Como bom marinheiro, o cineasta David Schurmann, de 43 anos, sabe enfrentar tempestade. Uma das grandes foi provocada pela escolha de seu primeiro longa-metragem de ficção, Pequeno Segredo, como representante brasileiro no Oscar no ano passado.
Foram muitas as críticas à escolha do Ministério da Cultura, desbancando o favorito Aquarius. Além de trazer Sônia Braga no elenco, queridinha da imprensa internacional, o concorrente de Kleber Mendonça Filho havia marcado sua participação no aclamado Festival de Cannes com um protesto contra o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff.
Um ano após a polêmica, Schurmann diz que navega em calmaria. No último fim de semana, ele esteve em Chicago para apresentar seu longa na abertura do festival de filmes brasileiros da cidade, chamado simplesmente de Mostra.
Em entrevista à DW Brasil, o diretor chamou a indústria cinematográfica brasileira de “hipócrita” e disse que é preciso mais do que “berrar” para tentar frear protestos contra manifestações artísticas que trazem temas polêmicos ao Brasil. “É preciso acalmar os ânimos da população”, acredita.
DW Brasil: Você ficou frustrado com o fato de Pequeno Segredo não ter ficado entre os cinco finalistas do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 2016?
David Schurmann: Fiquei frustrado por não ter ficado entre os nove (seleção prévia, antes de tirar os cinco finalistas). É a categoria de maior competição do Oscar (85 filmes de várias partes do mundo disputavam a indicação em 2016). Fizemos uma campanha muito séria, investimos tempo e dinheiro para sermos selecionados. Tivemos a informação de membros da academia [do Oscar] de que ficamos muito perto. Mas tudo bem, faz parte da jornada sobre a qual ainda estou aprendendo. Já foi um grande passo ver meu primeiro filme de ficção representando o Brasil.
A escolha do filme como representante brasileiro no Oscar foi muito polêmica. Os diretores Anna Muylaert e Gabriel Mascaro retiraram os filmes deles da seleção em apoio aAquarius. Como essas críticas mexeram com você à época?
Sempre acreditamos que o filme teria uma chance de ser escolhido, mas é como o próprio filho: se só você acha que seu filho é bonitinho, não vale nada. Mas outras pessoas também começaram a dizer que nosso filho era bonitinho [risos]. Passamos a achar que deveríamos nos inscrever. Já havia toda a comoção em torno de Aquarius, mas pensamos: “E se não for Aquarius, qual vai ser?”
Engraçado que, quando o júri foi anunciado eu pensei que a gente não ia ganhar nunca, porque o presidente do júri era o Bruno Barreto, amicíssimo da Sônia Braga (os dois trabalharam juntos em Dona Flor e Seus Dois Maridos). Ou seja, se alguém tem que reclamar de carta marcada sou eu. E ainda havia uma divisão política na turma que estava escolhendo. Então eu pensei que por mérito nós teríamos chance, mas naquele momento seria difícil. O resultado foi um choque, e minha felicidade durou apenas 20 minutos, porque o telefone começou a tocar. Então começou o apedrejamento em praça pública. A indústria cinematográfica do Brasil é muito hipócrita – sempre reclamou dos reaças, mas começou um julgamento de o Pequeno Segredo antes mesmo de as pessoas assistirem ao filme.
A Anna [Muylaert] foi a maior decepção para mim, como diretora e colega. Ela saiu fazendo chacota do Pequeno Segredo sem assistir ao filme. E grandes críticos brasileiros começaram a falar do filme sem o terem visto. Chegaram a me falar: “Mas era o ano do Aquarius.” E eu respondia: “E isso já está decidido por ditadura?” Outros falaram que Aquarius já tinha feito carreira internacional, o que não quer dizer nada. Tanto que nós dois disputamos para o Globo de Ouro, e nenhum dos dois entrou.
