As plantinhas nos degraus das escadas são regadas diariamente, em um momento íntimo de lembrança para Vinícius da Silva Xavier, de 24 anos, morador da Pedreira Prado Lopes, um dos locais de maior vulnerabilidade social em Belo Horizonte. Em todo canto do modesto apartamento em que vive há memórias de seus pais, Iraci e Estella, que simbolizavam uma época de simplicidade e muita união.
Até o ano passado, eles viveram histórias felizes, sobrevivendo graças às vendas de inúmeras “quentinhas” pela comunidade. Em poucos dias, porém, o efeito devastador da COVID-19 dizimou totalmente a família. Vinícius ficou sozinho em casa. E sem trabalho.
A história do rapaz se assemelha à de muitas famílias nas comunidades mais vulneráveis a contrair o coronavírus e que sofrem com as mazelas da crise que atingiu todo o país. As 550 mil pessoas que se espremem em vilas e favelas de BH vivem constantemente sob o risco de uma terceira onda da doença, pois não há jeito de evitar a aglomeração.
Ainda que tenha havido relativo apoio do poder público desde o ano passado, por meio de auxílios emergenciais e cestas básicas, a maior parte do socorro chega por ajuda humanitária de entidades sociais que se destacam no combate à miséria.
Cozinheiro da família, o pai de Vinícius foi uma das vítimas da COVID-19 logo no início do ano. Pouco mais de um mês depois, foi a vez de sua mãe, auxiliar na cozinha, perder a guerra com a doença. Ambos tinham condições que representam fator de risco, e não haviam sido vacinados.
“O meu pai, que tinha problema no estômago, se sentiu fraco e começou a cochilar quando preparava o almoço. Achávamos que era um problema antigo. Depois, apareceram os sintomas mais graves que o levaram a ser internado e a morrer em três dias. Já minha mãe tinha câncer nos ossos.
Ela sentiu uma dor, mas nem procuramos médico porque achávamos que era pela doença. De repente, ela piorou e ficou quase 35 dias no hospital antes de morrer”, afirmou o jovem, que ajudava os pais no serviço.
Além do forte baque emocional, ele ficou sem trabalho e teve de recorrer à ajuda de tias e pessoas na própria comunidade para conseguir comprar o básico. Para sustentar a casa e a filha, Valentina, de 3 anos, precisou vender até as panelas que o pai usava para cozinhar.
Desde então, seus momentos de distração são as partidas de futebol na Pedreira e os louvores na Igreja Batista da Lagoinha. Não gosta de ficar sozinho, para evitar se lembrar de tudo o que ocorreu. Todos os dias, ele faz questão de manter vivas as plantinhas deixadas pela mãe no canto das escadas.
“É uma dor grande. Não gosto de ficar em casa, para não me lembrar deles. As pessoas levam essa doença na brincadeira. O povo abusa, e tudo não acaba, como os bailes funk. Espero que as coisas possam melhorar”.
“Daria minha dose para meus filhos”
Bem perto de Vinícius, Raquel Fernanda de Almeida, de 28, não teve mortes na família, mas também ficou sem o sustento depois que um restaurante cortou seu contrato, logo no início da pandemia. Com o filho, Endrick, de 11, para cuidar, ela ainda ficou grávida de Andry, hoje com 2 meses.
Sem renda, vem se mantendo com a cesta básica fornecida pela prefeitura, além de doações que chegam à Pedreira. Não bastasse a fome, a ameaça de terceira onda a preocupa. “Tomei a primeira dose da vacina, porque ganhei a bebê há pouco tempo. Mas tenho medo por causa do Endrick, que tem bronquite e rinite. Com doença respiratória, se pegar COVID-19 agrava mais. Fico com receio por ele. E ainda tem a Andry. Eu daria minha dose para eles, sem problemas”, afirma Raquel.
Mesmo depois da primeira aplicação, ela se mostra receosa de ter de sair para trabalhar e se contaminar: “Não temos opção. Ou você procura trabalho e tira seu sustento ou passa fome. A primeira onda da COVID era algo novo. Mas agora sabemos o que pode vir. Imagine o que pode acontecer? Não tem jeito. É difícil administrar isso”, lamenta.
No Alto Vera Cruz, comunidade de Belo Horizonte que teve mais de 50 mortes pela doença, o ganha-pão de Jaldecir Pereira da Cruz, de 30, há sete meses passou a ser a reciclagem de latinhas, depois que ele perdeu o emprego em uma obra. Nesse período, conseguiu encher um saco de material reciclável, que vendeu a R$ 150 no Centro da capital.
A fome já bate à porta de sua casa. “Percorri Pompeia, Mangabeiras, Belvedere e outros lugares para buscar essas latas. No Centro, vendo por R$ 7 o quilo. Mas há aquele preconceito de polícia, fiscais, que pensam que somos moradores de rua… Se não tivesse a pandemia, eu juntaria uns 10 sacos (no mesmo período). Mas até o trabalhador comum está catando.”
Segundo ele, parte do dinheiro conquistado custeia somente o gás, vendido a R$ 100 no bairro. “Dá vontade de chorar. Vemos nossa família pedindo arroz e feijão, mas não temos. Não dá para comprar um frango ou uma carne. A coisa mais difícil é ver seu filho pedindo um pão e você não poder dar.” Além de um trabalho, Jaldecir pede para ser imunizado: “Sou catador de latinhas e preciso tomar a vacina. Se não tomar, como vai chegar o ‘papá’ lá em casa? É difícil. Não tenho nada contra ninguém. Mas acho que o trabalhador poderia se vacinar primeiro”.
No Morro do Papagaio, somente o ganho de R$ 1,6 mil da faxineira Marlene Crispim, de 41, mantém uma casa em que moram seis pessoas: a mãe, três filhos e um neto. Além dos alimentos, ela tem de custear o aluguel, já que sua casa foi interditada pela Urbel por risco de desmoronar. “No momento, apenas eu trabalho.
Fonte: Estados De Minas