Maior catástrofe humanitária da história do Brasil, a tragédia da Vale em Brumadinho mantém, ainda quatro anos depois, rastros de destruição no Córrego do Feijão e entre a população do município a 60 quilômetros de Belo Horizonte. A barragem B1, operada pela mineradora, se rompeu quando o relógio marcava 12 horas, 28 minutos e 24 segundos de 25 de janeiro de 2019. Feito uma avalanche, nove milhões de metros cúbicos de rejeitos de mineração arrastaram pessoas, construções inteiras e toneladas de máquinas a uma velocidade de 76 quilômetros por hora.
Duzentas e setenta pessoas morreram. Seus corpos foram esmigalhados pela força da enxurrada de lama. Eles permanecem divididos ainda hoje, data em que o rompimento completa quatro anos. Estes vestígios das histórias destruídas estão em meio aos rejeitos peneirados pelos bombeiros à procura de restos mortais das três pessoas que permanecem não identificadas, e também em um contêiner refrigerado no Instituto Médico Legal (IML), que abriga centenas de fragmentos ósseos. É o que restou das vítimas fatais do desastre da Vale.
À espera
Vestindo uma camiseta branca estampada com a fotografia de um rapaz sorridente, Lúcia Mendes da Silva não aguarda mais pela ligação da perícia atestando o encontro do corpo do filho. O engenheiro mecânico Tiago Tadeu Mendes da Silva, com 34 anos à época do rompimento da barragem, é uma das três vítimas ainda não achadas sob os escombros da Vale no Córrego do Feijão. “Quando o telefone tocar e disserem que identificaram meu filho, voltarei para o dia 25. A gente torce para achar, mas são quatro anos. Sei que meu filho não está lá. Se encontrarem algo, vão ser só pedaços. Ali nunca houve corpos. Eles foram estraçalhados. Ali virou um mar de lama e de sangue com pedaços deles. A barragem estraçalhou tudo”, discorre.
Á área de dois quilômetros atingida pelos rejeitos da B1 menos de um minuto após a ruptura da barragem é o ponto em que, hoje, estão concentradas as buscas do Corpo de Bombeiros. A cada sete dias, entre oito e dez militares viajam para a Base Bravo, instalada no interior da mina do Córrego do Feijão, para dar continuidade à operação – o governador Romeu Zema (Novo) garantiu que ela só acabará quando todas as três vítimas restantes forem identificadas. Além de Tiago, bombeiros procuram por Nathália de Oliveira Porto Araújo, estagiária da Vale que tinha 25 anos à época da tragédia, e por Maria de Lurdes da Costa Bueno, hóspede da pousada Nova Estância, também soterrada pela estrutura rompida da multinacional.
“Hoje nós concentramos as buscas em cinco estações onde os rejeitos são peneirados e bombeiros procuram por segmentos. Nós queremos que todas as famílias recebam as identificações de seus entes queridos. Quatro anos depois, seguimos com o mesmo esforço”, detalha o major Marcos Vinícius, ligado à operação Brumadinho há cerca de seis meses. A sala de operações da Base Bravo é uma área ampla, com mesas instaladas nas laterais para serviços administrativos. O olhar de quem adentra o lugar é imediatamente atraído para um circuito interno de televisores – neles, militares veem as operações nas cinco estações de busca, que hoje se encontram ao pé do que um dia foi a barragem B1. Ainda no espaço, três retratos se destacam ao lado de uma bandeira do Brasil, suja de lama – Tiago, Nathália e Maria. “As fotos estão ali porque elas são o nosso maior objetivo”, cita o bombeiro.
Também na parede da unidade de Antropologia do Instituto Médico Legal (IML) de Belo Horizonte, a 60 quilômetros de distância dali, as fotografias dos três em preto e branco ocupam pouco mais de 60 centímetros de largura no espaço. Nos meses que se seguiram à tragédia em Brumadinho, retratos das centenas de vítimas abrangiam três paredes inteiras do setor. “Quando começamos a identificar as vítimas, iniciamos também o Parede Zero. Colocamos nas paredes da Antropologia as fotos de todas as vítimas. A cada identificação, uma fotografia era retirada. Hoje, restaram três. Identificar estas pessoas significa para nós restituí-las às famílias”, esclarece a legista Naray Paulino, diretora do IML da capital mineira.
Hoje à frente do Instituto e ligada à identificação dos segmentos ósseos encontrados em Brumadinho, a médica não poupa detalhes ao relembrar o momento em que soube do desastre – no horário do almoço, em uma sexta-feira, há exatos quatro anos. Se à primeira vista havia a esperança de um baixo número de óbitos, bastou que as primeiras vítimas chegassem à unidade de perícia para que os legistas entendessem a dimensão do desastre. “Quando chegaram os primeiros corpos… Ali caiu a ficha. Nós víamos a força com que os corpos tinham sido arrastados, e ali percebemos o tamanho da tragédia que enfrentaríamos. Nós ficávamos imaginando: será que vamos conseguir encontrar todas as vítimas?”, relembra.