Então tomei a decisão de não brigar com ninguém. Eu defendia Aquarius, jamais vou bater em outro cineasta. Eu quero unir a nossa indústria. Do que o Brasil mais corre risco hoje é de perder uma indústria cinematográfica por briga interna.
Você acha que isso aconteceu porque se esperava que você iria retirar seu filme também?
Chegaram a me perguntar se eu iria tirar. Mas por quê? Eu trabalhei seis anos no filme, 150 pessoas trabalharam no filme, tenho responsabilidade com investidor, com minha equipe, que acreditava que esse filme tinha chance. É um egoísmo muito grande de um diretor fazer isso. Ou então o diretor não acredita ter chances.
À época você disse que o filme seria visto “pelo que é” depois de passada a polêmica. É o que acontece hoje?
Como a gente fez uma campanha com muita dignidade e bem feita, produtores e roteiristas passaram a sair em defesa de Pequeno Segredo, porque começaram a entender o filme. É um filme muito sensível, em que o diretor abriu o coração e falou da irmã dele. Este ano foi o contrário: eu só recebi apoio. E o mais irônico é que os 200 membros da Academia Brasileira de Cinema me apontaram como uma das seis pessoas que escolheriam o indicado ao Oscar este ano.
Isso tudo foi uma baita lição. Era todo dia porrada. Num primeiro momento, fiquei triste, porque o filme não tem nada a ver com política. Mas depois pensei: “Sou marinheiro, dei duas voltas ao mundo num veleiro, enfrentei tempestade para caramba, então, vamos embora.” Também fiz o seguinte paralelo: eu acompanhei a batalha que foi a vida da Kat. Por que o filme sobre ela seria diferente? Eu a imaginei falando: “Eu batalhei, deixei uma história para vocês contarem, você acha que vai ser fácil contá-la agora, meu irmão?” Quando pensei nisso, ficou mais fácil.
Você participou do grupo que escolheu Bingo – O Rei das Manhãs como indicação brasileira ao Oscar de Melhor Filme em Língua Estrangeira. O que você achou da escolha?
O filme é incrível, mas não sei se é o filme certo [para o Oscar]. A discussão demorou uma hora a mais porque tinha uma safra muito boa de filmes este ano, e tínhamos ideias muito divergentes de qual filme deveria ser escolhido. Mas quando a maioria levou o voto, todo mundo assinou embaixo. A polêmica foi apenas interna.
Como você acha que o cenário político atual do Brasil, tão acirrado, afeta a produção artística e os artistas?
E não é falta de voto de confiança no Brasil – é o país onde eu moro e tenho filho. Eu cresci fora do Brasil defendendo o Brasil. Decidi voltar a morar lá em 2000, porque vi que o país tinha um futuro. O brasileiro estava autoconfiante naquela época, e havia uma oportunidade política de o país dar certo.
Hoje eu tenho medo, porque parece não haver uma visão clara sobre o rumo do Brasil. A esquerda está cega, numa visão antiquada. Não é um socialismo como na Europa; estão presos num comunismo romântico, que não existe. E temos uma direita que está ficando ligada à radicalização religiosa. E essa polarização do povo dá medo, porque dá espaço para uma loucura acontecer. Acho que isso é consequência de uma frustração, porque o brasileiro estava acreditando que o Brasil iria dar certo. Hoje se você olhar para todos os candidatos à presidência do país…
Faço parte de várias associações de cinema e cineastas e percebo que existe um grupo que acredita que, para mantermos a nossa indústria, é preciso dialogar dos dois lados. Existem, claro, aqueles mais radicalizados para um lado, tipicamente mais para a esquerda, obviamente, mas há esse grupo forte que tenta explicar para os dois lados o que é a indústria cinematográfica.
O que você achou de protestos conservadores como aqueles contrários uma performance que tinha um artista nu no Museu de Arte Moderna de São Paulo (Mam), ou ao Queermuseu de Porto Alegre?
