfetante. No banheiro designado para Putin —com um letreiro na porta com a bandeira russa e a inscrição VIP—, um frasco de sabonete líquido incolor e sem cheiro.
Fonte: MSN