Em um período de quatro anos, 1004 segmentos corporais foram recebidos no Instituto Médico Legal. Destes, 267 puderam ser identificados; 440 correspondem a reidentificações – ou seja, pertenciam a vítimas que já tinham sido identificadas anteriormente – e outros tantos não puderam sequer ser analisados. “A extração de material genético não é fácil, especialmente quando estes ossos estavam submetidos a intempéries da natureza e à própria lama”, detalha a médica-legista. Hoje, 36 casos estão no Instituto de Criminalística aguardando os testes que definirão se eles são reidentificações ou vítimas ainda não encontradas. Tal como nas operações de busca, não há data para fim dos trabalhos no IML.
O dia que não acabou
Com dedos entrelaçados à fotografia do último torneio de futebol que Walaci disputou antes de morrer no rompimento da barragem operada pela Vale, Júlia Silva de Jesus indica com a cabeça as lembranças do filho espalhadas pela casa – são pelo menos quatro quadros pendurados nas paredes e muitos outros porta-retratos sobre o principal móvel da sala. O imóvel arejado, de dois andares, foi planejado pelo rapaz, à época com 25 anos e contratado como encarregado de serviços gerais em uma terceirizada da mineradora no Córrego do Feijão. Quatro anos após a morte do filho caçula e cerca de três anos e nove meses depois de enterrá-lo, Júlia reconstrói os últimos dias de Walaci e continua apegada às lembranças do dia da tragédia, que, para ela, não acabou. “Eu não estava preparada para perder o meu filho. Enquanto estiver nesta Terra, vou carregar a saudade, a vontade de estar com ele. Só sei que ele partiu muito novo”, diz.
Júlia não sabe dizer onde Walaci estava quando o mar de lama irrompeu em direção ao refeitório e aos prédios administrativos da mina do Córrego do Feijão. Cinco dias após o telefone tocar pouco depois do meio-dia informando a ela sobre o desastre, a mãe do rapaz de 25 anos ainda mantinha a esperança de encontrá-lo vivo. “Eu tinha ido à mina no ano anterior ao acontecido, sabia como era e sabia que tudo estava ao pé da barragem. Na minha cabeça, eu sabia que tudo tinha entupido, mas, mesmo assim eu tinha esperança. Eu falava: ‘ele é esperto, ele correu para o mato e deve estar em algum hospital’. Mas, passaram cinco dias e as minhas esperanças foram acabando, acabando, acabando… Depois, com 72 dias, eles ligaram e disseram que tinham encontrado o corpo dele. Foi o que aconteceu”.
A mãe de Tiago, Lúcia, também não poupou fé à espera de encontrar o filho. “Quando chegaram as tropas de Israel, eu senti um pouquinho de esperança, achava que podia ter dado uma bolha em meio à lama e que ele estaria vivo ali. Mas, depois, as esperanças foram morrendo. Ainda assim, eu ia para Belo Horizonte, pegava os ônibus e procurava pelas ruas o meu filho. Eu achava que ele podia ter escapado, em algum lugar no meu coração eu acreditava que ele tinha escapado, perdido a memória e estava como morador de rua no centro de Belo Horizonte. Durou até que minha filha disse: ‘mãe, não adianta, o Tiago já está nos braços de Deus'”.
A dezoito quilômetros do Córrego do Feijão, no distrito de Conceição de Itaguá, o ronco do motor de uma Brasília que hora ou outra atravessa a rua Maria Filomena Silva Moreira ainda arranca uma olhadela de Geraldo de Oliveira Silva em direção à varanda. Apesar de transcorridos quatro anos da tragédia e da certeza da morte do irmão Luiz de Oliveira Silva, que completaria 48 anos oito dias após a ruptura da barragem, Geraldo arrisca sair à porta para conferir se ele não está ali. “A Brasília encostava naquele cantinho da rua. Muitas vezes eu cheguei a abrir a porta e dizia: ‘Luizinho chegou’, e minha esposa me olhava e respondi: ‘seu irmão morreu, seu irmão morreu’. Eu só conseguia voltar aqui para dentro e sentar no sofá. Luizinho morreu”.
Foi diante da ínfima possibilidade de encontrá-lo que Geraldo se embrenhou na área atingida pelos rejeitos da barragem um dia após a tragédia. Funcionário afastado da Vale por licença médica, Geraldo estava internado no Hospital Mater Dei, em Belo Horizonte, quando soube do rompimento da B1. Recém-operado da coluna, ele retornou a Brumadinho no dia seguinte à ruptura da barragem para procurar pelo irmão.
“No sábado de manhã eu consegui vir para Brumadinho. Cheguei, coloquei minha roupa de trabalho e saí em direção à área quente. Meu cunhado e um médico me seguiram até 19h daquele dia, quando eu entendi que não encontraria o Luiz. O que eu vi ali nunca vai sair da minha memória. Onde tinha uma bandeirinha branca sobre a lama significava que tinha um corpo ou um membro ali. Ali virou um cemitério, e os helicópteros carregavam pedaços, corpos”, relembra.