Esse é o problema da polarização: deixa os dois lados burros. Ou você pode tudo ou não pode nada. Temos que sentar e discutir. Acho que arte tem que ser aberta. Eu cresci nas ilhas francesas. Eu via gente nua o tempo todo. Mas há uma diferença entre a sexualidade, a sensualidade e a nudez. O Brasil é um país de hipocrisias. A nudez não pode, porque a pessoa é casta e tal. Daí você vai ao Carnaval e vê a sexualidade escrachada. E cheio de criança em volta! Em lugar nenhum do mundo você vê isso. Aí o pessoal grita: “É proibido censura.” Mas tem que ter um aviso escrito. Quem decide levar a criança é a mãe ou o pai. Obra de arte tem que ter isso, porque tem gente que vai se ofender. Há pessoas com diferentes tipos de background.
Esse tipo de reação, às vezes até violenta, lhe assusta de alguma maneira?
Sim. Porque aí oportunistas pegam esse vagão, que já está inflamado, ligam à política, e vira o que virou aqui nos Estados Unidos: um Trump ganha.
Você acha que, como defendem alguns grupos de artistas, é preciso agir agora para evitar censuras mais sérias mais para frente?
É necessário agir, mas com inteligência, com propostas claras e definidas. Em vez de só gritar, é preciso tranquilizar a sociedade, dizer que, assim como na França, na Alemanha, na Inglaterra, você pode ter (a exposição), e se você não está feliz com isso, ok, é um problema pessoal seu. Mas tem que haver uma idade recomendada. Acho que nós artistas do Brasil temos uma coisa de reagir sem ter um plano concreto. Estou generalizando, porque tem gente muito boa que está com planos concretos para fazer coisas acontecerem. Mas é união, não adianta ficar só berrando. É berrar com propriedade, com rumo, para onde nós queremos seguir. É preciso acalmar os ânimos da população. Porque se um golpe ou algo acontece, você fica sem voz.
Quando aconteceu o impeachment da Dilma, a primeira coisa que falei para um círculo muito fechado de amigos e pessoas do cinema foi que nós precisávamos montar um grupo e ir lá conversar com o novo governo para eles entenderem a importância do cinema. Aí ouvi: “Não, temos que gritar.” Bom, se você vai falar com um marciano, tem que falar a língua do marciano; com alguém de Plutão, tem que falar o idioma de Plutão. Qual é a meta principal? É continuarmos com nossa arte, nossa liberdade, com a forma de conduzir o que a gente faz, que é muito importante. Temos que conversar com esses caras, porque depois, basta uma canetada para passar o Ministério da Cultura para a bancada evangélica.
Sempre me perguntam de que lado estou, e eu digo: “De nenhum dos dois.” Dois lados errados não fazem um certo. Os dois lados me deixam decepcionado, porque a corrupção é um câncer que está dos dois lados. Eu vejo o avanço que o Brasil teve na primeira gestão do Lula, foi incrível. Mas aí o câncer se instaurou e destruiu parte do país. Agora há o outro lado da direita que quer abolir todos os direitos. Não pode ser assim. Então digo que estou em cima do muro, porque daqui eu vejo os dois lados. E como tem lama!
Você terminou há poucos meses a websérie Conexão Schurmann, uma espécie de reality show que reuniu celebridades a bordo do veleiro da Família Schurmann. Quais são seus novos projetos?
A Conexão Schurmann foi muito legal. É outra experiência. Da concepção até a entrega foram apenas 45 dias. Vamos fazer outro agora em janeiro, na Patagônia.
Estamos com um projeto de um filme sobre a Dorothy Stang [missionária americana defensora da reforma agrária, assassinada no Pará em 2005]. É um filme para 2019. Outro projeto é Blood Rose, de um roteirista neozelandês. O filme não tem nada a ver com o Brasil: é inspirado na maior atiradora de elite russa da Segunda Guerra Mundial. (Deutsche Welle)