“Música preta, sou teu instrumento, vim pra te servir”, canta Xênia França em Preta Yayá, uma das faixas de seu primeiro disco solo, Xenia. Integrante da banda Aláfia, a baiana agora se lança sozinha e o álbum faz parte de várias listas de melhores do ano.
A voz da cantora carrega a mensagem da luta por afirmação dentro desta sociedade racista e desigual. Com sonoridade sofisticada, que incorpora elementos da música afro de várias regiões, o disco é um manifesto da força da cultura negra.
Representatividade e invisibilidade são temas abordados no álbum e fora dele. Articulada e segura, Xênia critica: “O racismo ensinou pra gente que não somos bonitas, que não somos inteligentes, que não existimos pra qualquer outra coisa que não seja servir ou entreter.”
Embora fale de questões amargas, essa baiana não perde o otimismo. Dá para acreditar em avanços. “Há 200 anos, não éramos tratados nem como gente”, aponta.
O Brasil é um país racista. Como isso te afeta?
Hoje em dia, a minha reflexão sobre isso, principalmente depois de lançar o meu disco, me afeta de maneira emocional. Você vai tomando cada vez mais consciência das coisas e acaba virando uma espécie de ferramenta de vida. Num sistema de faltas, a gente não tem muita opção. Tem que ir para a frente, combater de alguma forma. Isso acaba deixando a gente mais forte, porque a gente é forte. Estou dentro do furacão e ávida por justiça. Então, não vejo de fora. Por isso, é natural que reflita no meu trabalho.
O racismo ainda é muito presente…
A escravidão acabou há pouco tempo. O país existe há 500 anos e a abolição foi há 129 anos. Meus ancestrais chegaram aqui de maneira tão degradante… Porém, mesmo assim, a gente ainda está aqui. Então, acredito na potência energética que existe nessa atmosfera à nossa volta, que nos protege e nos leva para a frente. Pensando na escala evolutiva, a gente está passando por um momento que, embora pareça difícil econômica e politicamente, é o momento em que as pessoas negras estão conseguindo avançar para novos espaços, discutir, questionar novas coisas.
Por que isso ocorre só agora?
Porque é um investimento a longo prazo. As pessoas que vieram antes lutaram muito para a gente conseguir esse mínimo. Parece nada, mas é muita coisa perto do que sempre se teve, pois a gente nunca teve nada. Nossos ancestrais investiram na gente. Lutaram bravamente, resistiram muito para poder deixar um legado. Só podemos utilizá-lo. A tendência é ficar melhor. Tenho visto as pessoas jovens cada vez mais conscientes, lutando e questionando mesmo, não abaixando a cabeça. Vão para a frente e arrombam a porta. Não dá mais para esperar alguém nos dar alguma coisa.
Em algum momento vamos conseguir evoluir a ponto de não haver necessidade de mulheres, negros e gays terem que brigar para ter voz?
Acredito que sim. Sou uma pessoa que tem muitas crenças boas em relação ao ser humano. Embora a gente olhe e não sinta que isso possa acontecer agora, sempre faço a relação de que, na natureza, demora muito tempo para uma planta mudar de cor. Pensando no ser humano como parte da natureza, estamos também em desenvolvimento. Muita gente fala pra mim que o mundo está perdido, mas acredito que já foi muito pior. Lógico que queremos continuar avançando. Não que é agora esteja bom, mas, há 200 anos, não éramos tratados nem como gente… Estamos em 2017, brigando por uma nova etapa, por estar na sociedade de igual para igual.
Você se tornou referência para as mulheres, sobretudo para as meninas negras. Qual é o peso dessa responsabilidade?
É uma responsabilidade muito grande, da qual, particularmente, tenho até medo. Porque sou uma pessoa passível de erros. Faço do meu trabalho uma ferramenta para melhorar, mas tenho muita clareza do que é não ter referenciais neste país. Então, sou uma cantora. Preocupo-me com a música, mas, naturalmente, mesmo que não falasse desses assuntos no disco, estaria exposta à questão da representatividade. Porque uma pessoa negra de boca fechada dentro de um espaço de privilégios é militante, mesmo que não saiba, mesmo que não queira.
Qual é a importância da representatividade na música, na televisão, no cinema?
É disso que depende nossa evolução e nossa sobrevivência. Sem isso a gente não tem nada. O que faço chega a outras pessoas e, principalmente, às meninas negras. Por isso, vejo como a gente está carente, porque nem sou famosa e alcanço muitas pessoas. A gente vive num país muito rico, com uma população trabalhadora muito grande, mas não há investimento em desenvolvimento humano no Brasil. A gente só conta com a força do trabalho e continua com a mentalidade escravocrata. Todas as faltas que a gente tem ainda partem desse resquício e da não disposição em mudar. Todas as vezes que um artista ou um jogador de futebol ganha qualquer tipo de destaque, isso se torna muito relevante na vida de uma pessoa que não sabe como sair da situação em que está.
Seu trabalho traz a questão de afirmação da beleza, da estética. Qual a importância da militância nesse sentido?
No Brasil e em todos os lugares, o racismo tem a característica muito forte de trazer invisibilidade. O racismo ensinou pra gente que não somos bonitas, que não somos inteligentes, que não existimos para qualquer outra coisa que não seja servir ou entreter. Acredito que a gente não pode negar nem fugir do que é. Somos belíssimos e não podemos ficar nos escondendo para fazer a vontade de um sistema de opressão. A militância estética é muito forte porque uma das primeiras coisas que o racismo ensina pra gente é se odiar, odiar a nossa imagem, o nosso cabelo, os nossos irmãos.
Como o trabalho com o Aláfia contribuiu para o seu disco solo?
O Aláfia é o meu primeiro trabalho, foi a primeira vez que gravei um disco. É muito importante pra mim a maneira como fui construindo minha densidade artística em meio a muitos desafios com que tenho de lidar diariamente. Antes do Aláfia, já estava cantando há dois anos. Sempre quis ter um disco, sempre quis ter um trabalho solo e, pelos desdobramentos da vida, aconteceu o Aláfia. Foi muito forte e muito impactante o encontro com essas pessoas, com o que a gente estava a fim de fazer no momento.
O disco traz muitas referências sonoras, construções bem sofisticadas. Como foi o processo de juntar tudo e fazer o seu próprio som?
Isso já estava dentro de mim, as coisas que escuto desde criança. Sou baiana, então o meu disco tem muito da percussão baiana, uma linguagem de tocar de lá. Usei também influências da música cubana. Mas não foi uma construção, foi uma organização, porque escuto muita coisa, tenho muitas referências. Então, o desafio era equilibrar e colocar o que fazia sentido para mim.
XENIA
• De Xênia França
• Selo Agogô
• 13 faixas
• Disponível nas plataformas de streaming.
*Mexerico