A manchete na televisão e o vaivém dos helicópteros na tela, o toque do telefone que antecedeu a notícia do rompimento e as mensagens no WhatsApp do grupo de amigos da Vale são memórias ininterruptas nos cotidianos de Lúcia, Júlia e Geraldo. A tragédia começou em 25 de janeiro de 2019, mas, nunca acabou. “Eu consigo dormir? Consigo. Mas, no momento em que eu abro os olhos, eu lembro. Jamais será apagado da minha memória”, crava o irmão de Luiz. “A gente leva a vida. É muita saudade, uma saudade que chegar a doer no fundo do coração. Ainda hoje eu falei com Deus: ‘eu queria viver nessa casa junto com o Walaci'”, marca Júlia perdendo o fôlego, com as mãos sobre o peito, na iminência da lembrança do caçula. Sobre a bancada da cozinha dela, estão as cinco caixas dos remédios que precisa para estar de pé. “Todos os médicos que eu fui até hoje me dizem: ‘você nunca mais vai ser a mesma’. E é verdade, eu nunca mais vou ser a mesma”, decreta. Também são os comprimidos que dão suporte para Lúcia, sem Tiago e sem corpo para enterrar. “Tenho uma ferida que não cicatriza. Ela pode até fechar com o tempo, mas nunca vai cicatrizar porque sempre vou voltar para aquele dia. Não tem como repôr o lugar do meu filho dentro de mim”.
A saudade é o revés de um parto
Um dia antes da tragédia completar quatro anos, a Justiça Federal acatou a denúncia do Ministério Público Federal (MPF) e tornou réus 16 funcionários ligados à Vale e à empresa de consultoria alemã Tüv Süd – que atestou a segurança da barragem B1 da mina do Córrego do Feijão meses antes do rompimento. Eles serão julgados pelos crimes de homicídio qualificado de cada uma das 270 pessoas assassinadas no dia da catástrofe e por três crimes ambientais – poluição e contra a fauna e a flora.
O inquérito do Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), acolhido pelo MPF e usado na denúncia, foi taxativo após a conclusão das investigações: a Vale sabia da iminente ruptura da estrutura na mina em Brumadinho e optou por colocar em risco as centenas de pessoas que trafegavam ali diariamente, calculando o preço da tragédia. Documento interno da multinacional obtido pela força-tarefa indicou que a produtora de minério de ferro precificou a catástrofe: um eventual rompimento provocaria mais de cem mortes e custaria cerca de US$ 1,5 bilhão à empresa. O valor é ínfimo perto do lucro recorde de R$ 121 bilhões obtido pela Vale em 2021 – ano em que a mineradora selou acordo com o Estado de Minas Gerais para pagar R$ 37,68 bilhões em ações de reparação. Neste ínterim de quatro anos, a empresa informa ter feito 5.414 acordos de indenizações individuais; as compensações trabalhistas são 1.478 – os dados estão disponíveis no site da Vale.
Ainda que as ações de reparação sejam custeadas pela mineradora desde a tragédia, pairam ares de injustiça sobre as famílias atingidas pelo crime na mina do Córrego do Feijão. “Meu filho não tem preço. Pra mim, ele não tem preço. O problema da Vale foi a ganância. Ela jogou as pessoas ali, no Córrego do Feijão, como em um abatedouro. Ela deixou todos eles ali para que eles morressem, ela sabia que a barragem ia estourar”, crava Lúcia. “Eles nunca me ligaram, nunca perguntaram como eu estava e não sabem onde meu filho está. A Vale sabia quantas indenizações teria que pagar, quantas pessoas iam morrer. Dói saber que ninguém foi punido”. O filho dela, Tiago, não pôde ver o crescimento da filha, hoje com oito anos, e o bebê recém-nascido que deixou quando morreu não terá lembranças do pai. Engenheiro mecânico, ele acabara de se formar na graduação, mas nunca foi à cerimônia de colação de grau. “Eu não fui à festa de formatura do meu filho. Não fui porque ele já estava morto”, finda Lúcia.
Os sonhos que não dividiu com o filho também atormentam Júlia. “Eu não tive direito de ter netos. Minha nora não conseguiu ficar em Brumadinho e foi embora. Eu estou aqui sem o meu filho. A vida virou de pernas para o ar, e só estou de pé pela misericórdia de Deus, porque eram muitos os nossos sonhos”, detalha. A casa desenhada pelo filho, e onde ela mora hoje, é parte das lembranças que nunca poderá compartilhar com Walaci. “Quando a casa ficou pronta, eu não tive coragem de vir. Isto aqui era o maior sonho dele. Fiz esta casa com o dinheiro, o lote eu já tinha comprado trabalhando como faxineira, mas, eu não trocaria a vida do meu filho por nada no mundo. Tudo o que a Vale fizer não paga a vida do meu filho. Eu queria que ele estivesse aqui”.
Fonte: Rádio Itatiaia